O POVOADO DE SANTO AMARO

A guerra entre portugueses e nativos do novo mundo se estendeu pelo século XVI, principalmente a partir dos anos 1532, quando o Rei de Portugal começou a distribuir as capitanias, glebas de terras no litoral – território hoje compreendido entre o nordeste brasileiro, Olinda, Recife, Bahia, passando por Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo até o sul do país. Homens de confiança do Rei D. João III, recebiam léguas de terras e tudo que havia nelas, ou seja, floresta, animais e pessoas que nelas habitavam. O objetivo era continuar a exploração começada nos primeiros anos do século, quando os novos cristãos (judeus convertidos ao cristianismo) arrendaram o território para retirar e levar a árvore pau-brasil para a Europa. Os portugueses, com esta inciativa, queriam definitivamente marcar o território como seu, derrubar a mata Atlântica para implantar lavouras, erguer povoados e cidades, fundar instituições e expandir seus domínios além-mar, em busca de riquezas como ouro e diamantes.

No outro lado do Rio Buranhéin, na capitania de Porto Seguro, foi erguido o Povoado de Santo Amaro, uma pequena comunidade de portugueses com a intenção de dar continuidade aos projetos expansionistas da coroa portuguesa. Neste local, que pertencia aos povos nativos que há milhares de anos habitavam estas terras, vivendo de caça e pesca, os portugueses conquistaram a antipatia e o ódio dos homens da tribo Aimoré, guerreiros que conviviam e disputavam espaços com os integrantes das tribos Tupiniquim e Tupinambá, viventes no que chamamos hoje de sul da Bahia.

Os portugueses construíram suas casas, demarcaram suas posses, se embretaram na mata para cortar árvores que vendiam para os comerciantes que embarcavam o pau-brasil para o velho continente. Também procuravam e não encontraram ali ouro e diamantes, mas comiam caças e se transformaram em concorrentes dos nativos ao invadirem seu espaço. Muitas vezes, sentindo-se ameaçados pelos verdadeiros donos daquelas terras, os portugueses não hesitavam em usar suas armas de pólvora, causando mortes e desespero entre os nativos. Cada assassinato era uma revolta. Os nativos encontravam os corpos de seus familiares caídos na relva, ensanguentados, furados à bala. Era uma choradeira, uma comoção geral na tribo, faziam a cerimônia de funeral e preparavam a vingança. Os nativos, mesmo que os portugueses não enxergassem devido a cegueira ideológica e filosófica pregada pelos reis católicos, eram humanos, tinham sentimentos e atitudes. Sofriam de tristeza com a perda de um parente, de um amigo, e também sentiam raiva.

Esta situação se prolongou por alguns anos, desde a chegada dos invasores portugueses e a implantação do povoado na costa do rio. Os conflitos eram constantes entre portugueses e nativos donos das terras. Os portugueses que chegavam nos navios com documentos do rei diziam que as terras eram deles e começavam a demarcar, dividindo entre eles glebas e territórios, expulsando os nativos com armas de fogo e incendiando suas aldeias. Plantando lavouras de canas e instalando engenhos de açúcar, onde os trabalhadores escravos eram os nativos capturados à força. O que era um paraíso tropical de mata virgem, rios com água doce para o consumo e lindas praias de mar, transformou-se num inferno para os nativos que viviam assustados e fugindo das perseguições dos portugueses, que quando não os matavam, os transformavam em escravos para derrubadas de árvores e plantações de lavouras. Muitas mulheres nativas eram estupradas e levadas como escravas para servirem sexualmente aos portugueses. Esta situação foi causando indignação e raiva entre os nativos que perdiam suas terras e sua gente para aqueles barbudos, peludos, fedorentos, cheios de roupas cobrindo o corpo, com botas de couro, facões e armas de fogo que disparavam chumbo e sangravam até a morte suas vítimas.

Hataí era um cacique da tribo Aimoré que se rebelou e se levantou contra os portugueses invasores em meados do século XVI. Foi o começo da chamada Guerra dos Aimorés que se estendeu do sul da Bahia até as terras do Espírito Santo por longos e sangrentos anos.

(Os aimorés, aimbirés, aimborés ou botocudos eram uma etnia brasileira que habitava o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo nos séculos XVI e XVII. Ao contrário da maioria das tribos que habitavam o litoral brasileiro no século XVI, não falavam a língua tupi. Eram em número de 30.000. Nômades, se abrigavam em cabanas temporárias cobertas com folhas de palmeiras. Sobreviviam principalmente da caça. O escritor português Pero de Magalhães de Gândavo assim os descreveu em seu livro "Tratado da terra do Brasil- História da Província de Santa Cruz", de 1576:

“Chamam-se Aymorés, a língua deles é diferente dos outros nativos, ninguém os entende, são eles tão altos e tão largos de corpo que quase parecem gigantes; são muito altos, não parecem com outros nativos desta Terra.”

Como outras tribos tapuias, haviam sido expulsos do litoral pelos tupis pouco antes da chegada dos portugueses à região no século XVI, mas, a partir da década de 1550, tentaram retomar seu território. Com seus constantes ataques aos colonos portugueses e seus escravos nativos, foram os responsáveis pelos fracassos das capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo. Só foram vencidos no início do século XX. Sobrevivem até hoje sob a forma da etnia contemporânea dos crenaques. "Aimoré" é um termo tupi que designa uma espécie de macaco.)

O cacique Hataí, cansado das atrocidades dos portugueses na sua região, uniu forças com demais nativos de outras tribos rivais, e, unidos, com arcos e flechas, partiram para o ataque. Era uma noite de lua minguante, a floresta estava escura, havia muitas nuvens no céu e um princípio de chuva. Aos poucos as centenas de nativos foram cercando o povoado de Santo Amaro, na costa do rio, onde viviam as famílias portuguesas que cuidavam das lavouras de canas e dos engenhos de açúcar. Em alguns galpões estavam trancados os escravos nativos capturados pelos portugueses para trabalharem de graça nas lavouras, engenho e como transportadores de produtos para dentro dos navios.

A madrugada caiu e o povoado estava totalmente cercado. Ao comando de Hataí os nativos partiram em silêncio e libertaram os escravos de suas amarras nos galpões. Deram aos libertos tacapes, arcos e flechas. Um vigia português percebeu a movimentação e correu atrás dos nativos que fugiam para dentro da mata. Mirou com sua arma e atirou nas costas de um dos fugitivos que caiu morto na relva. Em poucos minutos o português foi crivado de flechas e também tombou na noite fatídica. Ao perceberem o barulho e o que se sucedia, os portugueses pularam de suas camas de arma em punho. Até um canhão foi movimentado para o pátio a fim de combater os nativos que aos gritos invadiam o povoado. Foram entrando nas casas e colocando fogo nos tetos de palha, nos móveis e nos sacos de açúcar que se amontoavam no engenho. Para dentro da pequena igreja de Santo Amaro fugiram as poucas mulheres e crianças, aos choros e gritos de socorro, Deus nos proteja! Todos os homens portugueses foram mortos até o amanhecer. As casas, o engenho e depósitos foram incendiados. Restou apenas a igreja com as mulheres e crianças que foram poupadas. O padre, escondido em um buraco embaixo do altar, conseguiu sobreviver, e quando os botocudos foram embora ele correu sozinho desesperadamente pela mata até ser capturado por outra tribo dias depois e levado ao sacrifício para ser comido. As mulheres e crianças foram levadas para a aldeia e assistiram ao ritual antropofágico onde os portugueses mortos foram esquartejados, assados e comidos pelos nativos que dançavam ao redor da fogueira em comemoração a mais esta vitória. Estas prisioneiras passaram os restos de suas vidas entre os nativos, vivendo como eles e nos seus costumes. Quando os furiosos aimorés juntaram os corpos dos portugueses e carregaram suas mulheres e crianças para a aldeia, incendiaram a igreja, deixando para trás apenas fumaça e cinzas do que um dia foi uma povoação de invasores europeus na terra do pau-brasil.

A Guerra dos Aimorés foi um conflito entre colonizadores e ameríndios que ocorreu entre os anos de 1555 e 1673, nos territórios atuais da Bahia e do Espírito Santo. Foi resultado de conflitos iniciais de tentativa de escravização das populações nativas e das entradas e bandeiras para extração e ocupação. Fernão de Sá, comandando bandeira no território capixaba, lutava contra os aimorés, cujos hábitos nômades os espalhavam desde as bacias dos rios Jaguaripe e Paraguaçu aos atuais municípios de Ilhéus e Porto Seguro. Os aimorés venceram e as feitorias dos bandeirantes foram destruídas por volta de 1558.

Porém a história dá voltas e os combatentes nativos que em muitos conflitos foram vitoriosos, acabaram derrotados pelas armas, canhões e exércitos numerosos de portugueses e outros estrangeiros mercenários. Implantou-se a cultura europeia na terra das palmeiras, as leis portuguesas, os governos, empresas, religião, costumes e uma população de brancos que se multiplicou e se apossou de todo o território continental, invadindo para o norte, até os confins da selva Amazônia, para o oeste até o pantanal, e o sul até os pampas. Fundaram cidades, ergueram igrejas cristãs, trouxeram os africanos como novos escravos e jogaram os nativos em pequenos espaços reservados para turistas apreciarem como históricos.

O povoado de Santo Amaro era localizado provavelmente onde hoje se situa a ilha dos aquários, no Arraial d’Ajuda, distrito de Porto Seguro. Ao atravessar a balsa no Rio Buranhéin, o visitante e os moradores atuais podem visualizar o local onde se deu um dos primeiros conflitos da longa guerra dos aimorés, episódio histórico de resistência nativa contra a invasão do Brasil, que antes os nativos chamavam de Pindorama, a Terra das Palmeiras.

Depois de escrever este conto histórico, ouvindo o barulho do mar na praia de Apaga Fogo, fiquei pensando: poucos anos após este conflito ergueram uma nova igreja, a de Nossa Senhora d'Ajuda, com a imagem da santa trazida em 1549 pelos padres Jesuítas. Recomeçava assim a colonização católica depois do massacre de Santo Amaro. A guerra entre brancos e nativos continuou por toda a Pindorama transformada em Brasil. E surgiu um novo povoado nestas bandas que hoje cresce e é polo turístico na chamada costa do descobrimento, se estendeu da igreja em direção ao mar, descendo a estrada do Mucugê, misturando as raças, surgindo um novo povo mestiço que passou a conviver.

Nascia uma nova nação.

Não seria esta a costa da invasão?

VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS
Enviado por VLADIMIR CUNHA DOS SANTOS em 30/04/2023
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