Júlio e Eleonora - Um conto de amor, castelos e alegoria - 1
JÚLIO
Houve uma época em que aventuras como as dos contos de fadas eram razoavelmente frequentes. Não que o mundo fosse inteiramente diferente do que é hoje. Entretanto monarcas, fidalgos e princesas eram coisas mais comuns; havia cavaleiros de verdade, entrando em batalhas e duelos para consertar agravos ou defender a superioridade da beleza de suas amadas; e o que hoje nós chamamos de ciência era bem rudimentar, de forma que o mundo e os seres humanos estavam cheios de mistérios, coisas até então não compreendidas.
Nessa época, viveu um camponês chamado Oranius. Ele e a esposa tinham apenas um filho, um rapaz quase adulto mas ainda não totalmente. Era um rapaz visivelmente inteligente. Ainda que sem estudo, notava-se nele a tendência a atividades da mente. O pai percebia que o filho, ainda que diligente nos trabalhos de plantio, colheita e criação, era um tanto quanto contemplativo, como se o campo e seus ciclos naturais fossem mais coisas a se admirar do que a fonte do sustento material. Notava que o rapaz prestava tanta atenção às palavras da missa rezada em latim que Oranius quase chegava a crer que ele decifrava o sentido de um trecho ou outro do que era dito.
É digno de nota que estamos falando de um tempo em que não havia escolas. Pelo menos não como as que existem hoje. Todo o trabalho de estudo e intelectualidade era patrocinado pela Igreja romana. Não estava, porém, disponível a todos. As escolas funcionavam de uma forma diferente. Pode parecer injusta a ideia de nem todos terem acesso ao estudo, mas não se pode culpar inteiramente a humanidade dos séculos passados. A humanidade atual também comete absurdos, sem nem mesmo conseguir ver quanta besteira está fazendo.
Há algum tempo já Oranius meditava numa ideia. A esposa não ia gostar de ouvir, ele já sabia. Era preciso encontrar uma maneira bem cautelosa e leve de entrar nesse assunto com ela.
Certo dia, quando o filho estava no campo, a mulher preparava um cozido, e Oranius rachava lenha, ele, o pai, achou que era o momento de falar com ela. Entrou na choupana, suado e com lascas de madeira nos pelos da roupa.
– Já lhe pedi que não viesse direto à cozinha quando estivesse cheirando assim – resmungou a atarefada mulher.
Como que ignorando o que ela disse, Oranius introduziu:
– Tenho uma ideia a lhe comunicar, querida.
Ela estranhou a tamanha gravidade que o marido deixava transparecer pelos olhos inquietos e baixos, pelas mãos que tiraram o gorro e o apertavam nervosamente, pelo tom da fala tão sério. Prestou atenção.
– Nosso Júlio não nasceu para esta vida, minha querida. – continuou Oranius, ainda de olhar baixo. – Ele não é um camponês como nós. Não pode ter nascido para este estado.
Para a mulher, aquelas palavras eram um imenso disparate. Como assim? É claro que Júlio havia nascido no estado certo. Era um servo, um homem da terra como ela e o marido eram pessoas da terra, gente comum, feliz com a boa determinação de Deus para o seu nascimento e seu destino.
Naqueles tempos, meu caro leitor, o mundo era bem diferente. A maioria das pessoas era como a família de Oranius, camponeses. A vida naqueles tempos era rural. Havia cidades, mas eram apenas pequenas vilas. Os camponeses quase sempre nasciam e morriam camponeses, sem grandes expectativas de mudança de vida. Trabalhavam no campo, e assim sustentavam a si próprios, e com uma boa parte da produção pagavam impostos aos donos das terras onde viviam e trabalhavam. Sim, as terras onde moravam não eram realmente suas, e nem seriam nunca; não podiam adquiri-las. Os donos das terras eram poderosos senhores, nem sempre gentis.
– Júlio não é como nós, meu bem. Júlio nasceu pra um destino maior. – repetia o homem.
– Quer fazê-lo cavaleiro? É muito pouco provável que consiga; não há nem sombra de guerra nestes últimos tempos; é praticamente nenhuma a chance de receber o grau da cavalaria. Mesmo que ele se fizesse mercenário.
– Não, não é disso que estou falando mulher. Mercenário? Não! Nunca me ocorreu essa saída. Estou falando de outra coisa.
– Que coisa? – a mulher parecia até então nem se importar com o que Oranius dizia, incomodando-se apenas pela interrupção.
– Meu anjo, - ele disse trêmulo – nosso Júlio é alguém que nasceu pra observar as coisas bonitas do mundo, pra entender o que há de poético na existência, pra entender as letras. Só assim o verdadeiro destino dele será realizado.
– Quer que ele seja jogral? – assim é que se chamavam naquele tempo os poetas cantores, que viviam de aldeia em aldeia, de castelo em castelo, encantando os homens com as belíssimas palavras que solfejavam, com as notas aladas que se desprendiam de seus alaúdes; que faziam os enamorados ficarem, por instantes, cegos para o mundo e verem apenas o seu amor; que faziam todos chorarem de rir com engraçadíssimos contos de heróis malandros.
– A Igreja, mulher. É da Igreja que estou falando.
A mulher empalideceu. Não, aquilo ela não queria para o filho.
- Oranius... Não, Oranius, isso não. A Igreja não.
– É a melhor chance que podemos dar a ele, minha querida. Se ele entrar para o seminário, se se fizer ordenar, mesmo que seja da casta mais pobre dos clérigos, ele poderá estudar. O gênio dele terá espaço para se desenvolver. Ele será mais feliz. Haverá escola para ele, e livros até, e mestres. Ele saberá ler e escrever, sua mente irá bem além da de qualquer jogral. O respeito que merecerá dos senhores irá bem além do que o que recebe qualquer mercenário. Ele será jogral dos espíritos, guerreiro das palavras.
Como mãe boa e comum, a de Júlio imaginava e ansiava tudo o que fosse aprazível e familiar. Via em sua mente o futuro que se podia esperar: o filho amadurecido, com o vigor e a força de homem adulto plenamente desenvolvido, constituindo família, sendo o amparo de seus pais idosos, gerando-lhe netos, lindos netinhos que lhe encheriam de felicidade os dias de velhice. Dentro do que era imaginável, a sua mente projetava visões como essas, e essas projeções encontravam eco em seu coração.
O argumento do marido era verdadeiro. Ela não queria aceitar, mas era. Não havia muito o que retrucar. Tinha que reconhecer que não havia causas de impedimento que não fossem egoístas. Era inescapável. O marido estava certo.
Júlio foi comunicado da decisão dos pais. Não se opôs. A mudança seria grande, mas ele não conseguia imaginar que o tornaria infeliz. E mesmo que o tornasse, há certo momento da juventude em que não mudar é que será causa de angústia. E, de qualquer forma, valia a pena arriscar certo nível de angústia para ver cumprido o desejo dos seus pais.
(Continua)