Um reluzente brilho de lombos crus

Jekeri pisava o barro do pequeno córrego após desistir de conseguir algum peixe com ele.

Estava com muita fome. Saiu pelo mato ralo para tentar o milagre de algum fruto silvestre.

De longe numa das arvores mais altas viu algo.

Quanto mais perto coração acelerando. Quase vomitou.

Aquele rosto de olhos esbugalhados, roxo e lingua de fora não era seu tio. Não queria que fosse.

Correu e gritou.

Mal o entenderam.

No burburinho dos preparativos do funeral começou a entender um pouco melhor sobre a tristeza e as esquisitices de seu tio nos últimos tempos.

- Ele nunca se recuperou da judiação dos policias brancos.

Falou das maldades do novo cacique geral dos brancos. Colocado a força por um tal "Regime" ou " Ditadura Militar".

Foi preso e surrado. Teve até "partes" do corpo cortadas.

****

Pouca terra. Fazenda de boi dos brancos cercando tudo. Cacique tentou um roçado. Patas de cavalos noturnos destruíram quase tudo.

Os adultos mais fortes e ágeis começaram a caçar algumas reses. De noite com o máximo de silêncio e tentando mostrar bravura ante o temor que dominava todos naqueles dias.

Não demorou para voltar feridos.

Uma noite pai foi junto com mais dois da aldeia.

Passou muito o tempo de voltarem. Amanheceu.

Pedro e José arrastavam-se em múltiplos ferimentos. Pai não voltou.

De tarde homens brancos armados, empregados da fazenda, trouxeram seu corpo. Ante a revolta de minha mãe e irmã fizeram disparos e gritaram:

- Vocês fedorentos, vagabundos e agora ladrões tem uma semana para sair daqui. Senão vamos tocar fogo em tudo.

Cacique tentou argumentar que essa terra é nossa e que muito já tinha sido tirado. Não nós deixavam meios de subsistência. Foi chutado e espancado sob ameaça de armas.

Eu queimava por dentro, mas, sabia o poder daquele armamento. Seria morte imediata sem ajudar em nada.

- Somos da Revolução Redentora. Se não saírem voltaremos com o exercito.

Pavor e raiva tomaram conta de todos. Sair nem era opção. Ninguém sabia onde ir.

Sabíamos porém que um branco do tal exército tinham pego o lugar de cacique dos brancos. E sabiam que eles eram ruins com os pobres, negros e índios. Protegiam gente como os fazendeiros da região.

- Quero ir junto caçar gado.

- Vem Jekeri.

****

Entre cinza e escombros muitos corpos torturados, vilipendiados e esquartejados. Velhos, mulheres, crianças. Todos.

Choro, loucura, vômito.

Os três emudecidos e quase automatizadamente tentam dar dignidade de funeral ao seu povo.

Saí.

Corre.

Até desmaiar.

***

Acordou da bebedeira aos poucos. Cabeça latejando e inchaço na boca. Dores pelo corpo. Cubículo escuro, cheirado mal e com água pingando em seu corpo.

Os roxos e dores lhe revelam que foi espancado. Não lembra.

Sente fome. O gotejamento angústia.

A noite lhe atiram uma cumbuca. No escuro come mesmo sem ver a natureza do que lhe servem.

Reformatório Indígena Krenak. Um presídio para o povo índio. Magro e quase morto Jekeri tenta se aguentar. Quer sair dali. Vivo. Dizem que foi preso por consumo de álcool e vagabundagem. Trabalhava em fazenda de branco e comprou aguardente com seu ordenado. Mas nada valeu. Percebeu que não gostavam de argumentação. A verdade e os destinos estavam no verde oliva dos uniformes.

****

Sargento Guedes era responsável por seu destino. Trabalhou mudo até a exaustão. Calado e discreto agradou o meticuloso militar:

- Você tem plenas condições de sair. Mas tenho receio. Me disseste que não sobrou muitos de seu grupo e desses nem tens o paradeiro.

- Vou pelo mundo

- Tenho uma proposta melhor . Vais servir a pátria como eu.

- ...

****

Treinos físicos desconhecidos, diciplinamentos exóticos a sua cultura, proibições sem nenhum sentido aparente e um estranho amargor na boca. Não lhe deixavam, porém, outras portas. Seria da Guarda Rural Indígena. Levaria ordem e respeito as aldeias.

****

A cozinheira, uma delas, também índia, Krenak, lhe trazia alguns agrados quando possível. Dentro dos períodos de descanso.

- Não fala quase nada.

- Melhor.

- Vai se formar guarda. Vida vai melhorar.

- Sim... Talvez.

Mais espaçado que os quitutes começou a vir, nos raros momentos a sós, alguns carinhos.

***

Todos em semi círculo. Vem o instrutor.

Trazem um índio todo amarado e tendo uma barra de ferro atravessada por entre as cordas. Aquilo foi apresentado como "pau de arrara"

Frente aos gritos e desespero do indígena apavorado foi sendo desfilado uma sucessão de outros métodos de "obter confissões". Não conseguia olhar. Mandado aplicar um eletrochoque se "queimou".

Foi mandado ao alojamento.

Suava e vomitava.

- Vou embora Maria.

- Não . Eu fico contigo. Mais um tempo e o velho parte. Daí tu formado nós casamos.

Sua cozinheira tinha um marido velho e moribundo que diziam ter questão de meses de vida.

- Aguento por ti.

****

No dia anterior a formatura o instrutor lhe comunicou, juntamente ao colega Xekren, que levariam um selvagem subversivo no "pau de arrara".

- O que ele fez?

- Tenho entre dois para escolher. Inimigos da pátria. Inimigos de vocês. Isso que importa recruta. E não quero essa pena colorida em seu quepe amanhã. E quero a fivela saindo do colar e voltando ao cinto.

Xekren não fez perguntas.

- Estamos certos?

- Ansioso pela formatura.

- Cumpre tua parte. Se vomitar te mato.

****

Soldados brancos traziam o "pau de arrara" com seu "inquilino".

Instrutor fazia últimas recomendações e arrumava detalhes nos uniformes.

Não queria olhar. Nem instrutor. Nem colegas. Nem o índio manietado.

Mas era difícil.

- !!!!

Reconhece um dos dois de sua gente dos que sobraram.

- Jekeri!!!

- Calado! O fim!

Instrutor empurrou todos para a formação de saída.

Marchava em suadouro de forno em brasas.

Tentava não ter olhos.

****

- Não te aproxima. Não é mais irmão.

- Voltaremos aos deuses. Aproveitamos essa folga fora do quartel. Nossa mata. Nosso comandante faz a grande viagem. É momento de retorno.

- Existe ainda algum povo?

- Existe o homem. E a vontade de resistir.