A Guardiã da Floresta
Kallixeina caminhava a esmo pela floresta mergulhada em névoa, pés hesitantes, braços estendidos para a frente para não bater em nenhum obstáculo. Nenhuma voz humana se ouvia, apenas o canto dos pássaros, o zumbido das abelhas, e o vento nas ramagens. Alguma coisa acontecera com sua comitiva durante a noite, e quando ela despertara pela manhã, encontrou-se sozinha - e cega.
Certamente fora caprichosamente punida pelos deuses por qualquer falta que não lhe ocorria ter cometido; ao menos, não uma que no seu entendimento merecesse tamanho castigo. Parou para tomar fôlego, apoiada no tronco de uma árvore, e lhe pareceu ter ouvido o estalar de um graveto. Girou a cabeça ao redor, coração aos pulos, visto que diante de seus olhos havia apenas escuridão. O que poderia ter sido aquilo? Um salteador? Um animal selvagem?
- Quem está aí? - Ergueu a voz.
- Você está perdida - respondeu uma voz de mulher diante dela.
Kallixeina sentiu uma ponta de alívio.
- Perdida e cega - admitiu. - Algo aconteceu com a comitiva que me acompanhava, desapareceram todos esta manhã.
- Como você se chama? - Indagou a outra mulher, agora mais próxima.
- Sou a princesa Kallixeina - informou. - E você, quem é?
- Pode me chamar de Guardiã - redarguiu a mulher. - Preciso levá-la para um lugar seguro, até que você recupere a visão.
- Então... acha que isso é temporário? - Perguntou.
- Tenho certeza de que sim - afirmou a Guardiã, tomando a mão dela. - Venha comigo; moro numa caverna perto daqui.
Kallixeina sentiu que não tinha muitas opções além de aceitar o convite. Mesmo que estivesse enxergando perfeitamente, pouco poderia fazer sozinha naquela floresta. E ademais, se a outra mulher quisesse lhe fazer mal, não precisaria levá-la para outro lugar para fazer isso.
- Vamos - assentiu com relutância.
* * *
Os dias se passaram. A Guardiã cuidava de Kallixeina e esta acabou afeiçoando-se à ela. Mesmo cega, a princesa ajudava nas tarefas diárias dentro da caverna com piso de areia onde residiam; conseguia deslocar-se sem ajuda no espaço, o qual era bastante amplo, e principalmente, sem chocar-se com as inúmeras estátuas que a Guardiã colecionava como decoração.
- Você tem tantas estátuas - comentou logo ao chegar, tateando as figuras esculpidas no que parecia ser mármore. - E todas de guerreiros...
- São os meus preferidos - admitiu a Guardiã de bom humor. - Gosto de pensar que estão aqui para me proteger.
- Você não me parece ser uma pessoa que precise de proteção - redarguiu a princesa, lembrando-se de que como fora resgatada na floresta.
- Eu sou mortal, como você - assegurou a Guardiã. - Portanto, sim, também tenho medo de morrer.
- Não gostaria de vir comigo, para a minha cidade? - Indagou a princesa. - Certamente meu pai ficaria muito agradecido por ter salvo a minha vida...
- Não sou muito de cidades - confessou a Guardiã. - Por isso vivo isolada, nesse ermo; ninguém me visita, e tampouco me afasto daqui.
- Não tem parentes, amigos, um amante? - Questionou Kallixeina.
- Tudo isso ficou no passado - afirmou a Guardiã. - Por isso fiquei tão feliz quando a vi na floresta... finalmente, uma companhia, alguém para conversar!
Kallixeina pensou que por mais agradável que a companhia da Guardiã fosse, não gostaria de passar ali o resto dos seus dias. Mas, como poderia ir embora em seu lastimável estado de cegueira?
* * *
Kallixeina despertou com a Guardiã sacudindo-a gentilmente.
- Princesa, acorde! Ouvi vozes gritando seu nome, na floresta!
- Serão emissários do meu pai? - Indagou, sentando-se na manta onde dormia.
- É possível - admitiu a Guardiã. - Venha, vou levá-la até eles...
Tomando a princesa pelo braço, a Guardiã levou-a através da floresta até que se afastaram a uma boa distância da caverna. Finalmente, Kallixeina ouviu vozes distantes chamando seu nome. Uma delas parecia inequivocamente ser a do seu irmão, Periandros.
- Acho que são eles - disse aflita para a Guardiã.
- Ótimo! É a sua chance de ir para casa - redarguiu ela, enfiando um maço de folhas na mão da princesa. - Guarde estas ervas; quando chegar ao seu acampamento, peça para ferverem água com elas dentro. Depois que esfriar, lave seus olhos com a infusão; deverá enxergar novamente.
- Você não vem comigo? - Indagou a princesa. - Meu pai certamente irá recompensá-la por tudo o que fez por mim.
- Meu melhor pagamento foi a sua presença, Kallixeina - garantiu a Guardiã. - Me dê dois minutos para que me afaste, e depois grite chamando o seu povo.
A Guardiã tocou com os lábios o rosto de Kallixeina, e depois esta não sentiu mais a presença daquela. Encheu os pulmões e gritou a plena força:
- Periandros!
* * *
Após lavar os olhos, a visão retornou gradualmente aos olhos da princesa. Primeiro, viu uma névoa diante de si, depois começou a perceber vultos e rostos, inclusive o do irmão.
- Temíamos pelo pior - disse Periandros. - Principalmente depois do que o monstro fez com sua comitiva.
- O monstro? - Indagou Kallixeina surpresa.
- O monstro que transforma homens em pedra - prosseguiu Periandros. - Muita sorte de estar dormindo e não ter olhado para ele.
Foi só então que Kallixeina compreendeu que sua cegueira fora uma forma de proteção. A Guardiã - ou o monstro, para o seu povo - não queria que ela visse sua verdadeira forma, pois isso significaria a morte.
- Quem cuidou de você, durante todos esses dias? - Quis saber Periandros.
- Uma mulher muito gentil - assegurou Kallixeina. - Mas ela não busca recompensas, disse que a minha presença era o melhor pagamento que poderia ter tido.
Periandros balançou a cabeça, sorrindo.
- Vocês, mulheres, são mesmo muito estranhas!
- [06-07-2021]