Crônicas de Garesis - Na Masmorra (final)
Depois de acender as canaletas com óleo, Garvin, o mestre caçador de tesouros e Vetus seu aprendiz tomaram um susto, recuando vários passos, na frente deles havia um orc, sua aparência era aterradora, com pontos onde a carne faltava deixando a vista ossos e orgãos, todos em estado de decomposição, mas de certa forma estava vivo, segurava nas mãos uma espada curva enferrujada, as peles que vestia estavam pingando podridão e a coroa na sua cabeça exibia o crânio desprovido de carne, Vetus se arrepiou quando encontrou seu olhar e furioso a criatura soltou um berro agonizante de gelar a espinha, avançou na direção dos dois, cambaleante. Garvin sacara sua espada e Vetus o imitou puxando sua adaga então veio o primeiro, golpe de cima para baixo, com quem quer fatiar uma carne em dois, o mestre aparou com sucesso o golpe, mas foi surpreendido com as longas presas procurando seu pescoço, já era tarde quando o jovem aproveitou sua estatura para atacar por baixo dos dois, mirando o peito da aberração.
Por sorte Vetus atingiu um ponto vital, o coração, a criatura largou o pescoço de Garvin e olhou para o jovem com olhar assassino, mas logo depois ele se desfez numa pilha de cinzas, as únicas coisas que sobraram foram a espada curva, a coroa e um coração espetado na adaga de Vetus.
Garvin largou a espada e caiu de joelhos ante a porta do corredor, Vetus veio em seu auxílio o aparando, depois de sustentar o mestre e apoia-lo na parede úmida, o garoto retira de sua bolsa uma bandagem de linho, quando fez o curativo, o sangue do mestre gorgolejava quente em sua mão, mas com o conhecimento apropriado ele conseguira estanca-lo com sucesso.
-- Obrigado garoto. - disse o mestre respirando com mais normalidade, ainda segurando o curativo no pescoço.
-- O que era aquilo mestre? - quis saber o jovem enquanto oferecia água e castanhas.
-- Era um corrompido, um morto que volta a vida atravéz de uma magia perigosa chamada necromancia. - respondeu ele bebendo em seu odre. - Olhe o coração!
Vetus olhou para atrás na pilha de cinzas que era o orc, lá estava o coração que atingiu, diferente dos demais este era preto, com algumas marcas na sua superfície envolto nele um barbante segurava um papel com um símbolo.
-- Este só pode ser o rei - retomou Garvin apontando para coroa. - esta neste lugar há pelo menos duzentos anos, a própria necromancia não permite que ele seja decomposto completamente, mas o que isso indica?
--Que algo de valor estava sendo guardado. - concluiu o jovem.
--Exato, quero que faça o seguinte, faça uma busca nos quartos e quando terminar volte para irmos até a porta no final, é lá que está o que nos trouxe aqui.
Vetus fez o que pediu o mestre, desta vez levando consigo a espada curva de aço negro do rei orc.
Nos dois primeiros quartos da direita haviam apenas livros velhos, pergaminhos e mesas de estudos, todos já haviam sido vasculhados, pois algumas estantes estavam no chão, cadeiras jogadas em cima de camas de palha partidas em vários pedaços. Candelabros, canecas, pratos foi tudo o que encontrou.
Na primeira porta da esquerda o jovem encontrou dormitórios, varias camas e redes, haviam também baús mas estes estavam com a tampa ou com a fechadura partidos, nada além de roupas e outas coisas inúteis. Mas foi na segunda porta que parte da viagem começou a valer a pena, quase tudo estava intacto, seja lá quem tenha atacado o palácio orc aparentemente deixou este cômodo de lado, a princípio foi assustados, a sala era maior, acima pendia uma grande lâmpada de óleo suspensa por correntes com o formato cônico, o metal parecia prata, bem abaixo dele havia um atril de pedra, vetus se aproximou com cuidado, além de nichos na parede com diversos pergaminhos não viu mais nada, o jovem então baixou a lâmparina numa manivela na parede direita para depois acendê-la com a tocha que segurava, novamente suspensa e iluminando o cômodo, vetus pode perceber que todas as paredes estavam marcadas com algo que lembrava sangue velho e escuro e mais, sob seus pés os mesmos símbolos se repetiam num padrão circular em torno do atril. Ali o jovem sentiu a atmosfera mudando gradativamente, estava pesada e mais fria, as escritas por toda sala lhe causava uma sensação incomoda, tentando colocar esses sentimentos de lado ele examinou os nichos, ali encontrou uma pequena urna em um dos nichos com duas taças, uma de ouro e outra de um material escuro que desconhecia, além de varias moedas, levou consigo até o atril, um receptáculo para livros, olhou com atenção para o tampo, havia padrões de uma forma de escrita por toda superfície, examinou abaixo, as costas do tampo e o pilar que o sustentava, foi ali que encontrou em um dos lados da coluna parecia ter um recorte na sua borda, poucos olhos poderiam tê-la percebido, ele tateou e por fim, coma ajuda da adaga a empurrou para fora. tratava-se de um fundo falso, dentro dele repousava um estranho bracelete com uma única jóia translúcida.
Depois de pegar o bracelete e a urna, Vetus ficou grato por sair daquela sala estranha e tenebrosa, foi até seu mestre que ainda estava recostado na parede a esquerda, ele deu um sorriso murcho quando viu o aprendiz, estava terrivelmente mais pálido.
-- Como se sente mestre? - quis saber imediatamente.
-- Bem. - mentiu ele. Vetus se aproximou e antes que o mestre pudesse ocultar, do local do ferimento pequenas veias pretas serpenteavam e subiam por seu pescoço, aprendiz olha para seu mestre com compaixão. -- Não há o que ser feito. - disse Garvin se levantando com dificuldade. - vamos para o final do corredor e depois damos o pé daqui.
Antes, Vetus mostrara ao mestre o que conseguiu nas salas, dividiram em suas bolsas e depois de pasarem as quatro portas de madeira chegaram a uma porta dupla, esta de pedra escura e com diversos símbolos gravados na superfície, mas sem nenhuma fechadura, o rapaz antecipa o pedido do mestre e saca a bússola com os ponteiros de ferro e prata, depois da análise não apontar nada, examinaram as paredes em ambos os lados. Foi Garvin quem localizou, um espaço circular na parede perto da porta, com tamanho suficiente para caber uma mão.
-- Encontramos a fechadura - disse ele.
-- Temos a chave. - respondeu Vetus retirando o bracelete da bolsa, um item tão escondido e proteguido não podia ser um simples adorno.
O mestre decidiu colocar o bracelete em seguida inserir na cavidade circular, nele pelo tato sentiu diversos mecanismos e rodas dentada, quando o bracelete estava perfeitamente encaixado, ele girou o pulso no sentido anti-horário. um clack característico indicou o funcionamento de um complexo sistema.
Garvin estava notavelmente abatido, as veias negras ja alcançavam seu rosto e ele andava com dificuldade, depois que as portas se abriram eles adentraram numa sala fracamente iluminada, com a não ser por um brilho azulado que vinha de uma fonte de pedra, esta, diferente das paredes era de um branco alvo sem igual, no centro se erguia um pilar, com varias marcas que desciam como serpentes até o recipiente que no lugar de água possuia uma névoa bruxuleante, no centro do pilar, virado para a porta uma pequena bacia de pedra do mesmo material, mas esta estava vazia. Garvin examinou o topo, nele dois círculos concêntricos foram gravados, então volta sua atenção ao jovem Vetus que estava admirado.
-- Vetus. - chamou ele com dificuldade. - venha, preciso que faça algo.
-- Sim mestre.
-- Vou ter que pedir algo muito difícil a você. - começou - No topo do pilar há dois círculos, preciso que coloque a palma de sua mão bem no centro.
-- O que vai acontecer? - quis saber.
-- Você vai sentir dor, vão espetar sua mão e drenar seu sangue.
-- Como sabe tudo isso mestre?
-- Nosso contratante disse tudo o que precisava saber sobre o lugar, só não previra o orc corrompido e isso dificultou a missão, meu sangue está contaminado, não vai servir. - ele deu uma pausa na instrução, Vetus percebeu que o mestre estava lutando contra as toxinas da mordida do orc. - terá de ser o seu, então você vai poder pegar o que tem ai dentro e ai estará terminado. - disse indicando a fonte.
-- farei mestre.
Vetus hesitou a princípio, olhou para seu mestre que lhe lançou um olhar de aprovação antes de se encostar na borda da fonte, mas depois colocou a mão esquerda na pedra fria, aquele toque foi mais que o suficiente, percebeu que sua mão estava colada e não conseguia tirar, o pior veio depois com um choque, uma dor excrusiante fez lágrimas brotarem dos olhos do menino, um espeto perfurava sua mão de baixo para cima, quebrando ossos e rompendo nervos, não demorou para o sangue dele escorrer e pelas cavas nas laterais ser conduzido até a fonte, quando a primeira gota tocou a névoa abaixo, o que era de um azul calmo se tingiu de rubro, o que parecia gasoso se tornou liquido e então tudo embaixo era uma enorme tina de sangue, sangue do garoto.
Quando finalmente o espeto de metal desceu liberando sua mão, o sangue foi aos poucos sumindo, sugados por algum canal e então a bacia na frente revelou seu compartimento na base do pilar deixando uma trouxinha de couro á mostra. O primeiro instinto de Vetus foi recolher o objeto, um frasco com um líquido prata envolvido por um mapa feito de couro costurado, um couro que não sabia de qual animal era.
Vetus desceu da fonte, a mão ainda sangrara , mas já não doia tanto, se ajoelhando na frente do mestre com o prêmio na mão, mas então sentiu uma dor pior que a primeira, a cabeça de Garvin pendia para o lado, os olhos abertos estavam negros como o céu noturno e a pele branca como vela.
Os olhos do garoto marejavam, ele então se debruçou no peito do mestre num abraço que nunca recebeu e ali chorou, até que sua mente treinada fez com que ele fizesse o que foi treinado por Garvin a fazer. Entre as lições com o caça tesouros, Garvin fez o jovem repetir oralmente mais de cem vezes os procedimentos para este caso;
Ele retirou o anel dos dedos inertes, pegou sua espada, capa e as bolsas que carregava, fechou seus olhos e em uma das mãos colocou uma moeda, um caçador jamais ia para o além com mãos vazias e assim, se despedindo da figura paterna ele deixou a câmara e partiu, antes, subindo na ponta dos pés colocou o braço na cavidade, girou o pulso trancando a porta e seu mestre junto.
Quando vetus chegou do lado de fora, com muita dificuldade por conta do peso das sacolas, percebeu que era de manhã, ao que parecia passou uma eternidade lá dentro, então saiu a direita para onde estavam os cavalos, ali uma figura o aguardava, usava um sobretudo roxo escuro com detalhes em fio prateado, na cabeça um chapéu cônico da mesma cor e nas mãos um cetro de madeira branca, seu rosto era jovem, a barba bem aparada e os cabelos castanhos caiam em mechas sobre o olho esquerdo. Vetus soltou as bolsas e sacou a espada do mesmo, embora mal pudesse segurá-la.
-- Relaxa - disse a figura. - não vou fazer nada contra você, Vetus, não é?
-- Quem é você - quis saber o jovem sem abaixar a lâmina.
-- Sou aquele que contratou Garvin, onde ele está?
-- Morto, mordida de orc corrompido.
-- Sinto muito, eu devia ter previsto isso, você o deixou lá?
-- Sim, conforme ele me instruiu.
-- È bom que fique por lá, em poucas horas vai virar um corrompido também, não ia querer vê-lo assim, uma pena mesmo.
-- O que tem neste frasco? - perguntou sem cerimônias segurando o vidrinho com líquido prateado.
-- Sangue, sangue de dragão.
-- Meu mestre morreu por isto? - disse Vetus alterando sua voz.
O mago se aproximou e se abaixou perto do garoto, seus olhos eram verdes e profundos e embora falasse como alguém de muitíssima idade, era mais jovem que Garvin.
-- Vetus, olha só, seu mestre morreu para resgatar a última esperança de uma raça quase extinta, isso vai salvar todos nós um dia, Garvin sabia disso e sabia dos riscos, ele era o melhor de sua classe e se foi aprendiz dele também será.
Vetus mal conhecia aquela pessoa, mas entregou o vidro e o couro, o homem guardou em seu bolso e foi até o centro do pátio de pedra, por um instante o garoto acreditou que fosse deixado sozinho.
Com um lampejo o mago bateu seu cajado contra o piso de pedra e ali vários círculos luminosos surgiram com símbolos estranhos.
-- Vamos. - disse o mago estendendo-lhe a mão.
-- Para onde? - quis saber o jovem.
-- Vou te dar uma casa numa cidade ao sul, pode ficar com tudo o que encontrou pra sim e ter uma vida boa, mestre Vetus.
O jovem sorriu e puxando as montarias foi até o círculo, e antes de entrar totalmente no círculo ele vira para o contratante e pergunta:
-- Aliás qual é o seu nome?
-- Me chamo Magnus.
Então os dois somem com um forte clarão deixando para trás uma história triste e nos bolsos a esperança encontrada em uma masmorra.
Fim