LAGERTHA: A FIGURA FEMININA EM VIKINGS


Alvo de diversos estudos, a civilização Viking – originária da região da Escandinávia que atualmente compreende Suécia, a Dinamarca e a Noruega – tem chamado cada vez mais atenção, principalmente após uma descoberta ter mudado muito do que se sabia sobre eles até o momento. Talvez levados, em parte, pela cultura popular, quando pensamos em vikings, qual imagem vem primeiro à nossa mente? Homens fortes, grotescos, saqueadores que pilhavam e invadiam em busca de ouro. Se por um lado esses estereótipos até fazem algum sentido, por outro não poderiam estar mais equivocados.
A Era Viking começa em 793 d.C. e termina em 1066, um período repleto de explorações pelo continente europeu liderados por povos oriundos onde hoje estão a Dinamarca, Suécia, Finlândia, Islândia e Noruega. Repleta de misticismo, a cultura viking encarava os fenômenos naturais como representação da ira, felicidade, orgulho e fúria de seus deuses; os vikings tomavam suas decisões com base naquilo que viam na natureza, envolvendo suas vidas de misticismo e sinais mágicos. Sua religião incentivava diferentes sacrifícios, humanos ou de animais, e nisso havia uma grande influência em sua maneira de viver: no momento de começar uma nova expedição, os interessados já sabiam que muito sangue seria derramado pelo caminho e que, muitas vezes, não se voltava para casa com vida.
E o que as mulheres desse povo faziam? Sabe-se, a partir da tradução de mitos e canções, que o papel da mulher dentro dessa cultura era o de cuidar da casa e de sua família, basicamente servindo ao seu homem. Os casamentos aconteciam muito cedo, com meninas com idade próxima aos 12 anos, e que muitas vezes eram escravas trazidas de expedições ao exterior e camponesas. Diferente de outras civilizações, no entanto, as mulheres tinham um pouco mais de direitos do que em outras culturas à época – elas podiam se divorciar, herdar bens da família e até mesmo aprender a lutar –, exceto no que dizia respeito à traição dentro do casamento, que não podia cometer, ao contrário dos homens, que mantinham diversas amantes sem sofrer qualquer castigo ou represália. Além disso, dentro da própria cultura viking, existiam figuras femininas de deusas extremamente importantes e influentes, e era papel dessas mulheres conduzir rituais importantes para a fé nórdica. As principais deusas eram Freya, deusa do amor, fertilidade e beleza; Frigga, deusa protetora das famílias; e Skadi, que representava as estações do ano. Ainda, na mitologia nórdica, há a presença de mulheres sagradas, que tinham como papel levar os melhores guerreiros para Vahalla, o paraíso viking, conhecidas como Valquírias. 
Uma grande descoberta na Suécia, entretanto, tem feito com que toda a dinâmica da vida das mulheres vikings seja questionada. Quando pesquisadores e arqueólogos encontraram uma cova contendo a ossada de um ser humano, o esqueleto de um cavalo e inúmeros itens de batalha – faca, machado, arco e flecha –, notaram que os restos mortais deveriam pertencer a uma pessoa de muita importância dentro da comunidade viking devido a maneira como fora enterrada. Os ossos, datados do século X, eram de alguém que liderava tropas em campo de batalha, um importante guerreiro que viveu há mais de 1200 anos. Porém, 
um estudo publicado este ano fez uma nova análise do esqueleto e refez o exame de DNA da ossada descobrindo que aquele corpo era, na verdade, de uma mulher.
A guerreira tinha 1,70m de altura e cerca de 30 anos. Pelo modo como estava enterrada, representava alguém de alto escalão da sociedade viking, o que serviu para demonstrar que as mulheres estavam muito mais inseridas no contexto de guerra do que se imaginava. Segundo informações dessa pesquisa, outros esqueletos femininos já foram encontrados na mesma região, mas essa guerreira foi o primeiro a comprovar a participação feminina no campo de batalha. A partir disso, muitas referências que se tinham sobre a comunidade viking começaram a ser repensadas. Dentre lendas posteriormente traduzidas, foram encontradas informações de que haviam mulheres sacerdotisas dentro do cunho religioso dessa civilização. Também foi constatado que algumas comunidades treinavam mulheres como escudeiras, deixando o número que se tinha de mulheres em batalhas muito maior. Há pesquisadores agora dizendo que a quantidade de guerreiros homens e mulheres, era, na verdade, praticamente igual.

Essa história nos leva aos tempos atuais e, mais precisamente, a personagem Lagertha, interpretada por Katheryn Winnick, no seriado 
Vikings, produzido e veiculado pelo History Channel desde 2013, e que atualmente conta com quatro temporadas, e uma quinta com estreia marcada para hoje, 29 de novembro.
Aviso: este texto contém spoilers!
A narrativa do seriado é inspirada na trajetória de um dos mais conhecidos vikings da história, Ragnar Lothbrok (Travis Fimmel) e mostra como ele trocou sua vida de fazendeiro para explorar os mares, posteriormente se transformando em rei. Tudo começa com ele e sua família, composta pela esposa (que um dia foi escudeira e salvou sua vida na batalha) Lagertha, seu filho mais velho Bjorn (Alexander Ludwig), sua filha Gyda (Ruby O’Leary) e seu irmão Rollo (Clive Standen). Quando Ragnar não está mais contente com o que o Earl – uma espécie de chefe de território – tem a propor para Kattegat – o lugar onde vivem –, ele decide investir por conta própria em barcos e parte em busca do inexplorado e desconhecido no mar. Ainda que Ragnar seja inventivo e determinado, um lutador feroz e estrategista, muito do que ele conquistou se deve, também, ao fato de ter Lagertha ao seu lado. 
Lagertha foi esposa de Ragnar e aceitou, por um tempo, uma vida de mãe e fazendeira, no lugar de atuar no campo de batalha, mas nunca deixou que ele a oprimisse. De opinião muito forte e com muita independência, Lagertha teve seu coração partido quando Ragnar, após uma de suas empreitadas, retorna para casa sendo pai de um filho gerado com a Princesa Aslaug (Alyssa Sutherland). Lagertha, no entanto, não aceitou compartilhar seu esposo e decidiu sair de casa e de Kattegat, partindo em busca de outros horizontes e objetivos. A atitude representa, aqui, que a mulher podia ter independência na era Viking, mas assim como hoje, acaba refém de uma condição que somente a mulher possui: a de gerar uma vida, e quando não consegue cumprir com esse propósito, muitas vezes é descartada.
Depois de anos longe de Ragnar e agora já condessa, Lagertha surpreende o ex-marido com um exército completo e mantimentos para ajudá-lo na nova empreitada que planejou para além de Kattegat. Porém, para se apresentar como alguém apto a participar dessa exploração, ela teve que usar de homens guerreiros para provar que conseguiria conduzir um batalhão mesmo sendo mulher. Em outra temporada, quando tem sua confiança traída pelo seu segundo em comando, Lagertha precisa reconquistar seu povo e retomar o poder que anteriormente conquistou sozinha. Dessa vez, a escudeira utiliza sua inteligência, astúcia e sedução para voltar à sua posição de direito. Outra característica intrínseca à Lagertha é seu senso de justiça, defendendo crianças e mulheres ainda que sejam de povos que lutam contra os seus. Na série, a personagem sofre com tentativas de estupros, e graças a sua sede de justiça e bom senso, não permite que o mesmo seja feito com as mulheres que tiveram seus lares invadidos durante as excursões vikings, e busca impedir que os abusos aconteçam. 

Ao longo das temporadas, a personagem também sofre com algo mundano que afeta mulheres no mundo atual: o medo de colocar a vida profissional em risco por culpa de uma gravidez. Quando engravida,  Lagertha teme ser deixada de lado na batalha: teme pelo filho, mas também pela sua participação no campo. Então, no momento em que perde o filho que esperava, acaba por se culpar, assim como muitas mulheres que sofrem por abortos espontâneos e passam a acreditar que o corpo não completou a tarefa devida. O fato representa, mais uma vez, o eterno fardo do sermulher: o da ilusão de que se deve escolher entre um mundo ou outro – ser mãe ou guerreira; trabalhar fora ou criar o filho em casa.
É possível, ainda, enxergar em Lagertha um aspecto importante e rico, que flerta com a sororidade e o empoderamento da mulher. Ao ser esposa do rei, inevitavelmente toma lugar de privilégio e superioridade, mas busca tratar todas as mulheres que a cercam com respeito, de igual para igual. Já ao ser condessa, coloca somente mulheres para fazerem a sua segurança. Para voltar ao campo como escudeira, Lagertha antes treina todas as mulheres do seu reino para fazerem parte de seu exército. É inegável que as cenas onde vemos o maior número de mulheres, são cenas em que Lagertha está envolvida. O barco da personagem navega ao lado de Ragnar, e carrega apenas mulheres guerreiras. Quando comanda, o respeito que impõe e a importância que tem dentro da ação a transformam no mito mais poderoso da história viking, sem em momento algum deixar de ser exatamente aquilo que é: isso mesmo, uma mulher.
Ainda que Lagertha tenha feito más escolhas – provavelmente dos roteiristas,como já pontuado anteriormente – e agido de forma incoerente, a personagem ainda ocupa uma posição pouco vista na TV. Conseguir desmistificar toda uma verdade que se tem sobre uma civilização ao descobrir que a presença feminina era quase maior que a masculina é revigorante. Mulheres que, no passado, conseguiram transformar ambientes predominantemente masculinos (e por consequência, machistas e patriarcais) em lugares mais humanos; personagens que fizeram a diferença na construção de uma identidade histórica; e, principalmente, inspirações que nos mostram mais uma vez que mulheres são fortes e completas, principalmente quando unidas, perante qualquer perigo, são alguns dos motivos que demonstram que resistir e conquistar ainda é a única saída.

OBSERVAÇÃO: VALE A PENA ASSISTIR OS VIKINGS NO       NETFLIX OU YOUTUBE, - UMA SAGA INEBRIANTE