"SIC IN TERRA..."

"SIC IN TERRA..." (*1)

O vilarejo de casinhas comportadas como seus habitantes -- modestas, "vestidas" de cores desbotadas, nada berrantes, "salientes" -- amanhecera muito triste... o professor "Quiquirico" partira em definitivo para "a terra dos pés juntos" ! Naqueles tempos tinha-se um professor "para tudo", as 4 matérias e, anos antes, até Latim, o que os anos 60 aboliriam, inclusive das Missas e novenas. Fora-se o tempo da "língua morta" e com êle o velho mestre italiano Arlequino Quirino Buonarrotta, o simpático lente (ou docente... que ensina, em Latim) que abominava palmatória, instrumento de tortura estudantil ainda vivo nos anos 60 de Beatles e Jovem Guarda, ambos desconhecidos na vilazinha mineira escondida entre montanhas e sem televisão.

Dois alunos, meninos ainda, sentiram mais que os demais a morte do educador que, pressentindo-a, lhes deixara um envelope com a ordem expressa de só abri-lo após sua partida. Entre risos contidos -- cafezinhos com bolo de fubá ou biscoitos ou choro sentido -- mães e avós da meninada lamentavam o passatempo do instrutor querido. Os 2 garotos preferidos dele, lágrimas nos olhos, num quarto mal iluminado na tarde que se despedia do mestre de gerações, abriram seu bilhete.

Coluna de poucas letras manuscritas ainda com caneta-tinteiro de pena de ferro, as "de tinta seca" não haviam chegado ao lugar. Entreolharam-se sorridentes... mais 1 dos conhecidos enigmas do professor, seu passatempo predileto e que ensinara aos dois guris. Eis o conteúdo da mensagem oculta, entendendo os meninos que cada Letra maiúscula era o início de uma palavra ou frase, o que lhes facilitou muito a resolução do problema:

a * a i a a o V

m V * o t g t i

* o V c * i u t

E s i o L s m a

s t a n a t * *

t r m d G r M T

Não era do tipo de "transposição de letras", complicação irritante; esse era bem simples, mas devia ser lido ao estilo japonês, letra por letra da direita para a esquerda e de cima para baixo. E chegaram ao conteúdo "secreto": "Vita totum magistrat, LaGioconda Viam vostram est" !

LATIM... não sabiam Latim, mas foram à procura do jovem vigário recém-chegado e preparando a igrejinha para a missa de corpo presente do falecido, à noitinha. Não, êle não sabia "o idioma de Ovídio", no Seminário agora somente os provérbios latinos, com a devida tradução... mas o sacristão Ferreira (padrinho de meia cidade) conhecia a língua-mater dos romanos, a "Vulgata". Chamou-o e apresentou-lhe os garotos, que lhe entregaram o bilhete com a expressão latina.

-- "Ah, "a Vida ensina todos, Gioconda é o Caminho para vocês" ! É o que está escrito... conhecem alguma Gioconda" ?!

Não, não conheciam, mas como o "Quiquirico" nunca saíra da cidade, só podia ser alguém dali. Teriam que procurar !

-- "Bem pensado", concluiu o coroinha, sorrindo... "era uma nobre italiana que o genial Leonardo da Vinci pintou, num quadro hoje famoso no Mundo. Se chamava MONALISA del Giocondo... conhecem alguém com esse nome" ?!

Sim, todos conheciam... a octogenária preceptora "Beliza" (nascida Beatriz Monalisa), mais velha no lugarejo que o Arlequino. Bateram na porta da casinhola com cerquinha branca e belas flores à volta. Entraram !

-- "Ooohhh... então, são vocês ?! O mestre me deixou um envelope, com a recomendação de entregar-lhes ou de destruí-lo em 1 ano. Parecia saber que seu fim se aproximava. Tomem. É SEU" !

Na pracinha próxima dali abriram emocionados o envelope:

"Meus queridos alunos ! Da vida só se leva os amigos que fizemos e o carinho de quem nos admira. Tudo o mais fica na Terra. Há um presente para vocês "no fim do arco-íris", se decifrarem o enigma, caso contrário tudo se perderá. BOA SORTE... estarei com vocês na jornada". FIM da mensagem ! Num outro papel, em Português claro, (?!) o tal "enigma":

"Vão até a Caldeira do Diabo... na boca da gruta sentem no "Trono da Bruxa" e dali verão uma jaqueira centenária, 300 metros além. Ao chegarem lá, subam até o segundo galho, o maior, virado para o Sul, quase oposto ao por-do-sol. De cima do galho lancem até o chão 2 fios paralelos, distantes 1 metro entre si, com um peso na ponta. Quem estiver no chão tire uma linha reta a partir dos 2 fios e ande exatos 50 passos, partindo do tronco da jaqueira. Sem se virar, estique o braço direito e, ao girar a cabeça, verá a "árvore do fruto proibido". Pois bem, cavem 5 passos antes e... SEJAM FELIZES"!

-- "Isso é um MAPA do tesouro... veja a referência ao arco-íris" !

-- "Será que o professor era tão rico ?! Um... TESOURO ! Será mesmo possível" ?!

-- "Ora, livro é que não pode ser... e PRA SER FELIZ só sendo grana" !

-- "E a tal caverna... nem sabemos onde fica" !

-- "Nós, não... mas o "Lilico" sabe ! E aposto que foi êle quem levou o professor lá. Vamos combinar com êle no feriado, depois a gente vê como compensar o "pestinha" !

-- "Mas, logo o "Lilico"... aquele garoto é uma peste" !

Avisaram cada um seus pais, informando-os que iriam pescar e só voltariam por volta do meio-dia... sisudos e responsáveis, não causaram estranheza, evitando cientificar as genitoras que o moleque mais impertinente da vila iria com êles. "Zézinho ou Zeca" para os parentes matutos, virara "Lilico" para a cidade inteira graças ao chapéu marrom amassado na frente, à semelhança do humorista famoso nos anos 60/70, com o inesquecível bordão e imensa zabumba... "vâmu acabá cu'esse negócio" (que êle nunca disse qual era) e a cançãozinha: "tempo bão / que não volta mais... / saudádi / que esse tempo me traz" !

Contratado, "Lilico" fez pouco dos "CDFs" Cláudio e Márcio:

-- "Então, "as meninas" querem ir até a Gruta da Bruxa"... não vão mijar nas calças, "benzinhos" ?!

-- "Qual é, "Lilico"... se você foi, a gente vai também" !, protesta Márcio.

A rota era um terror, não havia caminhos entre as montanhas íngremes, era preciso coragem, o cannyon lá embaixo estava à espera dos corpos dos incautos e malucos. Um longo tempo de trajeto apavorante e chegaram à gruta, mudos de terror. Para "Lilico" era só um passatempo... até admiraram o moleque endiabrado. Sentaram na pedra moldada em forma de sofá, poltrona. "Lilico" por último... identificou a jaqueira, ficava no potreiro do "seu Nacib", um turco comerciante na outra serra, teriam que contornar, não dava para descer e escalar depois.

Lá se foi a manhã... sol a pino, Márcio subiu na árvore com os 2 fios "de prumo" e desceu-os em linha, como recomendado no texto da carta. "Lilico" pensou que ficaram "lelés", birutas. Cláudio, no chão, orientou "Lilico" na caminhada de 50 passos, uns 30 metros, à Oeste, sol poente... "estique o braço direito e nos diga o que está vendo"!, ordenou emocionado.

-- "O parreiral da velha "Zuzuca" !

Márcio, já descendo da árvore encarou Cláudio, estupefato:

-- "Será que o professor se enganou ?! A "fruta do pecado" não é a maçã ?!, cochicharam entre si, para que "Lilico" não percebesse.

-- "Sei lá... êle também dizia que os gregos adoravam vinhos, o deus "Baco", Dionisos entre êles. Vai ver se confundiu" !

Quase toda a garotada "conhecia" o parreiral, a velhota ameaçara comprar uma garrucha para dar "tiros de sal" na bunda dos ladrõezinhos. Já passava das 13 horas quando lá chegaram. Começaram a cavar... o vira-lata da velha alertou-a e ela foi conferir o que se passava:

-- "Ora, ora... os 2 "anjinhos" da vila e o "Capeta" da cidade... o que fazem no meu quintal" ?!

-- "Estamos só procurando minhocas, dona "Zuzuca", vamos pescar" !

-- "Muito bem... acabem logo com isso e sumam. E levem esta "praga" daqui (apontando "Lilico"), não o quero apedrejando meus passarinhos" !

Cavação inútil, num raio de 3 metros nada encontraram... voltaram ao "ponto 2", vendo "Lilico" tacar certeiras pedradas em tudo o que via, com a mão esquerda. Márcio pegou na mochila a latinha vazia de salsichas da merenda que fizeram e a colocou a razoável distância.

-- "Lilico", quero ver você acertar a latinha... com a mão DIREITA" !

O traste pegou um pedrisco, jogou-o duas vezes pro alto, levou a mão para trás e... PIMBA, a latinha saltou, atingida pela mão ESQUERDA. O miserável era CANHOTO ! Puseram-no na posição correta, braço direito estendido, postaram-se atrás do "pestinha", envergonhado pelo papelão que fizera. BINGO... lá estava no lado oposto, no Oeste, a macieira do "seu Zé da Padaria", "o fim do arco-íris", o PRESENTE, o tesouro.

Correram esbaforidos, plenos de certeza, "Lilico" atrás, sem entender "bulhufas" nem "patavinas". Nem se deram ao trabalho de cavar... bateram com as costas da pá no chão, até ouvirem um som oco. Ao rés do solo, palmo e meio no fundo da terra, a pequena arca cheia de moedas antigas de vários países, meio século colecionando uma razoável fortuna. A cidade inteira soube "do tesouro", "Lilico" virou herói e a professora tratou junto ao Governo do ressarcimento , afinal tudo o que está sob o solo lhe pertence por lei. Os meninos reformaram a velha Escola, agora com nome do amado Mestre e "Lilico" virou guia turístico de quantos ousam visitar a caverna "assombrada", moda no lugar.

"NATO" AZEVEDO (em 30/out. 2021, 6-15hs.

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OBS: este conto baseou-se no magnífico enredo de "O ESCARAVELHO DE OURO", de Edgar Allan Poe e segue como HOMENAGEM !

(*1) "SIC IN TERRA..." - significa, em Latim, "Assim na Terra..."