Os deuses ausentes

Myrianthe e eu crescemos na mesma comunidade pobre (ela não se melindrava em chamá-la de favela), em Mideyah Ocidental. Todavia, diferentemente da maioria das crianças da nossa idade, Myrianthe gostava de questionar a ordem estabelecida, o que não a tornava particularmente popular entre os anciãos e outras figuras de autoridade.

- Por que temos que viver nessa miséria, se há um mundo imenso à nossa volta? - Questionava. - Por que não podemos sair de Mideyah e procurar um lugar melhor?

- Porque assim foi estabelecido pelas divindades do nosso povo - era a resposta que quase sempre recebia. - Não nos cabe questionar os desígnios dos deuses.

Mas Myrianthe era de opinião que os deuses ou eram estúpidos ou cruéis; talvez ambos.

- Que espécie de punição querem nos impor, nos fazendo viver nessa terra ingrata, enquanto há tanta terra boa ao redor de Mideyah? - Perguntava aos seus interlocutores mais chegados - eu dentre eles.

- Os anciãos dizem que os deuses reservaram estas terras apenas para os escolhidos; o nosso povo não está entre eles... - eu poderia responder.

Ou:

- O nosso povo chegou por último no mundo, e teve que se contentar com a terra que sobrou: Mideyah - diria outro.

Myrianthe erguia um dedo e dava a sua visão das coisas:

- Alguém está levando vantagem nessa história; e se não somos nós, precisamos saber quem são.

- Os deuses não explicam isso nem para os sacerdotes - eu replicava. - Acha que irão dizer pra você?

- Pois então eu vou descobrir onde estão as respostas - afirmava com ar determinado. - E quando as encontrar, vou mudar tudo aqui em Mideyah.

Aquilo parecia uma simples bravata de adolescente, até que um dia ela me apresentou a Ionas.

- Muitos anos atrás, o avô de Ionas viajou para além de Mideyah - disse-me ela.

- Ele viu os jardins e os pomares dos deuses, onde nossa entrada é proibida - afirmou orgulhoso Ionas.

- E eles não mataram seu avô? - Questionei.

- Meu avô disse que não viu os deuses em lugar algum fora de Mideyah. Mas seus jardins e pomares continuam sendo cuidados por servos que não falam.

- Os deuses podem estar em outro lugar do mundo; um dia, certamente voltarão às suas propriedades - repliquei.

- E se os deuses estiverem mortos e apenas o medo de que voltem nos impeça de ocupar suas terras? - Provocou Myrianthe.

Aquilo era heresia e todos sabíamos disso. Mas na voz de Shantel, a provocação soava extremamente lúcida.

- [19-10-2021]