Sneon
Jakkele Bokma costumava dizer que não era mais importante do que ninguém, o que estava perfeitamente de acordo com a filosofia do regime e sua pregação de igualdade. Todavia, diferentemente de muitos líderes partidários ou altos membros do escalão militar, Bokma realmente tentava adequar-se ao que proclamava, particularmente fora do horário de expediente. Por exemplo, a cerimônia de apresentação à sociedade do seu filho mais velho, Akke, fora realizada num clube de trabalhadores num bairro próximo de sua casa, onde o pai do comissário, de um nível hierárquico bem mais modesto do que o filho, costumava levar toda a família, décadas atrás.
- Não podemos nunca esquecer as nossas origens - costumava repetir aos filhos, Akke e Wjera.
Os Bokma também não residiam num dos condomínios fechados destinados à elite governante (unicamente por razões de segurança, ressaltava a propaganda estatal), mas num confortável apartamento de classe média (três quartos, sendo uma suíte), num bairro novo da capital, Sinne Heuvels, cheio de elegantes blocos de seis andares em meio a parques arborizados, junto à margem esquerda do rio Rinnende.
- Não troco isso aqui por uma mansão em Lake Huzen! - Afirmava com orgulho.
Bokma costumava justificar suas escolhas não somente por razões sentimentais (sua origem humilde e a dos pais, por exemplo), mas pragmáticas. Morando e frequentando locais aos quais a grande maioria da população tinha acesso, expunha os filhos a um ambiente diverso daquele que encontrariam convivendo cotidianamente com a elite.
- Lembrem-se de que nada aqui foi herdado, mas conquistado com trabalho duro - era outra de suas frases habituais para os filhos.
E o que dizia Ummichje, a esposa, das posições sustentadas pelo marido? Ela havia conhecido Jakkele quando ambos eram jovens servidores do Ministério de Assuntos Internos. Ummichje viera de uma família vinculada à administração estatal desde algumas décadas, enquanto o entorno do marido era francamente operário; todavia, Ummichje percebera desde cedo a motivação que fazia com que Jakkele buscasse progredir na carreira, e isso era extremamente bem-visto em sua família - e por ela.
- Esse rapaz tem futuro - comentara Wabbe Gorter, o pai de Ummichje, com a esposa, Ukje.
A mãe concordara, e ambos estavam certos. Dez anos depois do casamento, Jakkele Bokma era o comissário designado para o sigiloso Projeto Berchtop, do qual pouquíssimas pessoas tinham algum conhecimento sobre a real natureza, e outros tantos o encaravam como nada mais do que um trabalho burocrático para conservação de bibliotecas centenárias. Todavia, o fato de que o mesmo estava subordinado ao ministério de Assuntos Interiores e não ao de Educação e Cultura, sempre atraía algumas perguntas incômodas.
- Há muito material nestas bibliotecas antigas, que precisa de análise prévia dos Assuntos Interiores - esquivava-se Bokma. - Somente após tudo ser desclassificado, elas poderão ser incorporadas ao patrimônio da Educação e Cultura. Mas isso pode levar décadas.
Com um cargo socialmente relevante, mas vinculado à uma atividade obscura e aparentemente sem grande importância, Bokma podia reforçar ainda mais o seu discurso de que era uma pessoa simples e acessível; menos, claro, quando se tratava de conseguir vagas para o Noardlike Badplak, o resort destinado à alta cúpula governamental na Noardlike Kust. Aí, Bokma fazia valer o peso do seu crachá de autoridade.
- Preciso dum chalé para quatro pessoas, de frente para o mar - era sua solicitação frequente.
E quando lhe diziam que todos os chalés já estavam previamente reservados:
- Por favor, isso é assunto oficial do Ministério de Assuntos Internos. Se houver algum requisitante com nível abaixo de comissário, priorize a minha solicitação.
Batalha ganha, restava a Bokma deitar-se na areia branca sob um céu azul brilhante, à sombra de coqueiros que ondulavam ao vento, e aproveitar seu descanso mais do que merecido.
- Nessas horas, você não quer ir para aquele tumulto do Sinnige Badplak, não é? - Espicaçava-o Ummichje, deitada ao lado dele, óculos escuros no rosto.
- Mulher, vamos deixar para falar de tumulto ano que vem, no Presintaasjedei da Wjera.
O 12º aniversário de Wjera Bokma seria no ano seguinte, e certamente o comissário já estava pensando em marcar a cerimônia para o mesmo clube operário onde o pai o levara durante toda a infância...
- [Continua]
- [22-12-2021]