A criatura no covil
O brilho mortiço do rubi, preso à tiara que lhe servia de lâmpada de cabeça, iluminou o cofre de bronze num canto do estúdio mergulhado em penumbra. Radomirs Jansons soltou a respiração, aliviado: o móvel, apoiado em quatro patas ornamentais que poderiam ser de lobo ou leão, ostentava apenas três cadeados em sua fachada, nenhum deles aparentemente dos mais complexos. Radomirs distendeu os dedos e enfiou uma gazua na primeira fechadura. Ela abriu-se instantes depois com um clique.
Após alguns poucos minutos, removeu o último cadeado e estava prestes a pôr a mão na maçaneta do cofre, quando ouviu uma voz feminina imperiosa às suas costas.
- Não toque nisso!
Radomirs não se virou de imediato, porque algo assustador acontecera bem diante dele: o cofre de metal havia se metamorfoseado em algo bem diferente. Era uma criatura viva, composta basicamente por um corpo que não era mais do que uma bocarra preenchida por presas afiadas e uma língua enorme, sobre patas com garras recurvas: um metamorfo!
- Não se mexa, ou ele te engole - alertou a voz, agora mais próxima.
Diante do monstro que rosnava a um passo do seu rosto, Radomirs ficou tão imóvel quanto pôde, enquanto o suor começava a lhe escorrer pela testa.
- Agora, sem se virar, erga-se bem devagar, mãos para cima - comandou a voz. - Se fizer qualquer gracinha, Mazamute vai te estraçalhar em segundos.
Radomirs agiu como lhe fora ordenado. Parou com os braços no ar, olhando para a parede, como uma criança de castigo. Ao menos, não sentia mais o hálito quente do monstro no rosto, conformou-se.
- Vire-se. Devagar - disse a voz, e finalmente, iluminada pela luz sangrenta do rubi, ele se viu diante de sua captora. Era uma mulher de idade indefinida, mas certamente com mais de trinta anos, vestida de branco. Sua pele era pálida, e os cabelos negros lhe caíam até a cintura.
- Você sabe quem eu sou? - Indagou, encarando-o de modo complacente.
Radomirs apenas balançou a cabeça, sem ousar emitir qualquer som. Estava bem cônscio da aberração que rosnava às suas costas.
- Pode falar - autorizou a mulher. - Mazamute só vai atacar se achar que estou sendo ameaçada.
Radomirs anotou mentalmente a informação, embora o conceito de ameaça para um monstro aparentemente sem olhos, narinas ou ouvidos lhe parecesse um tanto vago.
- Você é Dzelme Gibala - pronunciou baixinho, boca seca.
- Também conhecida por... - ela incitou-o, braços cruzados e expressão desafiadora.
- A Senhora das Tristezas - declarou Radomirs, subitamente captando o significado efetivo do título. Tristeza era um dos sentimentos que afloravam agora, por ter decidido entrar no covil de uma das mais poderosas bruxas das Augstienes, em busca da fórmula da transmutação de metais que supostamente ela mantinha trancada num cofre. O outro, era de decepção consigo mesmo.
- Você sabe o que eu deveria fazer com você, não é? - Indagou calmamente Dzelme Gibala.
- Espero que seja me entregar às autoridades, não me fazer de lanche do seu metamorfo - redarguiu Radomirs.
A sombra de um sorriso cruzou o rosto oval da bruxa; ela descruzou os braços.
- Acho que as autoridades das Augstienes não têm grande apreço por mim - admitiu Dzelme Gibala. - Mas também penso que desperdiçar alguém com o seu talento seria, bem... criminoso.
Pela primeira vez desde que a bruxa entrara no estúdio, Radomirs sentiu que poderia sair dali vivo; mas permaneceu em silêncio, para descobrir qual rumo a conversa tomaria.
- Você é corajoso - disse a bruxa. - Ou estúpido, ainda não sei bem em qual percentagem. Contudo, é capaz de abrir fechaduras, mesmo quando não percebe que são enfeitiçadas e que estão ali apenas para manter uma criatura mágica numa forma que não é a sua. Mas creio que posso lhe utilizar para fazer um trabalho no qual não gostaria de envolver meu nome diretamente. Interessado?
- Se me prometer que vou sair daqui com meu corpo intacto, serei todo ouvidos - declarou Radomirs.
Dzelme Gibala ergueu o braço direito e fez um gesto no ar. Subitamente, uma luz branca inundou o ambiente.
- Sente-se - ordenou, indicando um ponto atrás de Radomirs.
Ao virar-se para trás, ele percebeu que o cofre convertera-se numa cadeira de armar - com quatro patas esculpidas que poderiam ser de lobo ou leão.
- Pode sentar-se sem medo - prometeu a bruxa, parecendo divertir-se com a expressão de pavor no rosto do rapaz.
Com infinita cautela, Radomirs assim procedeu.
- [Continua]
- [21-04-2022]