Um Ilhéu nas Minas

Um Ilhéu nas Minas

Uma pequena introdução

Menos pelo desejo de escrever sobre o assunto do que de conhecer melhor a formação da gente da minha terra foi que, há alguns anos, comecei a recolher informações a respeito de sua origem. Foi assim que dei início uma viagem de quase trezentos anos ao passado, encantado por ser apresentado de repente a alguns ancestrais de quem jamais ouvira falar até então. É o caso de meu hexavô, Felipe Ferreira do Amaral, açoriano oriundo da Ilha de Faial , que aportou em terras brasileiras na primeira metade do Século XVIII, havendo registro de sua presença no sul de Minas Gerais em 1734 quando casado com Maria Rodrigues da Silva, que faleceu deixando-lhe uma filha pequena, e já estabelecido a sudoeste da Vila de Pitangui, nas margens do Rio Pará, em 1742, em segundas núpcias com Teresa Maria de Morais. Felipe e Teresa gerariam grande descendência no decorrer dos três séculos seguintes, originando grandes famílias que povoariam o distrito do Cercado, hoje Nova Serrana, como os Ferreira do Amaral e os Ferreira dos Santos, e ainda filhas que se uniriam aos Correia de Lacerda e aos Macedo de Sousa . Surpreendi-me com a constatação de que grande parte de meus conterrâneos são também meus consanguíneos. Imagino que estes também se regozijarão em me acompanhar nessa viagem.

O Pouso

Felipe sentiu-se aliviado pela resolução do velho tropeiro, Sr. Zózimo, de arrancharem ali, menos por ele próprio do que por Tereza e as duas crianças tão pouco habituadas ao desconforto das longas jornadas. Estavam a mais de dez dias na estrada e o cansaço transparecia no rosto das duas mulheres embora não se queixassem. Efigênia cativa de propriedade do sogro, ama de leite da filha, cedida a ela desde que se casara, era uma mulher de compleição robusta, de seus cinquenta anos, vinha sendo de grande valia no cuidado da jovem sinhá e das duas meninas. O rancheiro arranjara-lhe um reservado acanhado, mas que garantia à sua família o mínimo de privacidade. Teresa aproveitava o resto de tarde para aquecer água para o seu banho e das pequenas que há dias não se zelavam. O açoriano cuidava de sua pequena tropa, três cavalos de cela e duas mulas de carga sobre cujas cangalhas levava tudo o que possuía. Seus olhos vigilantes não se descuidavam sobretudo da bruaca onde iam alguns mimos de valor sentimental da mulher e a sua reserva de dinheiro que, malgrado pouco expressiva, daria para recomeçar a vida nas novas paragens sem depender de maiores favores do sogro, cuja influência já lhe garantiria o chão onde se estabelecer.

O pai de Teresa, o português Domingos Teixeira de Morais , depois de haver residido também em Aiuruoca, estava agora estabelecido na Vila da Piedade de Pitangui. Entusiasmado com o crescimento da chamada Sétima Vila do Ouro das Minas Gerais elevada a tal condição havia apenas quinze anos , instava constantemente a Felipe que se desfizesse de suas posses em Aiuruoca e migrasse para aquela região onde, segundo ele, o ouro brotava à flor da terra como batatas . Na verdade, o que o velho queria era estar perto da filha e da neta.

Sofrera muito antes de tomar a decisão, mas agora achava-se até satisfeito, o contentamento de Teresa alegrava também seu coração. Pensava nessas coisas enquanto tratava uma pisadura em um dos cavalos. Ouvia-se o bulício dos peões em suas funções, pressurosos de se desocuparem para um merecido descanso, estirados sob o grande coberto de sapê ou quem sabe, com a permissão do Sr. Zózimo, tomarem um trago, promoverem uma cantoria ou até uma roda de dança do catira. Sr. Zózimo gritava ordens delegando tarefas. Era seu costume manter homens armados de sentinelas durante toda a noite, mesmo quando arranchados em lugar supostamente seguro como aquele. Não conhecia nada daquelas bandas, mas um dos peões lhe informara que estavam próximos do Tamanduá, lugar onde Lourenço Castanho de Taques entrou em luta com os Cataguases, desbaratando-os, razão por que o lugar ficou chamado Conquista , não muito longe do destino. Em roda daquele pouso de tropas e boiadas já se formava um pequeno arraial com a residência de trabalhadores de diversos ramos que ali achavam ocasião de prestarem seus serviços aos viajantes, como seleiros, ferreiros, ferradores entre outros.

A comunicação entre Felipe e seu sogro sempre fora intermediada pelo Sr. Zózimo. E a recomendação do velho Domingos é que, caso ele se decidisse pela mudança, viajasse com a tropa do Sr. Zózimo por motivo de segurança. Aqueles sertões inóspitos guardavam perigos em cada vereda, rio, serra ou capão de mato. Negros aquilombados ou índios Cataguazes, os “coroados”, acossados pelos civilizadores das regiões litorâneas, ou mesmo bandos de aventureiros foras da lei, por vezes investiam contra os viajantes desavisados. Por isso um tropeiro experimentado como o Sr. Zózimo, levava consigo homens dispostos a se baterem com armas caso necessário. Era recente e estava muito vivo ainda na memória daquela gente o evento trágico ocorrido no Capão da Traição, dentro do contexto da Guerra dos Emboabas , de que fora palco o chamado Sertão Cataguás tornado Capitania das Minas de Ouro poucos anos depois. Em virtude daquele serviço extra prestado ao Sr. Domingos, Sr Zózimo atrasava consideravelmente sua viagem, Felipe bem o sabia. Acostumada a avançar em média quarenta quilômetros por dia, a tropa seguia em passo moderado com intervalos maiores para descanso a fim de poupar a senhora e as crianças. É claro que a velha raposa contava com alguma recompensa da parte do velho português e do ilhéu seu genro.

O cozinheiro da tropa instalara seus apetrechos nos fundos do grande coberto e preparava o repasto. Nos pousos, comiam feijão quase sem molho com pedaços de carne de sol e toucinho (feijão tropeiro), que era servido com farofa e couve picada . O cheiro era bom. Felipe sentia-se reconfortado pela possibilidade de alimentar-se bem e ter uma restauradora noite de sono. Depois de alimentar os animais e soltá-los no pasto, confiante na segurança prestada pelos homens do Sr. Zózimo, foi ter com a mulher. Encontrou-a com ar mais descansado. De roupa limpa e os cabelos soltos que ela penteava demoradamente mirando-se num pequenino espelho que ela trazia na bruaca entre os mimos. A negra Efigênia havia ido até a bica d’água lavar as peças de roupa que haviam sido trocadas, levara consigo as meninas. Ao ver o marido, Teresa sorriu exprimindo seu contentamento por estar indo para junto dos seus. Era grata por ele ter concordado com a mudança. Felipe olhou para fora pela porta do rancho. Lá distante, no riacho, a cativa estendia a roupa num coradouro improvisado. Antônia e Conceição brincavam ao seu redor, podia-se ouvir seus gritinhos alegres. Elas estavam vivendo sua grande aventura. Voltou-se para a mulher, o rancho era mesmo bem reservado. Baixou a esteira que servia de porta.

Conversa ao redor do fogo

— Há dois santos com o nome de Zózimo — havia dito o velho tropeiro — o primeiro participou da instauração da igreja de Filipo, portanto no século I, é festejado em dezembro juntamente com São Rufo. Já o que me deu o nome é o italiano, viveu no século V, é festejado no dia de hoje, 30 de março, é tido como o protetor contra a peste. Nasci no seu dia há exatos sessenta anos. Hoje, portanto vamos rezar, depois tomar um trago antes da janta – e dirigindo-se a seu lugar-tenente: vá buscar o ancorote.

Aquele humor do chefe havia deixado a peonada contente, somado ainda ao fato de estarem cerca de três dias de marcha do destino acrescia motivo à festa. Depois do jantar, quando a noite já caíra por completo sobre aquelas montanhas, a mata circundante e a proximidade do pequeno curso d’água refrescavam o ar tornando agradável o calor do fogo, ao redor do qual se acomodou um grupo formado por homens mais velhos. Os mais jovens, no entanto, preferiram se reunir em certo ponto à luz das candeias e logo se ouviu o tinir das violas. Felipe acocorou-se junto aos velhos e ficou ouvindo as conversas. Sr. Zózimo, na verdade era quem dominava o assunto, era homem de muito conhecimento, paulista aventureiro e muito viajado. Falava daquelas paragens onde se encontravam. O arraial era um lugar de passagem fundado pelo bandeirante Lourenço Castanho de Taques, por volta de 1696. Ali o paulista aventureiro havia vencido os Cataguazes, por isso o lugar ficou chamado Conquista do Campo Grande. Depois da derrota dos paulistas pelos emboabas, aqueles passaram a buscar novas paragens em busca de riquezas minerais e aquelas picadas que ali passavam conduziam-nos mais para o interior da colônia .

Felipe quis saber mais sobre a Vila de Pitangui. O tropeiro explicava que o lugar se chamava Vila Nova do Infante das Minas de Pitangui. Mas pessoas proeminentes do lugar, engrandecidas pelo brilho do ouro erigiram a vila com sua justiça ordinária e instalaram a Câmara. Os fatos chegaram aos ouvidos da Metrópole que interveio, os amotinados obtiveram o perdão e El-Rei mudou o nome da Vila do Infante para Vila da Piedade de Pitangui . O velho relatou ainda com muitos detalhes outras refregas de que fora palco aquela vila, como a Revolta da Cachaça e a Revolta dos Quintos. O ilhéu concluiu que aquela era uma terra de homens valentes.

Da Ilha ao Cercado

Com a ordem de recolher do Sr. Zózimo a peonada se aquietou. Agora reinava o silêncio no rancho enquanto ganhava volume os agradáveis ruídos da noite. Felipe fez a cama com seus pelegos sob o grande coberto como os demais peões, mas encostado na parede de taipa do reservado onde dormia sua família. Sabia que despertaria a qualquer ruído vindo dali. À sua memória vinha as imagens do dia, a longa jornada por serras e vales, picadas cheias de obstáculos. Pequenos incidentes com animais silvestres. Serras, ribeirões, capões, rochedos. Sobretudo o verde. Muito verde.

Em três dias, o mais tardar quatro, chegaria ao seu destino a sudoeste da Vila da Piedade de Pitangui, nas margens de um chamado Rio Pará. Com a graça de Deus seria o seu lugar de morada definitiva. Queria fincar raízes, criar seus filhos, plantar suas roças, engordar seu gado. Estava cansado daquela vida errante.

Seu povo começara a cruzar o atlântico em direção às promissoras terras brasileiras em 1677, depois que cataclismos vulcânicos abalaram duas ilhas do arquipélago dos Açores, a do Pico e a do Faial, onde nascera. Claro que nascera muito depois dos tais abalos, mas o pauperismo deles decorrentes ainda assolavam a sociedade, devido à perda de fertilidade do solo. Vir para o Brasil passou a ser o sonho de toda a gente. Era o meio mais certo de fugir da miséria. Para a Coroa Portuguesa era vantajoso efetivar a territorialização das terras do novo mundo impedindo a invasão estrangeira em solo brasileiro. Foi assim que sua gente começou a obter o apoio lusitano para se estabelecer em território brasileiro, em áreas consideradas estratégicas para a consolidação do projeto colonial português no Brasil.

Lembrava-se dos sofridos noventa dias a bordo de um navio. De como chegou magro e doente e do período de quarentena, já em terras brasileiras, antes de desembarcar. A intenção do governo português era que os açorianos se estabelecessem nas regiões de fronteira ao sul da colônia, muitos casais assim o fizeram. Ele, porém vinha solteiro e algumas circunstâncias o vieram trazendo para o interior até chegar em Aiuruoca, onde permanecera até então, encantado por suas cachoeiras. Casara-se ali, em 1734, com Maria Rodrigues de quem lhe nasceu a filha Antônia. Maria, no entanto, faleceu. Era difícil para um homem sozinho criar uma menina ainda tão pequena, foi quando teve a sorte de conhecer Teresa e logo obter o consentimento do velho Domingos para o casamento.

Um urutau cantou distante. Do ribeirão vinha a zoada continua e monótona da saparia. Felipe ouviu o ruído abafado das botas de uma das sentinelas que caminhava ao redor do grande coberto. Ergueu a cabeça, avistou-o à claridade da lua, com a longa capa a protege-lo da frialdade da noite, o chapéu de feltro negro com a aba caida, o trabuco apoiado no ombro esquerdo. A austeridade do Sr. Zózimo disciplinava seus homens mesmo enquanto o velho dormia.

Recostou-se novamente. Fechou os olhos. Um profundo bem estar tomou conta do seu corpo e do seu espírito. Tinha o bom pressentimento: seria muito abençoado por Deus na sua nova terra.

***

Segundo Orlando Ferreira de Freitas e Maria Beatriz de Freitas Fonseca, em seu livro As Origens de Nova Serrana, “Felipe fez acampamento às margens do Rio Pará, na região até hoje conhecida como Itapicu (Município de São Gonçalo do Pará) e assenhorou-se de enormes faixas de terras de um e outro lado do rio Pará. Essas terras do lado esquerdo do rio chegavam até as divisas da fazenda que se instalaria depois: a Fazenda da Barra Grande do Cercado. Não havia título de terra em seu nome. As terras dominadas por Felipe estavam na mesma área, delimitadas na sesmaria do sargento-mor Gabriel da Silva Pereira”.

Nova Serrana, 20 de dezembro de 2021

Carlinhos Colé

(Adão Carlos de Assis)

Este texto foi produzido através de recursos advindos da Lei Aldir Blanc Nº 14.017/2020 no Município de Nova Serrana -MG

Bibliografia:

Orlando Ferreira de Freitas e Maria Beatriz de Freitas Fonseca, Genealogia e Histórias do Cercado de Pitangui (Nova Serrana). Tomo I, Pg. 401.

Orlando Ferreira de Freitas e Maria Beatriz de Freitas Fonseca, Genealogia e Histórias do Cercado de Pitangui (Nova Serrana). Tomo I, Pg. 401.

Orlando Ferreira de Freitas e Maria Beatriz de Freitas Fonseca, Genealogia e Histórias do Cercado de Pitangui (Nova Serrana). Tomo I, Pg. 401.

Pitangui surgiu no final do Século XVII e foi elevado a vila em 9 de junho de 1716. Wikipédia, consultada em 17 de dezembro de 2021.

Referência ao Morro do Batatal em Pitangui-MG, a Sétima Vila do Ouro da Capitania de Minas Gerais. “Era fácil a extração no princípio, pois o metal aflorava à superfície, à guisa de batatas. Daí o nome Batatal.” Fernando Humberto de Resende – Bom Despacho 300 Anos: Homens que a construíram, tomo I, pg. 80– Scortecci Editora

Tamanduá, em 18 se junho de 1744, conforme consta nos registros da câmara de São José do Rio das Mortes, o povoado foi elevado à categoria oficial de arraial, com o nome de São Bento do Tamanduá. Tornou-se vila em 20/11/1789, ganhou foros de cidade, com o nome de São Bento do Tamanduá em 04/10/1862 e tornou-se cidade de Itapecerica em 19/10/1882 – Constantino Barbosa, Centro-oeste Mineiro História e Cultura – Totem Gerador de Cultura e Instituto Cultural Maria de Castro Nogueira.

A profissão de ferrador consistia em pregar as ferraduras nos animais das tropas e acumulando geralmente a função de veterinário. Fonte: Clio História, Prof. Almir Ribeiro.

Das margens do Rio Para até o Rio São Francisco, ocorreram instalações de quilombos: Quilombo dos (Perdigão), Fazenda do Quilombo (Retiro dos Agostinhos-Bom Despacho). Fernando Humberto de Resende – Bom Despacho 300 Anos: Homens que a construíram, tomo I, pg. 80– Scortecci Editora

Carlos Góis Histórias da Terra Mineira – Imprensa Oficial, Belo Horizonte, 1913, pp 118-123.

Fonte: Clio História, Prof. Almir Ribeiro.

“A derrota dos paulistas não abalou os ânimos dos bandeirantes, que se dirigiram para Goiás e Mato Grosso” HIGA, Carlos César. "Guerra dos Emboabas"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/guerra-dos-emboabas.htm. Acesso em 17 de dezembro de 2021.

Fernando Humberto de Resende – Bom Despacho 300 Anos: Homens que a construíram, tomo I, pg. 17 – Scortecci Editora

http://aeln.org/por-que-vieram-os-acorianos-para-o-brasil-um-pouco-de-historia/

http://www.portaldodivino.com/acores/emigracao.htm

http://renehass.blogspot.com.br/2009/04/porto-alegre-237-anos.html

As Origens de Nova Serrana, Orlando Ferreira de Freitas e Maria Beatriz de Freitas Fonseca- 2002 – pg 64

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 20/12/2021
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