A íbis de bronze
O sol havia se posto por trás dos minaretes esguios de Shkérsielas, antigo distrito erguido junto a um remanso lamacento do rio Záish, quando Keita chegou às portas do alcácer de Aleta Volle. Um vento frio soprava do rio, e como havia prometido à Nora Pole, Keita havia saído de casa protegida: pusera uma echarpe de lã à volta do pescoço. Não havia guardas do lado de fora da fortificação, cercada por muros brancos de adobe com mais de três metros de altura, mas ela sabia que estava sendo observada lá de dentro; prova disso é que antes mesmo que batesse na aldrava, um vulto escuro assomou à única janela da torre quadrada que encimava a entrada principal, seis metros acima do solo; o interior da sala do vigia refulgia num brilho vermelho, como se algum fogo infernal queimasse lá dentro.
Keita bateu assim mesmo, duas vezes, e sem que nenhuma palavra fosse dita, a grande porta de madeira abriu suas folhas de par em par. Diante dela, um corredor branco abobadado que conduzia a um pátio interno, com archotes queimando sem fumaça ao longo das paredes. Sem hesitar, ela adentrou a passagem e as portas se fecharam silenciosamente atrás dela.
O pátio interno, cercado por construções de dois andares, ostentava tamareiras e um chafariz com uma íbis de bronze jorrando água pelo bico. Num banco de pedra, em frente ao chafariz, Keita viu sentada uma serva de Aleta Volle, rosto e cabeça ocultos por um véu, apenas os olhos negros de fora. Keita parou a dez passos de distância dela e fez uma mesura.
- Vim ter com sua mestra.
- Qual seria o motivo da sua visita, recuperadora? - Indagou a mulher, sem fazer menção de erguer-se ou de convidar a visitante a sentar-se.
- Conheci um recuperador... ou alguém que se faz passar por um... que utiliza técnicas mágicas que talvez interessem à Aleta Volle.
Os olhos da serva estreitaram-se.
- Você fala de Radomirs Jansons - redarguiu.
Keita ergueu os sobrolhos.
- Então... vocês o conheciam?
A mulher fez um aceno de cabeça.
- Fomos avisados de que ele viria, e qual era seu objetivo em Lîdzenums.
- Então... ele trabalha para vocês? - Indagou Keita.
- De modo algum; não trabalhamos com esse tipo de escória - retrucou a mulher. - Mas fomos incumbidas de vigiá-lo para que conclua sua missão em segurança e atravesse a baía de volta.
"Em segurança", anotou mentalmente Keita. Será que Aleta Volle não sabia que ela tentara roubar o Livro das Lágrimas antes de Radomirs? Ou sabiam e não davam a mínima?
- Bom... deduzo então que ele ainda não concluiu a missão - arriscou.
- Minha mestra quer lhe incumbir de escoltar o ladrão até que ele parta de volta para Mazaósta, - prosseguiu imperturbável a mulher - e se possível até o destino final da viagem, caso perceba que ele não está disposto a cumprir sua parte no trato.
Keita ficou em silêncio. Aquilo era novidade; viera saber informações sobre Radomirs e agora estava sendo oficialmente contratada para vigiá-lo, até que ele chegasse... a algum lugar.
- É uma proposta muito tentadora, e estou profundamente lisonjeada pela confiança em mim depositada pela sua mestra, - disse Keita - mas tenho uma porção de assuntos pendentes, e no momento não poderia me afastar da cidade por conta deles.
A mulher a encarou fixamente.
- Creio que você não está entendendo a orientação da minha mestra, recuperadora. Ela não está lhe pedindo para que acompanhe o ladrão; esta é uma ordem.
E antes que Keita pudesse replicar, ela complementou:
- Ou você prefere que Gunarts Dreimanis saiba que foi você quem roubou o Livro das Lágrimas?
Keita engoliu em seco; havia caído numa armadilha.
- [Continua]
- [30-05-2022]