O DIA EM QUE DESEJMOS QUE A ASNEIRA DA “TERRA PLANA” FOSSE VERDADE
Sábado de carnaval. Descer a serra. Devagar, na quietude: é possível? Sim: pela Estrada Velha de Santos. Em vez de carros, pés; em vez de barulho e estresse, quietude e tranquilidade.
Dia de sol ameno, carregado daquela ansiedade boa do não se saber o que vem. Por mais que se tenha lido, ouvido falar, assistido em vídeo a descida pelo Caminho do Mar, o estar pessoalmente passando pela experiência é sempre uma incógnita, a espera de uma surpresa em cada curva – o querer a surpresa.
Deixamos a carro descansando do duro ofício de carregar passageiros nas costas e confabulamos para decidir: descer pela estrada ou pela Calçada do Lorena? Preferimos a primeira opção, para passar pelos monumentos históricos e locais de observação da serra e da baixada.
A Represa Billings, com toda sua perene beleza, nos serviu de passarela até o marco de divisa das cidades de Santos e São Bernardo. Demos início à descida bípede, conduzidos por nossas máquinas mortais.
Tudo era felicidade, poses, registros. Um começo digno de passeio prazeroso. Caminhada serra abaixo como azes da vida aeróbica diária, useiros e vezeiros dos exercícios para o corpo saudável.
A estrada íngreme, massageada por pisadas rítmicas, ora descendo, ora subindo, exibia um cenário de centenas de anos atrás, quando as árvores, as águas, os ares dominavam o mundo. Há muito, ela descansa do atropelo dos quadrúpedes fumacentos.
Essa tranquilidade que exala dos seus poros é intensificada pelo maná que distribui ao longo de sua extensão. Várias bicas expelem a água gelada que minam das encostas que moldam a estrada. Ou se banha na bica ou se derrete antes do fim do caminho. Nos banhamos em cada uma delas; sem dó. Porque outra sensação que a estrada exala dos seus poros é a de calor.
Acompanhando a passagem das placas de sinalização dos quilômetros percorridos vem o aquecimento global e determinante dos pés. Os dedões vão sendo socados à ponta do tênis, causando o pisar manco, e as batatas vão sendo assadas na grelha das veias tensas.
Como náufragos na miragem da terra firme ou como desgarrados no deserto, na do poço com coqueiros, passamos a desejar um trecho de terra plana. Não, não passamos a acreditar na asneira pseudofilosófica da “terra plana”. Tudo o que queríamos era um momento em que a estrada nos permitisse caminhar sozinhos, sem nos empurrar ladeira abaixo; um alívio para nossas panturrilhas quase desfalecidas.
Placa Km 49 Sul. A estrada continuava em declive e feita de curvas intermináveis. A retidão, como no deserto, foi só miragem. Embora minha parte inferior do corpo se movesse sem que eu percebesse, como se adormecida, eu demonstrava ânimo de quem poderia até voltar andando. Ai, ai, só rindo.
Mas, como que por encanto, surgiu a retidão. Lá ao longe pairava incólume o marco de construção da primeira estrada na América Latina calçada inteiramente de concreto. E com ele todo um trecho em linha reta. Demos graças à nossa resistência, ao nosso desejo de fazer essa caminhada, à força de nossa vontade.
Depois de descansarmos, só pensamos em uma coisa: entrar na van e sermos conduzidos agora pelas quatro rodas daquela máquina dos deuses.