O Harèm
Era em 258 as mulheres no palácio do Sultão Armadan. Não havia aquele que não invejasse o glamour de sua vida nababesca e luxuosa. Todas viviam satisfeitas e felizes pelo simples fato de ser a vida no serralho repleta de luxo oriundo do poder do soberano. As tapeçarias eram bordadas a ouro. Cada mulher possuía a sua residência própria e individual dentro da corte e tinha a liberdade de entrar e sair do palácio de Istambul a hora que bem entendesse sem dar satisfação de suas atividades, nem mesmo ao paxá que a sustentava em tudo, cuidava de sua segurança, tornando-a bela e famosa em toda a Turquia. Mas havia um preço a pagar por todo esse luxo e conforto: Armadan não as dividia com ninguém; teriam que ser dele, exclusivamente. Sem que notassem, embora sabedoras, tinham seus passos vigiados aonde quer que fossem e não podiam sair do país sem a autorização do sultão ou de um ministro de sua confiança. Pagariam com a vida caso engravidassem de outro homem ou fossem pegas em um conluio amoroso.
Armadan visitava uma a cada dia em suas residências particulares sem, no entanto apegar-se a nenhuma em especial; cuidava para que o sentimento não o envolvesse e este era, para ele, o pior obstáculo. Sabia que se o coração lhe abarcasse a razão teria problemas. Por isso não se envolvia. Sua superioridade era marcante. Seus contatos com as amantes resumiam-se em simples satisfação do corpo físico e do apelo sexual presente em qualquer ser humano.
Um dia ele recebeu Salameia em sua Corte. Vinha da Síria, em substituição a uma das concubinas que falecera acidentalmente. Com suas maneiras discretas, sua palavra suave e seu jeito simples de se portar, Salameia não despertou a princípio, em Armadan nenhuma afeição especial. Ele então adiou sua visita que seria naquele dia, como geralmente fazia ao receber uma nova amante. Salameia, no entanto, não aceitou esta atitude de Armadan e, numa ação considerada desrespeitosa perante o grande sultão, chamou-lhe a atenção com uma ameaça.
- Não foi para isso que vim – disse sem medo e cheia de naturalidade. Se não me quer retorno para o meu país. Não vou me enfiar num quarto a espera de um marido que nunca aparece.
- Ah! Ah! Ah! O que pensa que é? – disse Armadan num acesso de riso, pois estava, nesse dia, humorado além do costume.
- Venha me visitar e saberá – foi a resposta simples e lacônica de Salameia.
Aquilo intrigou o sultão que, embora surpreso e curioso, não foi nesse dia ao seu encontro e nem ao de nenhuma outra. Chamou um de seus conselheiros para se informar melhor a respeito daquela mulher. Nunca havia recebido, por parte de seu harém, um tratamento igual ou semelhante. Tinha por hábito encontrar mulheres dóceis e submissas, quase indiferentes. Não obteve, como pensava, informações relevantes sobre o passado de Salameia. Viera, como a maioria, vendida como escrava, disposta a servir ao sultão em troca de conforto e segurança. Alguns dias mais tarde acontece o encontro.
Foi uma noite tão especial para Armadan, tão acostumado a orgias sexuais, que ele mudou totalmente o seu jeito de se relacionar com as mulheres da corte. Salameia diferia em tudo; desde o tratamento para com o califa, que não deixava de ser respeitoso, da forma de praticar o amor, do tom da voz. Enfim, pareceu a Armadan um ser de outro mundo que o estava enfeitiçando; sua rotina mudou completamente após o primeiro encontro no quarto de Salameia. Antes de sua chegada, dificilmente repetira, com a mesma amante, uma noite de sexo.
Agora o homem esquecia as outras moças. As visitas a Salameia tornaram-se intervaladas de semanas e até dias. No começo, por ser ele o chefe maior do império otomano, isto não se deixou transparecer na rotina do palácio nem nas responsabilidades politicas de Armadan. Até que mudanças começaram a ocorrer.
Salameia começou a ter privilégios dentro dos domínios da corte, o que irritava as outras amantes que, invejosas, passaram a destratá-la. A pureza de Salameia não era um dom que ela exercia por vontade própria ou premeditação, mas uma qualidade rara e natural. Era certo que tinha convicção de sua natureza, de seu toque diferenciado que conquistara o coração do soberano Armadan. Viam-na, com uma constância incomum, ao lado dele que se orgulhava de apresentá-la a vizires e outros ministros. Nas grandes cerimônias estava sempre presente, com atenções especiais e paparicos em detrimento de outras não menos formosas e apresentáveis.
Como toda bolha atinge seu ponto máximo de saturação, não foi diferente no caso de Salameia. Tramaram contra a moça e, numa ocasião propícia, em que Armadan se encontrava ausente, levaram a cabo o sequestro. Sumiram com Salameia, o que fez desmoronar a vida do poderoso homem Turco. Foram dias de angústia e desespero. Não conseguiam entender como um líder, dominador de exércitos e detentor da prerrogativa de ter a seu lado, em sua própria residência palaciana, tantas mulheres exuberantes e desejadas, poderia se importar tanto a ponto de sofrer e perturbar os negócios da corte por causa do sequestro de uma delas.
Mas Armadan estava mesmo arrasado e, muito mais do que isto, furioso com todas as mulheres do seu harém. É certo que fora um grupo de insatisfeitas que armara e executara o sequestro. Contudo, não havia pistas, mesmo após uma investigação seguida de interrogatório minucioso. Todas as residências do palácio foram vasculhadas cuidadosamente; cada canto esquadrinhado, sem nenhum sinal de Salameia. Como todas as concubinas continuassem levando vida normal, entrando e saindo como de costume, Armadan interrompeu esse procedimento de suas mulheres para ver no que resultava. Dias se passaram sem notícias de sua preferida. Desesperado, temente de um assassinato ele forçou a situação. Reuniu todas no grande salão e exigiu a verdade.
-Enforcarei uma a uma se a verdade não aparecer. Quero Salameia de volta ainda hoje ou todas pagarão pelo seu desaparecimento. Sei que estarei sacrificando inocentes, mas não tenho escolha. Porém, se as culpadas me entregarem a vítima sã e salva, prometo o perdão e esquecer o ocorrido.
Não houve manifestação no recinto; seguiu-se um silêncio mortal. É certo que esta oferta de Armadan não surtiria efeito. Seu ódio era imenso e seu temperamento, já conhecido, não fornecia garantia de que cumpriria o prometido. Um ministro, ao lado do soberano, apresentou-lhe ao ouvido uma sugestão para o caso.
- Excelência – disse o vizir – Melhor seria que desse a chance às sequestradoras de trazerem Salameia de volta anonimamente. Não haveria nesse caso o medo de uma provável punição ou de um não cumprimento da sua promessa e o senhor teria, do mesmo jeito, a moça de volta.
Era uma ideia sensata e Armadan a transmitiu às suas mulheres. Para que isto funcionasse precisava devolver-lhes a liberdade de sempre e foi o que fez no dia seguinte. O dia transcorreu sem novidades e a noite trouxe a esperança ao todo poderoso do império Otomano de reaver a mulher que transformara o seu coração. Algo em seu espírito lhe dizia que fosse à residência de Salameia como tantas vezes fizera para o desfrute de uma felicidade amorosa que somente com ela havia encontrado. E qual não foi a sua surpresa quando entrou em seu quarto e ali estava a amante; linda, encantadora e sorridente como se nada tivesse acontecido. O que realmente se passou era um segredo de Salameia. E em troca de sua revelação ela queria de Armadan um único procedimento. Que se desfizesse de todas as mulheres da corte e tivesse nela sua única e verdadeira amante. E ele não pensou duas vezes. Apaixonado que estava, foi o que fez. E viveu um verdadeiro amor; o primeiro e último sultão da Turquia que foi feliz ao lado de uma única e fiel companheira