Um reluzente brilho de lombos crus
Jekeri pisava o barro do pequeno córrego após desistir de conseguir algum peixe com ele.
Estava com muita fome. Saiu pelo mato ralo para tentar o milagre de algum fruto silvestre.
De longe numa das arvores mais altas viu algo.
Quanto mais perto coração acelerando. Quase vomitou.
Aquele rosto de olhos esbugalhados, roxo e lingua de fora não era seu tio. Não queria que fosse.
Correu e gritou.
Mal o entenderam.
No burburinho dos preparativos do funeral começou a entender um pouco melhor sobre a tristeza e as esquisitices de seu tio nos últimos tempos.
- Ele nunca se recuperou da judiação dos policias brancos.
Falou das maldades do novo cacique geral dos brancos. Colocado a força por um tal "Regime" ou " Ditadura Militar".
Foi preso e surrado. Teve até "partes" do corpo cortadas.
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Pouca terra. Fazenda de boi dos brancos cercando tudo. Cacique tentou um roçado. Patas de cavalos noturnos destruíram quase tudo.
Os adultos mais fortes e ágeis começaram a caçar algumas reses. De noite com o máximo de silêncio e tentando mostrar bravura ante o temor que dominava todos naqueles dias.
Não demorou para voltar feridos.
Uma noite pai foi junto com mais dois da aldeia.
Passou muito o tempo de voltarem. Amanheceu.
Pedro e José arrastavam-se em múltiplos ferimentos. Pai não voltou.
De tarde homens brancos armados, empregados da fazenda, trouxeram seu corpo. Ante a revolta de minha mãe e irmã fizeram disparos e gritaram:
- Vocês fedorentos, vagabundos e agora ladrões tem uma semana para sair daqui. Senão vamos tocar fogo em tudo.
Cacique tentou argumentar que essa terra é nossa e que muito já tinha sido tirado. Não nós deixavam meios de subsistência. Foi chutado e espancado sob ameaça de armas.
Eu queimava por dentro, mas, sabia o poder daquele armamento. Seria morte imediata sem ajudar em nada.
- Somos da Revolução Redentora. Se não saírem voltaremos com o exercito.
Pavor e raiva tomaram conta de todos. Sair nem era opção. Ninguém sabia onde ir.
Sabíamos porém que um branco do tal exército tinham pego o lugar de cacique dos brancos. E sabiam que eles eram ruins com os pobres, negros e índios. Protegiam gente como os fazendeiros da região.
- Quero ir junto caçar gado.
- Vem Jekeri.
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Entre cinza e escombros muitos corpos torturados, vilipendiados e esquartejados. Velhos, mulheres, crianças. Todos.
Choro, loucura, vômito.
Os três emudecidos e quase automatizadamente tentam dar dignidade de funeral ao seu povo.
Saí.
Corre.
Até desmaiar.
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Acordou da bebedeira aos poucos. Cabeça latejando e inchaço na boca. Dores pelo corpo. Cubículo escuro, cheirado mal e com água pingando em seu corpo.
Os roxos e dores lhe revelam que foi espancado. Não lembra.
Sente fome. O gotejamento angústia.
A noite lhe atiram uma cumbuca. No escuro come mesmo sem ver a natureza do que lhe servem.
Reformatório Indígena Krenak. Um presídio para o povo índio. Magro e quase morto Jekeri tenta se aguentar. Quer sair dali. Vivo. Dizem que foi preso por consumo de álcool e vagabundagem. Trabalhava em fazenda de branco e comprou aguardente com seu ordenado. Mas nada valeu. Percebeu que não gostavam de argumentação. A verdade e os destinos estavam no verde oliva dos uniformes.
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Sargento Guedes era responsável por seu destino. Trabalhou mudo até a exaustão. Calado e discreto agradou o meticuloso militar:
- Você tem plenas condições de sair. Mas tenho receio. Me disseste que não sobrou muitos de seu grupo e desses nem tens o paradeiro.
- Vou pelo mundo
- Tenho uma proposta melhor . Vais servir a pátria como eu.
- ...
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Treinos físicos desconhecidos, diciplinamentos exóticos a sua cultura, proibições sem nenhum sentido aparente e um estranho amargor na boca. Não lhe deixavam, porém, outras portas. Seria da Guarda Rural Indígena. Levaria ordem e respeito as aldeias.
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A cozinheira, uma delas, também índia, Krenak, lhe trazia alguns agrados quando possível. Dentro dos períodos de descanso.
- Não fala quase nada.
- Melhor.
- Vai se formar guarda. Vida vai melhorar.
- Sim... Talvez.
Mais espaçado que os quitutes começou a vir, nos raros momentos a sós, alguns carinhos.
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Todos em semi círculo. Vem o instrutor.
Trazem um índio todo amarado e tendo uma barra de ferro atravessada por entre as cordas. Aquilo foi apresentado como "pau de arrara"
Frente aos gritos e desespero do indígena apavorado foi sendo desfilado uma sucessão de outros métodos de "obter confissões". Não conseguia olhar. Mandado aplicar um eletrochoque se "queimou".
Foi mandado ao alojamento.
Suava e vomitava.
- Vou embora Maria.
- Não . Eu fico contigo. Mais um tempo e o velho parte. Daí tu formado nós casamos.
Sua cozinheira tinha um marido velho e moribundo que diziam ter questão de meses de vida.
- Aguento por ti.
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No dia anterior a formatura o instrutor lhe comunicou, juntamente ao colega Xekren, que levariam um selvagem subversivo no "pau de arrara".
- O que ele fez?
- Tenho entre dois para escolher. Inimigos da pátria. Inimigos de vocês. Isso que importa recruta. E não quero essa pena colorida em seu quepe amanhã. E quero a fivela saindo do colar e voltando ao cinto.
Xekren não fez perguntas.
- Estamos certos?
- Ansioso pela formatura.
- Cumpre tua parte. Se vomitar te mato.
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Soldados brancos traziam o "pau de arrara" com seu "inquilino".
Instrutor fazia últimas recomendações e arrumava detalhes nos uniformes.
Não queria olhar. Nem instrutor. Nem colegas. Nem o índio manietado.
Mas era difícil.
- !!!!
Reconhece um dos dois de sua gente dos que sobraram.
- Jekeri!!!
- Calado! O fim!
Instrutor empurrou todos para a formação de saída.
Marchava em suadouro de forno em brasas.
Tentava não ter olhos.
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- Não te aproxima. Não é mais irmão.
- Voltaremos aos deuses. Aproveitamos essa folga fora do quartel. Nossa mata. Nosso comandante faz a grande viagem. É momento de retorno.
- Existe ainda algum povo?
- Existe o homem. E a vontade de resistir.