O Conto do Guerreiro

O Sol começava a se levantar sobre o horizonte e uma leve brisa fresca da primavera percorria as ruelas da velha cidade de Osburn. O céu estava um pouco nublado, mas os raios do grande astro encontravam espaços entre as nuvens e iluminavam a região com grandes feixes de luz. Lentamente algumas poucas pessoas saiam de suas casas para trabalharem nos pequenos campos de trigo ao redor da cidade. Naquele pequeno recanto, cercado pela floresta que abraçava a parte norte da cidade e a cadeia de montanhas de pico gelado mais ao sul, não haviam construções altas, no máximo algumas estalagens de dois andares que recebiam mais viajantes.

A maioria das casas, apesar de velhas, haviam sido erguidas com tijolos de pedra, apenas algumas mais antigas tinham suas estruturas feitas de madeira retirada da própria floresta mais ao norte. As ruelas e ruas principais eram quase todas de terra batida, algumas mais importantes eram de cascalho, mas o tempo e o uso já haviam desgastado aqueles solos.

Em certo momento algumas crianças brincavam com pedrinhas de cascalho no fim da rua principal, elas empilhavam as pedras e arremessavam uma outra a fim de derrubar apenas a pedrinha no topo da pilha.

- Vai lá Rafú, eu duvido você acertar aquela! - Disse um garoto desafiando o outro. A maioria das crianças tinham entre dez e doze anos.

- Então saia da minha frente e você vai ver só! - Respondeu o tal Rafú. O menino era mulato e a cor de seus olhos tinha um tom amendoado. Suas roupas eram sujas e rasgadas, mais do que a das outras crianças, andava descalço e mantinha os cabelos grandes e bagunçados.

- Quando Rafú arremessou a pedrinha ela quicou na pilha de pedras com força e viajou por cima de uma cerca, caindo numa varanda de uma velha casa de madeira, a última da rua principal.

- Ah não! - Disse Rafú, enquanto as outras crianças se entre-olhavam.

- Ih, haha! Vai lá pegar!. - Falou o garoto que havia desafiado.

- Não vá Rafú, deixe pra lá… - Disse uma garotinha ao lado de Rafú.

- Se você conseguir pegar de volta eu te dou um bolinho de farinha que sobrou lá em casa. - Desafiou mais uma vez o garoto.

- Tudo bem então. - Respondeu Rafú, em seguida respirou fundo e pulou a cerca de madeira.

Aquela era, provavelmente, a casa mais velha da cidade. Quase toda sua madeira tinha um tom mais escuro, as janelas e portas pareciam ser de madeira mais nova e a construção se elevava até um primeiro andar. Era visível que atrás da casa, após um longa distância, havia a floresta ao norte, não eram terras muito vastas, mas o suficiente para fazer daquele proprietário o mais rico da cidade.

Da cerca até a varanda havia um estreito e curto caminho de terra batida, cercando a casa havia uma vegetação de capim seco que alcançava o quadril de um adulto. Então não foi difícil para Rafú se esconder por alí e seguir o caminho agachado.

Lentamente o menino tentava se aproximar da varanda como se fosse algo extremamente perigoso, suas sobrancelhas grossas e escuras tremiam a cada passo dado. Quando Rafu estava a um metro e meio de distância da varanda a porta da frente se abriu lentamente com um rangido esganiçado. Nesse momento as outras crianças, que observavam atentamente do outro lado da cerca, partiram em disparada e Rafú parou estático onde estava.

Saindo do breu de dentro da casa, um homem de estatura mediana, cabeça raspada, barba por fazer e pele escura, carregava consigo um bastão de metal que tinha quase sua altura. Seu olhar sisudo percorreu o trajeto das crianças enquanto elas corriam dali, até que seu olhar cruzou com o de Rafú, ainda estático agachado no capim alto. Esse instante não durou nem dois segundos, mas para o pequeno garoto deve ter se arrastado por muito mais tempo pela sua expressão assustada. Em seguida o homem ergueu o bastão e com um único golpe arremessou a pedra para longe, voltando para dentro da casa e batendo a porta logo em seguida. As pernas de Rafú ainda tremiam um pouco quando o menino voltou a si e abandonou o local correndo.

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O Sol já estava no pico do meio dia quando os moradores de Osburn presenciaram a entrada de um batalhão de soldados trajando armaduras escuras bastante singulares, bem ajustadas ao corpo, as quais incluíam um elmo com um brasão vermelho num formato de ‘X’ em sua fronte. Carregavam consigo espadas, arcos, lanças e outras armas. Haviam cerca de trinta deles, mas na dianteira do grupo caminhava um em especial, que além da armadura, tinha uma capa vermelha presa em suas ombreiras.

Os habitantes de Osburn não se atreveram a se aproximar do batalhão, afinal a má fama do Exército dos Quatro Cantos já o precedia. Então o povo observava a situação de longe, enquanto os soldados caminhavam com imponência pela rua principal da cidade. Em determinado momento o soldado de capa que ia na frente estacou e o resto imediatamente parou atrás dele, em seguida alguns soldados se reuniram em sua volta quando ele desenrolou um mapa de papel espesso.

Por alguns minutos predominou no local um silêncio sombrio, os únicos resquícios de movimento eram os das sombras das aves que sobrevoavam a região metros acima e a poeira levantada pela brisa, até que finalmente o soldado com o mapa apontou para o final da estrada principal. Em seguida metade dos soldados se encaminharam até lá, juntamente com seu líder, enquanto o restante se dispersou pela cidade.

Pouco depois os soldados pararam bem em frente a velha casa de madeira no final da estrada, foi só então que o soldado de capa guardou o mapa em sua armadura e retirou seu elmo, revelando ser uma mulher negra de cabelos curtos, olhos acinzentados e rosto de traços suaves, exceto por uma espessa cicatriz que percorria seu rosto, da base do ouvido, passando pela bochecha e alcançando seu pescoço.

- Vocês dois, venham comigo. - Disse ela para dois soldados à sua esquerda, enquanto já avançava abrindo a porteira da cerca de madeira.

Alguns passos depois e os três alcançaram a porta de madeira velha na varanda, a mulher ainda erguia a mão para bater na porta quando esta se abriu de forma brusca.

- Saiam das minha terras. - Disse o homem ainda dentro da casa e com o olhar focado na mulher de armadura.

- Vinhemos lhe oferecer uma oferta de compra para seu terreno. - Prosseguiu ela, como se não tivesse ouvido o que o homem havia dito.

- Minhas terras não estão a venda. - Disse ele com mais rispidez. - Agora sumam da minha frente.

- É a sua última palavra, senhor? - A mulher questionou.

Não foi necessária mais nenhuma palavra, o olhar compenetrado e fulminante do homem já era mais do que suficiente para responder a pergunta.

- Muito bem. - Disse ela e lhe deu as costas, saindo da mesma forma que havia chegado.

Algumas horas já haviam se passado e, aparentemente, o clima estava menos tenso na cidade, provavelmente devido ao sumiço dos soldados. Antes estavam espalhados por quase todas as ruelas, agora no entanto, não se via nenhum.

O dono da velha casa estava sentado e de olhos fechados em uma poltrona desgastada pelo tempo, seu bastão metálico repousava sobre suas pernas. Na janela, à sua esquerda, era possível ver o crepúsculo se aproximar iluminando seu rosto cansado, a madeira do piso tinha grande manchas escuras, exceto por algumas tábuas novas que teriam sido colocadas para tapar buracos. Da mesma forma ocorria nas paredes, além das manchas haviam pequenas frestas que permitiam a entrada de feixes de luz, dando um ar mais sombrio devido ao breu no lugar, pois não havia sequer um vela acesa.

Subitamente o homem ouve batidas na porta, então lentamente se levanta e anda até lá empunhando o bastão. Quando a abre, novamente de maneira brusca, dá de cara com um outro homem, um pouco mais velho que ele, tinha uma barba farta e grisalha que alcançava seu pescoço, seu cabelo era bagunçado, apesar da calvície.

- O que eles te disseram, Urius? - Perguntou o visitante com ansiedade no olhar.

Urius baixou o bastão e largou a porta, retornando para a velha poltrona. O convidado entrou e fechou a porta em seguida, prosseguindo com a conversa.

- Me diga, o que eles falaram pra você? - Continuou questionando.

- Eles querem minhas terras. - Respondeu Urius, de forma seca e direta.

- Diga que vendeu! - Suplicou o homem enquanto andava de um lado para o outro na sala, mas em resposta só ouviu silêncio. - Urius, você precisa aceitar. Essa gente é perigosa. Eu já ouvi sobre o que eles fizeram em outras cidades. O Exército dos Quatro Cantos não para por nada, nem por ninguém.

- Não vou entregar nada para eles. - Disse Urius, segurando o bastão com mais firmeza.

O homem mais velho, então, sentou-se numa outra poltrona ao lado de Urius, respirando fundo. Olhava em volta com calma, como se contemplasse o lugar.

- Eu sei o quanto tudo isso é importante para você, mas a sua vida vale mais, meu amigo.

Um longo minuto de silêncio imperou até que o visitante prosseguisse, fitando o teimoso dono da velha casa.

- Você acha que ela iria querer que você terminasse ass - Ainda tentava questionar quando Urius o interrompeu subitamente.

- Não! - Exclamou Urius. - Ela não tem nada com isso! Já cansei dessa conversa, saia. Quero ficar só. - Disse ele, se levantando e abrindo a porta.

O homem, então, se levantou com expressão abatida e ao passar por Urius concluiu seu argumento.

- Ela tem tudo com isso, Urius. Eles dois tem. - Disse e saiu pela porta em seguida.

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O Sol já havia se escondido no horizonte e a Lua estava alta no céu quando o velho homem caminhava pela rua central até sua casa, nesse instante Rafú surgiu, sabe-se lá de onde, e o abordou com imensa curiosidade. Passou o trajeto todo fazendo perguntas.

- Ei senhor Irilon, como conseguiu sair daquela casa velha vivo? Aquele homem não bateu no senhor? Tem alguém morto dentro da casa dele, foi o que me disseram, é verdade?

- Já é noite, vá para sua casa Rafú. - Disse Irilon.

- Não tô com sono, eu fui ver o que aqueles homens de armadura tavam fazendo. - Disse o pequeno.

- O quê? - Questionou Irilon, estacando em frente a sua casa.

- Aqueles homens com espadas que entraram hoje na cidade. Eles tão lá na estalagem do senhor Vaus. Eu fui ver. - Falou Rafú.

- E… O que você viu? - Perguntou Irilon, sussurrando.

- Tinha um monte deles dormindo, outros ficavam olhando uns mapas. Mas eu ouvi uma mulher brigando com alguém. - Confidenciou o garoto.

- Ouviu algo mais? - Irilon já parecia envolvido com a informação.

- Não, foi só isso. Mas eu posso ir lá de novo ver mais. - Disse o pequeno com empolgação.

- Não. Vá para casa e... - Antes de concluir a frase Irilon viu o garoto sair em disparada.

- Eu vou lá de novo! - Gritou o menino quando já ia longe, deixando para trás um senhor intrigado.

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Do alto do céu, a Lua cheia esbanjava sua luz sobre Osburn, as tochas espalhadas pela cidade mantinham as ruelas iluminadas com mais intensidade e indicavam quais casas ainda estavam em atividade. Uma dessas construções era a estalagem onde o batalhão estava acomodado.

Era uma estrutura bastante rústica, não tinha nada de elegante. No térreo havia um pequeno salão com poucas mesas espalhadas e um balcão de bebidas, além da cozinha. Nos dois andares acima haviam apenas quartos, no total cinco. Lá dentro os soldados haviam tomado conta de todos os quartos, corredores, até mesmo a recepção. Entretanto o velho estalajadeiro, Vaus, não tinha do que reclamar, pois há muito tempo seu empreendimento não recebia mais do que dois ou três hóspedes ao mesmo tempo.

Em um dos quartos no segundo andar havia uma intensa segurança por parte dos soldados, dois deles tomavam conta de uma porta e outros cinco faziam rondas no corredor.

Em determinado momento um dos soldados se aproximou dessa porta, com a devida permissão dos soldados que a protegiam, e bateu. Em seguida a porta se abriu, apenas o suficiente para ele ver o rosto da mesma mulher que oferecera a oportunidade de compra das terras de Urius.

- Capitã Elitóia, os soldados que a senhora pediu já foram avisados sobre a missão designada. - Disse o soldado com a voz abafada pelo elmo.

- Certo, será tudo muito rápido, os quero prontos amanhã bem cedo. - Disse ela e fechou a porta com força em seguida.

Quando retornou para dentro do quarto ela se aproximou da única janela do cômodo, a qual tinha visão para a entrada da cidade, enquanto olhava fixamente para algum lugar ao longe.

- Você parece entediado. - Disse ela.

- Claro que pareço entediado, dezenas de missões por aí e o E4C me manda pra esse fim de mundo. - Disse um homem sentado numa cadeira de madeira num canto do quarto, mantinha seus braços cruzados e seu rosto oculto na sombra. Sua armadura era diferente, apesar de ter os mesmos símbolos e adornos, parecia ser mais leve.

- No futuro você perceberá a importância das missões “tediosas”. Subir na hierarquia arriscando a própria vida em missões suicidas raramente resulta em sucesso. - Disse Elitóia com seu rosto iluminado pelo luar enquanto ainda olhava através da janela.

- Arf… A hierarquia não me interessa nem um pouco. - Respondeu o homem oculto.

- Um dia irá interessar. De qualquer forma, amanhã começaremos a analisar aquelas terras após nos livrarmos do velho. - Disse ela se virando para ele.

Nessa fração de segundo um vulto escuro passou pela janela sem que nenhum dos dois notasse, descendo do segundo andar e alcançando o chão, bem em frente à estalagem. Súbito a porta da frente se abriu, iluminando o rosto de um menino sujo e assustado.

- Onde pensa que vai, moleque? - Disse o soldado sem o elmo que abrira a porta, carregando um cesto de lixo.

- Eh… O senhor não tem nenhum sobra por aí? Estou com tanta fome… - Disse o menino, esfregando a barriga e fazendo careta.

- Rafú, não encha a nossa paciência! Saia daqui! - Disse o estalajadeiro atarefado lá de dentro.

- O senhor tem certeza que não tem um... - Antes que Rafú pudesse concluir sua frase, o soldado fechou a porta com força. Aliviado, o menino saiu dalí em disparada.

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Já passava da meia noite, Irilon e toda a sua família dormiam profundamente, da mesma forma que quase toda a cidade de Osburn. Subitamente, batidas na porta de sua casa ecoaram até seu quarto e pelas ruelas de sua vizinhança, fazendo cachorros latirem e o próprio Irilon se levantar depressa, apesar dos tropeços, e alcançar a porta.

- O que você pensa que está fazendo aqui a essa hora?! - Disse Irilon, num misto de berro e sussurro ao abrir a porta e dar de cara com Rafú, o qual não parecia estar com uma gota de sono, muito pelo contrário.

- Eu preciso contar uma coisa! - Disse o menino empolgado.

- Suma daqui garoto, antes que você acorde a cidade toda. - Disse Irilon, e já estava fechando a porta quando o menino continuou falando.

- Mas a mulher de capa disse que amanhã ia se livrar do velho da casa! - Disse o menino e logo em seguida Irilon voltou a escancarar a porta, fitando o garoto com espanto.

- Alguns minutos depois o velho homem já estava a bater na porta da velha casa no fim da rua principal, não demorou muito até Urius abri-la e esperar por explicações.

- Precisamos conversar agora. - Disse Irilon de forma direta.

- Você não conseguiu me convencer hoje a tarde, não vai me convencer agora de madrugada. - Urius já estava a fechar a porta, mas Irilon a segurou, olhou em direção a Rafú, que estava curioso do outro lado da cerca de madeira, em seguida se voltou a seu amigo.

- Eu sei de coisas agora que não sabia antes, deixe-me entrar. - Disse e soltou a porta em seguida. Urius o observou por um instante e também largou a porta, entrando em casa. Irilon o seguiu e fechou a porta.

Quase uma hora depois a porta se abre novamente e Irilon sai por ela andando cabisbaixo. Ao se aproximar da cerca nota a presença de Rafú.

- O que você ainda está fazendo aqui? Deveria estar dormindo. - Disse ele.

- Por que o senhor continua tentando ajudar ele? Ninguém gosta dele, todo mundo tem medo desse homem. - Questionou o garoto, reavivando memórias antigas na mente de Irilon.

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A amizade que Irilon cultivava com Urius surgira desde a infância, numa época um tanto diferente. Cada um viu pouco a pouco o crescimento do outro. Mas muita coisa mudou a partir de uma certa noite iluminada pela Lua cheia, não havia naquela cidadezinha tão movimentada alguém mais feliz do que o próprio Urius. Afinal, o fato de ser pai era uma dádiva que ele há muito ansiava e agora se tornara real.

No quarto mais luxuoso de sua belíssima casa no fim da rua principal, um Urius forte e de aparência vivida observava o pequeno Ignácius, ainda sujo pelos fluidos do nascimento, chorando nos delicados braços de Aiêda. A cama ainda estava ensanguentada e a parteira a acalmar os ânimos da nova mãe. Por dias a casa recebeu visitas de amigos e chegados que traziam presentes e felicitações, a alegria com certeza imperava naquela residência.

Entretanto, com o passar dos anos o fluxo de mineiros, que geravam o sustento da cidade de Osburn, diminuía em decorrência da escassez de produto bruto nas montanhas ao sul. Por algum motivo, que ninguém sabia ao certo, o minério não estava mais sendo encontrado por lá. E já que a família de Urius, desde a sua mais tenra descendência, havia se erguido com a comercialização desses minérios, a sua decadência era iminente.

Estava ficando cada vez mais difícil continuar bancando o modo de vida de sua família. A cidade toda sofria com a queda econômica. Não demorou muito para as plantações de trigo começarem a surgir nos limites da cidade, onde muitas famílias passaram a trabalhar por conta própria, era útil para a subsistência da população. As posses de Urius que antes lhe traziam prestígio agora não significavam praticamente nada, pois o povo podia plantar onde quisesse, desde que o lugar já não tivesse proprietário. Urius não tinha empregados, afinal, não havia na cidade mais ninguém que precisasse de um patrão. Com isso ele teve de criar sua própria plantação de trigo em suas terras, mas no fim das contas ela era grande demais para apenas um homem dar conta.

Nessa época Ignácius já devia ter por volta de seus dez anos de idade, era um menino franzino, tinha a pele parda como a da mãe e os olhos bem escuros como os do pai. Costumava passar bastante tempo desenhando enquanto sua mãe cozinhava no fogão à lenha, ela era uma mulher voluptuosa de olhos claros como o mel iluminado pelo Sol e cabelos escuros e encaracolados. Então quando Urius percebeu que seu filho já tinha forças para erguer uma enchada ele o colocou para ajudá-lo na lavoura. Não demorou muito até ele perceber que o menino não tinha habilidade para o trabalho pesado, nem para o combate, apesar de Urius sempre tentar ensina-lo. Mas manter suas posses e o modo de vida de sua família parecia ser mais importante.

Aconteceu que, a cada dia que se passava a irritação de Urius só aumentava, até o fatídico dia em que ele, após ver mais um erro na função que dera ao garoto, deu um tapa no rosto do filho com força. Ignácius correu chorando para casa e após isso Urius nunca mais pediu sua ajuda. A convivência havia se tornado insustentável dentro da casa, foi só então que, durante o jantar e na ausência de Ignácius, Aiêda falou francamente com o marido.

- O que há com você? - Questionou ela. - Por que age como se o que temos fosse mais importante do que o que somos?

- Será que você não compreende o quanto é importante manter o nome da minha família? Os que vieram antes de mim sempre foram importantes para essa cidade e agora eu não represento nada! - Disse socando a mesa de madeira.

- Não quero que você seja importante para essa cidade, quero que você seja importante para nós. - Disse Aiêda, se levantando da mesa. - Pare de exigir demais de si mesmo por quem não vale a pena.

Naquela mesma noite Urius se encontrou com seu amigo de longa data na floresta atrás de sua casa, havia sido o único amigo que lhe restara após perder o prestígio na cidade. Os dois colocavam a conversa em dia enquanto caminhavam por entre as árvores.

- Já parou pra pensar que ela pode estar certa? - Instigou Irilon.

- Se assim for e eu aceitar a queda no anonimato, eu estarei sendo o elo que fraquejou na minha linhagem… - Desabafou Urius.

- Ora, que seja. Será que por toda sua “linhagem” não houve um sequer que tenha escolhido viver a própria vida ao invés de se dedicar aos outros? - Argumentou Irilon.

Antes que Urius pudesse contra-argumentar ele reparou em algo sobre a luz das estrelas naquela floresta que o fez estacar. Em uma clareira, alguns metros à sua esquerda, ele viu uma pequena estrutura.

Ao se aproximarem os dois perceberam que era uma espécie de cabana feita de galhos de árvores e coberta por muitas folhas grandes e espessas. Só cabia uma homem adulto lá dentro, desde que se agachasse, então Irilon entrou primeiro, demorando-se por alguns minutos.

- Você precisa muito ver isso. - Disse Irilon, após sair.

Urius entrou e qual não foi sua surpresa ao olhar em volta e ver dezenas de papéis com desenhos fixados nas paredes. A maioria deles tinha o desenho de um homem e um menino, o homem estava sempre com uma expressão agressiva e o menino sempre com um olhar tristonho, por vezes chorando. Urius pegou um dos desenhos para ver de perto, enquanto seu rosto se transformava na mais plena representação de remorso, afinal, ele só conhecia uma pessoa por aquelas bandas que costumava desenhar e brincar na floresta. Mas subitamente um grito feminino ao longe cortou sua concentração.

Quando Urius saiu rapidamente da cabana ele viu seu amigo olhando na direção de onde acreditava ter vindo o grito, imediatamente os dois partiram em disparada rumo ao local. Quanto mais os dois se aproximavam do limite sul da floresta, menos árvores se viam em seu caminho e mais iluminados ficavam seus rostos. Entretanto, não era a luz do luar, nem as luzes da cidade que os iluminava, quando saíram da floresta os dois perceberam o clarão vindo da casa de Urius, em chamas.

Irilon estacou imóvel no caminho com uma expressão boquiaberta, Urius, no entanto, prosseguiu incansável a todo vapor. Apenas quando viu seu amigo prosseguir, Irilon se deu conta de que precisavam agir e se apressou logo atrás.

O fogo já havia consumido, no mínimo, um terço da grande casa. Urius não pensou duas vezes e atravessou a janela de madeira da cozinha num único salto, arrebentando-a. Irilon ainda estava a cerca de cinco metros da casa quando viu a porta dos fundos tombar para fora, consumida pelo fogo. Em seguida um choro alto e melancólico ecoou pelos arredores e ele viu, através do arco da porta caída, um homem ajoelhado, abraçado com duas figuras no chão, em meio às chamas.

O povo que observava o incêndio só se atreveu a ajudar após verem Irilon carregar vasos com água em direção à casa. Com muita dificuldade o incêndio foi apagado naquela mesma noite, a estrutura da edificação ficou comprometida, mas não mais do que o emocional do seu proprietário. Houve o tempo do luto, mas em seguida Urius passou a se fechar cada vez mais para o mundo. Nem mesmo Irilon conseguia uma conversa franca com seu velho amigo. E assim a vida na cidade prosseguiu após o incidente.

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Na região mais a margem da cidade de Osburn, pouco antes das plantações de trigo, havia um pequeno amontoado de casebres velhos e abandonados, construções com buracos nas paredes e telhas quebradas. As crianças de ruam costumavam se acomodar por alí, durante noites frias como aquela algumas se reuniam no mesmo lugar para se aquecer.

Dentro de um desses casebres Rafú se acomodava abaixo de cobertores rasgados, em volta haviam alguns objetos coletados das ruelas, copos amassados, vasos quebrados, etc. Ao som dos grilos o pequeno garoto refletia sobre o que o velho Irilon o contara quanto ao passado do homem que mais lhe assustava em toda a cidade, porém em seu íntimo algo parecia estar mudando sua opinião.

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Antes mesmo do Sol se levantar sobre o horizonte um agrupamento de cinco soldados se aproximava dos fundos da grande casa de madeira. Trajando a típica armadura e empunhando somente as espadas, o grupo percorria agachado pela vegetação até alcançarem o objetivo.

De repente o grupo se dividiu. Dois deles seguiram para a janela mais a esquerda e outros dois para a janela mais a direita, o ultimo contornou a casa até encontrar uma outra janela lateral. A armadura que vestiam não emitia nenhum barulho, então conseguiram atravessar as janelas no mais perfeito silencio. Vagarosamente os grupos percorreram os cômodos térreos da casa sem encontrarem nenhum sinal de vida.

Em seguida eles começaram a subir pela escada até o primeiro andar, onde havia um corredor extenso com varias portas. Separando-se novamente, cada um deles seguiu até uma porta para verificar o local. Um porta após a outra foi sendo aberta de forma brusca, mas nenhuma reação ocorreu. Nada.

- Acho que aquele desgraçado foi embora. - Disse um dos soldados para sí mesmo, enquanto olhava em baixo da cama de um dos quartos.

Subitamente algo desce do teto do aposento por trás do soldado, o qual se vira com tempo apenas para sentir o golpe seu abdome, em seguida um outro na altura de sua orelha e por fim um impacto mais forte que o arremessou pela janela, caindo do primeiro andar.

Todo o estardalhaço chamou a atenção do resto do grupo, o primeiro a chegar na porta do quarto deu de cara com Urius, que com um pisão arremessou o soldado sobre o corrimão da escada, caindo estatelado no chão do térreo. Urius não perdeu tempo, saltou sobre o corrimão quando viu os outros soldados correndo em sua direção e pousou sobre o peito do homem caído.

Alí em pose ereta, Urius esperou pacientemente a descida dos resto do grupo. Rapidamente eles o cercaram empunhando suas espadas e quando o primeiro foi desferir um golpe, Urius, com um único movimento, usou seu bastão de metal para bloquear o ataque e desvia-lo. Em sequencia iniciou-se um verdadeiro malabarismo com espadas e bastão. Cada tentativa de acertar Urius, resultava num desvio ou bloqueio de ataque, até que ele começou a contra-atacar também.

Os soldados atacavam por cima, por baixo e pelas laterais, mas nenhum golpe surtia efeito, todos eram impedidos. Um dos soldados se agachou rapidamente no momento de adrenalina e tentou decepar as pernas do inimigo, mas logo após evitar um outro ataque Urius saltou e o golpe atingiu as pernas de um outro soldado mais próximo, o qual urrou de dor ao cair. Assim que Urius pousou sobre o chão novamente golpeou a cabeça do soldado ainda agachado, quebrando seu pescoço. Com um chute para trás ele empurrou o soldado ainda inteiro em cima de uma cadeira de balanço, destroçando-a.

O sangue do soldado com pernas decepadas já se espalhava por grande parte do assoalho da sala, Urius pisou no liquido vermelho, deixando um rastro e seguindo até o outro soldado que já se levantava. O soldado assumiu mais uma vez a posição de combate e atacou. Um golpe lateral e Urius saltou para trás. Um ataque de cima para baixo e Urius bloqueou em cima e desviou para o lado, girando e golpeando as costelas do inimigo. Ainda sentindo a dor no tórax, o soldado tomou impulso na parede atrás dele e avançou com a lâmina para atingir o peito do alvo. Rapidamente Urius se inclinou para trás, enquanto se apoiava na ponta do bastão e usando a outra para golpear o diafragma do adversário. Apenas o peso do próprio soldado já foi suficiente para o bastão atravessar seu corpo, enquanto caia agonizando.

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Não era possível ver o Sol naquela manhã, nuvens escuras haviam encoberto toda a região anunciando a chuva que estaria por vir. Na estalagem a notícia da derrota já havia chegado.

- Bastão?! - Vociferou Elitóia na recepção da estalagem, mas era possível ouvir de todos os quartos. - Eles foram derrotados por um velho com um bastão?!

- Foi o que eu ví, senhora. Ele manejava aquela coisa como se fosse parte de sí mesmo. - Disse o soldado. - Eles não tiveram muita chance, o único que sobreviveu foi o que caiu da janela.

- Mas é muita incompetência! - Disse ela.

- Me deixe ir. - Disse o mesmo homem com quem ela falara na noite anterior. Tinha estatura mediana, era ruivo, cabelo quase raspado, olhos azuis e rosto arredondado. - Tô entediado aqui mesmo.

- Então vá logo Efcar. Já perdemos tempo demais com esse idiota. - Disse e se virou para falar com o outro soldado. - Não deixe que ninguém fique sabendo dessa derrota. A ultima coisa que o E4C precisa é ficar com o nome manchado por um velho com bastão.

Não demorou muito até Efcar chegar na porta da frente da casa, não portava arma alguma, simplesmente bateu e esperou.

- Pode entrar. - Disse uma voz lá dentro.

Efcar vagarosamente abriu a porta e observou o cenário. No chão havia uma grande poça de sangue, os cadáveres estavam espalhados pela sala e Urius estava sentado numa cadeira com o bastão repousado em suas pernas.

- Acho que perdí o começo da festa, não é mesmo? - Disse Efcar ironicamente.

- Vocês não vão tirar o que me resta de dignidade! - Exclamou, levantando-se em fúria.

Efcar não esperou nem mais uma palavra e avançou a passos largos. Urius em resposta atacou uma vez com o bastão e o inimigo desviou rapidamente, atacou uma segunda vez e novamente foi em vão. Ele, então, girou o bastão e atacou mais uma vez, Efcar recuou e o bastão atingiu o assoalho, mais que depressa Efcar pisou no bastão, fazendo Urius descer. E então golpeou seu oponente no rosto, fazendo-o largar a arma e tropeçar para trás. Em seguida tomou o bastão em mãos e o arremessou porta a fora.

Urius se erguia, ainda se recuperando do golpe, quando percebeu o sumiço do oponente.

- Veja bem. - Disse Efcar de algum lugar na casa. - Parece que você gosta muito dessa pocilga, mas ser apegado demais as coisas faz mal, sabe? Então vou ajudá-lo queimando esse lugar.

Quando Urius identificou a voz vindo da cozinha correu para lá, arrombando a porta e atravessando violentamente. Mas ao chegar lá não havia ninguém. Então, ao olhar para trás ele vê Efcar ao pé da escada com um pedaço de madeira queimando em sua mão.

- Vou deixar aqui, certo? - Disse colocando o pedaço de madeira preso no corrimão da escada. - Quando eu terminar com voçê eu ponho fogo em tudo. - Ele falava de forma calma e despreocupada.

Nesse momento Urius partiu para cima, a cada soco desviado por Efcar ele ficava mais furioso. A luta já havia subido pela escada e alcançado o primeiro andar e foi lá em cima que a reviravolta ocorreu. Em um determinado momento, Urius desferiu um golpe contra Efcar, o qual desviou e usou o próprio peso do adversário para jogá-lo escada abaixo. O impacto foi forte o suficiente para abrir uma fenda na base da escada. Com a vista ainda embaçada, Urius viu através da fenda um papel, um dos desenhos de seu filho. No desenho ele viu sua esposa, seu filho e ele mesmo. Todos estavam sorrindo. Então ele ergueu o braço, passou pela fenda e apanhou o papel.

Subitamente Efcar surge descendo da escada com uma adaga em mãos a fim de desferir o ultimo golpe. Mas nesse instante algo salta nas costas de Efcar vindo de cima e tapa sua visão. Era Rafú, que agora estava agarrado nas costas do inimigo. Efcar tentava se desvencilhar da criança enquanto subia a escada, ao mesmo tempo Urius se levantava ainda surpreso em direção aos dois.

Quando Urius alcançou os dois eles já estavam num dos quartos, mas nesse exato momento Efcar consegue se livrar do garoto e jogá-lo pela janela do primeiro andar. Urius, depressa, consegue segurar o menino, ainda em desespero, pela perna. De repente Efcar surge novamente e crava a adaga no ombro de seu oponente. Com a dor Urius deixa o menino cair e o vê inerte lá em baixo.

Em questão de segundos Urius se enche de fúria e retira a adaga de sí, permitindo que o sangue corra pelo seu braço ainda dolorido e um pouco travado. Com um chute ele consegue distancia Efcar e com um salto rápido ele leva o inimigo ao chão.

- Seu desgraçado! - Urius Berrou, enquanto, ainda por cima de Efcar, tentava cravar a adaga no rosto do assassino.

Efcar fazia contra-força, impedindo que Urius conseguisse cravar a lâmina, mas após alguns segundos não conseguiu suportar o peso do inimigo e a adaga perfurou seu olho esquerdo. Mesmo com a dor Efcar ainda conseguiu desviar a lâmina para o lado e se livrar de Urius. Correu até a escada e desceu rolando.

Urius rapidamente saltou sobre o corrimão e desceu sobre o assoalho da sala mais uma vez. Bem em tempo de alcançar seu inimigo na porta da frente e agarra-lo pelo pé, girando-o e arremessando-o através da porta.

Quando o nivel de adrenalina no seu sangue reduziu Urius olhou em volta e viu a casa danificada, puxou o desenho de seu bolso e o fitou por um segundo.

- Nunca valeu a pena... - Disse para sí mesmo. Imediatamente ele olhou para o pedaço de madeira ainda em chamas preso no corrimão da escada.

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Minutos depois, embaixo da chuva, uma grande massa de pessoas se reunia em volta da casa ao fim da rua principal, a qual estava em chamas, como a muitos anos atrás. Irilon estava procurando o corpo de Rafú, pois as crianças haviam dito que o viram cair da janela pouco antes da casa queimar, mas apesar da busca não encontrara nenhum corpo no lado de fora da casa. A única coisa que encontrara fora o bastão de metal cravado no chão perto da floresta ao norte, nele havia uma fita branca amarrada que balançava com o vento. E alí o velho Irilon se despediu de seu velho amigo para sempre.

M Henrique
Enviado por M Henrique em 02/02/2022
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