O Equilibrista
O sonho de Bruno era ganhar o mundo como artista de circo. Não vinha de uma família de circenses, mas tinha lá suas habilidades. Até parecia que daria o contrário. Ou seja, um desajustado fisicamente. Não a ponto de ser um capenga, mas via-se que, ao caminhar não o fazia com a naturalidade das pessoas em geral. Mancava um pouco como se fosse uma de suas pernas um pouco mais curta do que a outra. Mas Bruno não ligava a isso; acima estava seu sonho e sua determinação.
Quem visitasse ou visse, de longe, a frente de sua casa poderia constatar de imediato sua vocação. Ou sua teimosia. De um lado a outro, por cima de um chão de grama e a alguns metros do chão lá estava o arame. Sua esperança aumentava ou decrescia na proporção em que variava o interesse das pessoas em seus espetáculos. Até valer ou não valer a pena a perda de tempo dos transeuntes. Isto era diário e à medida que crescia sua habilidade, sua fama no bairro também crescia. Passou a cobrar por suas apresentações. Transformou uma área de sua morada em arena de shows e passou de simples artista a empresário. Agora era Bruno e outros que entendiam da arte do circo. Os moradores daquela parte menos privilegiada da cidade tinham com que se divertir e divertir suas crianças.
Tudo começou com a simplicidade dos simples e a platéia não escondia sua animação. Pagavam o que se podia pagar. Os artistas eram pobres, as crianças ainda mais. E como sonhar não custa dinheiro, era a imaginação e a fantasia que dominavam o ambiente. O colorido do picadeiro improvisado. As roupas dos palhaços, reaproveitadas de trastes largados pela impossibilidade do uso, os instrumentos da arte, refugos transformados em malabares, tintas inutilizadas e fios velhos, mas resistentes. Tudo isso e muito mais fazia a vida, a alegria e o resgate de uma comunidade esquecida, mas sedenta de felicidade.
Na mesma área em que brincava de se equilibrar e atraía a simpatia de uns e, de outros, a troça Bruno ergueu o seu sonho. Seu número era sempre o mais esperado. O sucesso o inspirava e a inspiração acendia nele a sede de ousar mais e mais. Já não era a dois metros do chão que caminhava no arame, mas ia alto, acima de seu medo e sempre conseguia o fim desejado: alcançar, são e salvo o lado oposto da armação. Poucos anos mais tarde, com o dinheiro que ia economizando a cada mês, mudou de cidade a fim de alçar voos maiores.
Aprimorou-se em sua arte, investiu no que lhe acenava como grandioso e digno, até que, dentro de si, acalentado há anos e só por ele sabido, sentiu-se pronto para o desafio maior de toda sua vida: cruzar, de uma extremidade à outra o Pão de Açúcar e o Cara de Cão. Para tanto treinou exaustivamente, dia após dia até que a autoconfiança o tivesse impregnado. Em plano inclinado, de cima para baixo, Bruno ousava e se arriscava. Perfazer a distância de 3 quilômetros, sobre um cabo é algo que foge completamente ao senso comum. Somente na mente de um louco ou suicida tal ideia poderia encontrar abrigo. Mas Bruno não era louco nem suicida, mas um visionário, um sonhador. Acima de tudo, um ser humano entre 1 milhão, disposto e convicto de que uma ideia imaginável é uma ideia realizável.
-Como pensa atravessar dois montes tão distantes entre si? Você deixa de levar em consideração uma série de fatores e condições impróprias, inimigos do seu objetivo.
Era este, entre muitos o argumento do seu treinador. Amigo antigo, de confiança e, por isso mesmo cauteloso na euforia e severo quando precisava mostrar a realidade da situação. Bruno o ouvia sempre com respeito e atenção, mas sempre encontrava o argumento preciso que, se não convencia, ao menos apaziguava, no outro, a preocupação e o medo de perder um companheiro.
-Este é o sonho da minha vida. Nele está colocado todo o meu espírito como tudo que ganhei nos meus anos como artista de circo. Não vou abrir mão de realizar o que me proponho.
-Você não tem medo? Sei que possuímos o que há de melhor em equipamentos e uma estrutura montada, além de excelente equipe. Mas está minimizando as consequências. Ainda acha possível, depois das experiências que já tivemos e dos acidentes sofridos? por que acha que nunca tentaram isso antes?
-Essa resposta não tenho para te dar. Mas posso te dizer que: é justamente por nunca ninguém ter tentado que me decidi a fazê-lo. Sofremos, sim acidentes e em alguns deles cheguei a me machucar um bocado. Mas eles não me farão desistir. Quanto à sua pergunta do medo, vou lhe dizer. Isto não passa pela minha cabeça. Seria um mentiroso, ao dizer que não tenho ou não terei medo, mas não é ele que vai tolher a minha vontade de realizar o que quero.
Há dias do grande acontecimento, pensado e agendado pelo próprio protagonista da nossa história, a discussão entre Bruno, seu treinador e outros membros de sua equipe tornou-se ainda mais acirrada. Dois desistiram em uma mesma reunião. Desacordo de pagamentos e medo das autoridades de que antecedentes criminais fossem descobertos acarretaram as desistências. A data escolhida foi a Terça de carnaval, às 4 da tarde, o que deixou um tanto evidente o perfil do nosso herói, sua sede de se fazer notar, tornar-se o centro das atenções. Conseguiram completar a equipe a tempo. Os treinos continuaram, cada vez mais intensos. Como não encontravam cenário idêntico para as simulações e nem a distância equivalente, precisava Bruno repetir a prova para efeito de teste de seu preparo físico e emocional.
Treinava em lugares desertos, em picos menores, terminando uma descida e iniciando outra. Bruno jamais aceitou usar protetores, como cabo de aço na cintura para o caso de um desequilíbrio e de uma queda. Essa possibilidade nunca permitia que pairasse em sua mente, tal o seu estado de confiança. Treinou sobre rios, mata e não foram poucas a vezes em que cruzou trechos inóspitos e extremamente perigosos cuja queda o levaria fatalmente à morte, senão pelo impacto, o seria pela rudeza das condições materiais do local.
Na véspera do grande dia lá estavam todos, devidamente uniformizados, representando a empresa contratada para a manutenção e troca dos cabos do teleférico. Chegaram à tarde, com Bruno à frente, orientando e verificando cada detalhe. A curiosidade não se fez presente, mas a multidão era grande. Bondinhos recolhidos. Uma noite vibrante, blocos por toda parte; barulho e movimentação a noite inteira. Surgiu a Terça, as horas matinais corriam céleres até que, com a chegada da tarde e a volta das aglomerações, às 4 em ponto, Bruno iniciou o percurso, a maior apresentação de sua vida. Tudo parou. Ao ver aquele homem, em sua calma habitual, nas mãos a grande vara que lhe aumentava o charme do seu equilíbrio, a multidão aplaudia e ele inclinava-se um pouco e se agachava em agradecimento.
Até que, em dado momento o vento inesperado, mal noticiado pelas agências do tempo, surpreendeu o nosso herói e ele, aguentando firme, balançava, até que a refrega, acalmando-se, trazia de volta a tranquilidade, dele e de todos que o assistiam. E que já contavam-se aos milhares a essa altura. Dois quilômetros ou pouco menos, deixados para trás. Parece que ia conseguir quando uma pisadela em falso trouxe o susto mais uma vez. "Falta pouco, vamos". Gritos desse teor já podiam ser ouvidos por Bruno. E ele se aproximando. Mais e mais. O cara de Cão, como que sorria a sua chegada.
Na última hora, quando todos pensavam que ele ia dar o último passo para finalmente concluir sua façanha, aconteceu o inesperado. Ele, num giro de corpo, carregado de agilidade, começou a voltar. Mas como era improvável que empreendesse uma subida, a pouco mais de cem metros, dá novo giro e retoma o caminho de volta. Era como se andasse em terra firme, tal sua destreza e tranquilidade. Pisou finalmente na plataforma, já cheia de admiradores. O resto, de óbvio e dedutível, não preciso narrar aqui. Autógrafos, aclamações e ofertas fizeram de si um homem rico e feliz. Tudo isso fez do sonhador um grande vitorioso. Só e exclusivamente por não ter ficado no sonho, mas ter tido a coragem e o empenho de desenvolver o dom que clamava em seu coração.