ALON KAI: MEMÓRIAS DE UM NÁUFRAGO

Normal nunca foi a palavra certa para definir a minha vida. Começando pelo meu nascimento, eu já nasci “amaldiçoado”. Minha mãe já tinha 7 filhas e quando descobriu que estava grávida de mim, tomou um susto achando que teria um lobisomem na família. Sim, ela era supersticiosa o suficiente para acreditar que a lua cheia faria efeito sobre nas noites de quinta-feira. Até hoje o meu pai guarda uma bala de prata no porão.

Cresci parecendo um filhote de orangotango de tão peludo que eu era. Na escola fui apelidado de Tony Ramos do Grajaú, mas até que eu gostava, já que o ator é um ícone da teledramaturgia brasileira. Sendo assim, pra mim era um elogio. Fui reprovado 8 vezes na 8ª série porque aquelas equações recusavam-se a colaborar com a minha lentidão.

Depois de ter terminado o colegial, não esperei que meu pai me mandasse arrumar um emprego. Saí e procurei sozinho. Não vou dizer que era a melhor coisa do mundo, mas o suficiente para limpar minha imagem de azarado perante a sociedade depois de ter sido preso 8 vezes por engano. Numa manhã de sol escaldante, estava na Motópolis quando recebi um pedido para entregar num prazo programado. Eu tinha exatamente 10 minutos para chegar até o porto mais próximo. Acelerei a Suzuki, avançando todos os sinais. Só faltava agora eu ser preso pela 8 vez por excesso de velocidade, mas desta vez sem engano.

Alcançando meu destino final, ainda faltando 1 minuto para encerrar o prazo de entrega, olhei atentamente para todos os lados a procura do solicitante. De repente, avistei uma figura misteriosa acenando pra mim próximo a escada do navio e acreditei ser a pessoa que estava procurando. Quando subi até lá, ela havia sumido misteriosamente como um passe mágica. Será que foi real ou o meu energético passou do prazo de validade e agora estou tendo alucinações?

Desviei de meus pensamentos quando fui surpreendido pela perturbadora buzina do navio, anunciando a sua partida. Foi nessa hora que me dei conta que eu estava embarcando numa viagem sem nem saber pra onde e sem ter passagem, ou seja, eu era um clandestino ambulante. Corri até a borda falsa achando que daria tempo de pular, mas o cais se distanciava cada vez mais e eu nunca fui bom nadador. Não me restava outra alternativa a não ser seguir viagem e tentar me acalmar. Pra longe eu naveguei, só Deus e eu agora. Dizem que alegria de pobre dura pouco e a minha se foi ligeiro.

Estava menos tenso com a navegação repentina ao observar os fortificantes raios de sol, porém algo sobrenatural aconteceu. Parecia coisa de outro mundo, mas o céu se fechou perturbadoramente e o sol que até antes era lindo de se ver, deu lugar a nuvens tenebrosas e sombrias. Os pingos de chuva começaram a cair e à medida que iam se fortificando, o meu nervosismo seguia o mesmo ritmo. A água invadiu o navio pela proa dianteira, inundando as salas de máquinas uma a uma, até finalmente atingir os aposentos da terceira classe. O peso da água içou a popa do navio no ar, ocasionando uma inevitável fissura, partindo a embarcação ao meio.

A última coisa que me lembro foi ter sentido um grande impacto sobre a minha cabeça e tudo escureceu. Ótimo...vou morrer sem ninguém saber e nem terminei de pagar a prestação da Suzuki. Mas voltando a minha situação realidade, acordei sentindo o meu corpo latejar como se um trator estivesse passando por cima de mim. A areia quente formigava em contato com a minha pele, não consigo dizer quanto tempo permaneci inconsciente, mas minhas roupas foram reduzidas a fiapos e não tinha a menor noção de tempo. Agora mais sóbrio do que estava acontecendo, tentei decifrar para qual lugar do planeta as águas me arrastaram. Uma porção de terras emersas cercadas de mar por todos os lados. Não demorou muito para perceber que eu estava numa ilha. Seria a ilha de Madagascar?

Levantei-me vagarosamente, observando detalhadamente o lugar e pensando numa possível alternativa de como sair de lá. É nessa hora que me arrependi de não ter entrado para a equipe de escoteiros mirins na infância. Sem nenhuma ideia inicial, já que meu cérebro não quis colaborar, decidi explorar o local. A ilha possuía uma grande variedade de plantas, com flores exóticas e frutas de fácil acesso. Uma certeza, eu tinha: de fome eu não morro. Enquanto me deliciava como uma banana, vi uma uma cena inusitada. Um coelho branco, vestindo um colete e com relógio de bolso em sua mão direita.

Era a primeira vez que eu via um coelho falante. Talvez o impacto na minha cabeça tenha sido um pouco mais forte do que imaginei e agora estou vendo coisas. Ignorando meus pensamentos, resolvi me aproximar do orelhudo de colete, mas à medida que eu chegava mais perto, ele se distanciava e apenas repetia uma única frase: ESTOU ATRASADO!

No coração da ilha, minha tentativa de alcançar o coelho branco falhou miseravelmente e me sentei um pouco para descansar. Meus pulmões ardiam com a falta de fôlego e logo tentei regular ao estado normal. Foi nessa hora que percebi alguns olhares me encarando. Eles eram esquilos, pássaros, uma coruja e uma tartaruga, além de tâmias, guaxinins e cervos. Pareciam curiosos com a minha presença, mas tranquilos o suficiente para se aproximarem de min sem medo. Notei que as criaturinhas queriam me levar algum lugar e optei por seguí-los.

Um pouco mais a frente avistei dois piratas com vestimentas pra lá de estranhas. Um deles possuía uma espécie de gancho em sua mão esquerda e longas tranças negras. Já o outro aparentava ter mais idade, com baixa estatura e os fios capilares eram brancos como a neve. Cavavam profundamente o chão em busca de algo, certamente a procura de um tesouro. Já tinha lido algumas histórias sobre piratas e sei que ambos não são muito amigáveis com forasteiros. Saí em disparado de lá antes que eu fosse o próximo a andar na prancha.

Mais uma vez eu me vi correndo feito um maluco por algo que nem sei se era real ou fruto da minha imaginação. Conforme já havia dito antes, normal nunca foi a palavra certa pra definir minha vida. Fui de encontro a um buraco que estava disfarçado com alguns galhos, talvez uma armadilha animalesca e senti o impacto do meu corpo, até então já doído, contra o chão. Gritei assustadoramente em protesto para que alguém ou algo me tirasse de lá. Oh céus! é muito azar!

Como uma luz no final do túnel, olhei para cima e meus olhos foram de encontro a uma bela ameríndia, que aparentava ter 18 anos, magra, de pele bronzeada, longos cabelos negros e compridos como talha de palmeira, e com uma tatuagem avermelhada no braço direito. Pocahontas é mais bonita pessoalmente e me ajudou a sair do buraco, oferecendo para cuidar de minhas feridas com ervas medicinais. Ela parecia entender sobre as plantas e se comunicar com os animaizinhos que até pouco tempo estavam me seguindo.

Logo em seguida, ela me convidou para conhecer sua tribo e aceitei imediatamente. Afinal, estava morrendo de fome. Seu pai, o Chief Powhatan, quando me viu, não foi muito com a minha cara e achou que eu era alguma espécie de espião. Resultado? Não demorou muito para uma multidão de ameríndios enlouquecidos começar a me perseguir. E mais uma vez estava correndo para salvar minha pele. Desta vez eu não cai em nenhum buraco, mas acabei tropeçando em uns manguezais que tinha pelo caminho e bati minha cabeça fortemente em uma pedra. Meus olhos se fecharam lentamente, a visão borrada dos ameríndios se aproximando de mim foi a última coisa que vi antes de apagar por completo.

Despertei parecendo uma chaleira em ebulição. Quem me visse, podia jurar que eu tinha competido na corrida de São Silvestre. Isso é o que dá ficar assistindo “Os Deuses Devem Estar Loucos” porque eu realmente estava louco de sonhar que estava num navio. Pobre do jeito que eu sou, só na outra encarnação.

Lírio Reluzente
Enviado por Lírio Reluzente em 03/06/2022
Código do texto: T7530227
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