Além da Ponte

Sir Richard havia pedido que uma dúzia de seus homens ficassem parados na saída norte da pequena vila, para o caso de os ladrões seguirem por aquela rota. Era pouco provável, já que nos últimos meses os malfeitores se utilizavam da saída leste para escapar após sua empreitada. E exatamente nessa saída que Sir Richard, com a maior parte de seu contingente, aguardava pacientemente para confrontar os sem-vergonhas que insistiam em aterrorizar o povo indefeso da vila.

Eu, com apenas 15 anos e sonhos de me tornar um cavaleiro, era o escudeiro fiel de Sir Robert, um cavaleiro vassalo de Sir Richard. Não era tão imponente, nem o mais inteligente dos combatentes, motivo esse de ter sido ordenado ficar na saída norte, ao invés da leste onde os cavaleiros e arqueiros mais experientes estavam.

Não me entenda errado, Sir Robert é um bom cavaleiro, mas não é exatamente o exemplo que eu queria seguir quando eu for um Sir. Tem algumas falhas de caráter, as quais repudio, mas sendo eu um mero escudeiro não estou em posição de contestar e muito menos dizer-lhe o que fazer. Sir Richard, por outro lado, é incrivelmente honrado, experiente e sábio, esse é um exemplo a ser seguido de olhos fechados. Gostaria eu de estar em boa cota com este nobre, mas infelizmente ele não sabe quem sou, ainda. Como escudeiro estou presente ao lado de meu cavaleiro em todos os momentos, mas como uma sombra, passo despercebido pela maioria das pessoas.

— Traga a garrafa de vinho, John!

— Sim, Sir Robert, imediatamente — respondi o mais rápido que pude. Estava distraído, olhando para uma garça que pescava no rio a nossa frente.

Para sair da vila pelo norte, seria necessário passar por uma ponte curta que cruzava o rio. Se os ladrões realmente escolhessem essa rota, teriam que obrigatoriamente cruzar a ponte. O rio era fundo demais para passarem pela água, a não ser que o indivíduo soubesse nadar. Se, por ventura, tiverem as mesmas habilidades que eu, a ponte se torna a única alternativa.

Sir Robert nos posicionou perto de algumas árvores que ficavam perto da ponte. A ideia era que os ladrões não colocassem olhos no grupo até que fosse tarde demais para voltar. Se o embate começasse, um outro escudeiro, de nome Jean, deveria correr e avisar Sir Richard para que flanqueassem os ladrões e dessem cabo de uma vez por todas nesse bando infeliz. Se eles saíssem pelo leste, entretanto, isso não seria necessário, já que as forças que ali estavam eram absurdamente superiores aos vinte homens que Sir Richard colocou no norte.

Em suma, éramos o plano B. E Sir Robert sentia-se diminuído por isso e vinha me tratando mal desde então.

— Para que está afiando isso, menino? — interrompeu-me ele quando me viu afiando sua adaga.

— Sua espada está com o fio perfeito, milorde, mas esta adaga pouco fará se os inimigos por aqui vierem.

Ele riu.

— Não vamos ver ação alguma hoje, John! O velho vai resolver tudo do lado leste e levar toda a glória por ter salvo essa triste vila de pobretões — disse ele, arremessando um galho para longe com raiva.

Não gostava quando ele chamava Sir Richard de velho, por sorte ele pareceu ter ignorado a careta involuntária que fiz.

— Bom, pelo menos estamos comendo e bebendo sem ter que nos preocupar com a indigestão — divertiu-se Billy, um arqueiro barrigudo de meia idade que só pensava em comer. Billy já havia salvo Sir Richard em uma ocasião e, como gratidão, o nobre o empregou, mas o arqueiro pouco fazia para retribuir a oportunidade dada, apenas gastava o dinheiro de Sir Richard, sempre dando um jeito de ficar longe das confusões.

— Devemos estar preparados, não temos certeza se eles irão realmente repetir a rota do leste — alertou Godfrey, um experiente lanceiro, quem eu tinha em grande estima. Devia ter seus 50 anos, mas era forte como um touro e ágil como uma lebre. De todos os homens que estavam na saída norte, ele era o único que eu realmente admirava.

— Deixe disso, aproveite enquanto há tempo. Quando Sir Richard parecer por aqui vamos ter que parecer sóbrios e preparados, até lá desfrute da paz — aconselhou outro do bando, para o divertimento de alguns.

— Se está tão preocupado, Godfrey, leve meu escudeiro com você e vá checar se há algum sinal de movimento na vila — sugeriu Sir Robert. Conhecendo-o como conheço, deve ter querido se livrar de nós e continuar bebendo com os demais, sem o infortúnio de ter-nos ao lado julgando seus atos. Ainda que nosso julgamento pouco afetasse seu curso de ação.

Eu e Godfrey fomos até a cabeceira da ponte para olhar além da colina, mas não vimos viva alma.

— Isso não é um bom sinal — anunciou ele para mim.

— O que quer dizer?

— Se estivesse tudo bem veríamos os aldeões trabalhando nos campos. O coelho não entra na toca sem que tenha visto a raposa.

Vi que ele segurou com mais força a haste da lança, como se estivesse se preparando para algo eminente.

Eu, armado apenas com a adaga com pouco fio de Sir Robert, fiz o mesmo.

— Avise aqueles beberrões que há algo estranho, menino. Eu vou tentar olhar mais de perto.

Obedeci de imediato.

Quando contei a Sir Robert o que Godfrey havia me dito apenas obtive gargalhadas.

— Pelo amor de Deus, John! Não passarão por aqui, sente-se e beba um gole de vinho para se acalmar.

Como bom escudeiro que sou, apenas acatei, recusando o vinho, ainda que a vontade fosse de aceitá-lo. Não teria tal oferta tão cedo novamente, mas estava receoso com a postura de Godfrey. Queria estar alerta e, sendo eu fraco para a bebida, achei prudente recusar.

E tomei a decisão certa!

Segundos depois Godfrey apareceu correndo em desespero em nossa direção alertando-nos que o inimigo se aproximava pela ponte.

— Seu imbecil, anunciou nossa posição! — vociferou Sir Robert, levantando-se em um pulo e quase caindo sozinho. — Rápido, disparem contra os desgraçados.

A primeira flecha que cruzou o céu veio do lado inimigo. Godfrey foi atingido nas costas e caiu de cara no chão, soltando sua lança. O homem havia se sacrificado para nos avisar que o plano B agora era o Plano A. Não fosse por ele, os onze homens que bebiam e comiam teriam sido pegos de surpresa pelos ladrões.

— Meu escudo, menino! — ordenou Sir Robert.

Dei-lhe seu escudo e ele se posicionou junto de mais quatro homens armados com espadas e lanças, prontos para a carga inimiga. Os arqueiros disparavam flechas de penugens brancas que pintavam uma linha até seus alvos. O inimigo a cavalo ganhava terreno rapidamente e a bebida havia atrapalhado a mira de nossos arqueiros que disparavam a esmo sem grandes sucessos.

Mais de trinta ladrões vinham com objetivo sangrento e feroz contra o pequeno bando que impunha resistência. Alguns disparavam flechas de cima das celas, o que não ajudava na precisão, mas ainda assim foram capazes de ferir dois de nossos homens, tirando-os do combate em questão de segundos. Eu tentei acudir um dos feridos que havia sido atingido na perna esquerda e perdia sangue com rapidez.

Pouco pude fazer, entretanto.

Uma flecha lhe atingiu a têmpora e o tronco do homem inerte foi levado para o chão num solavanco. Aflito, ainda tentei reanimá-lo, mas era mais meu desespero do que esperança que me levou a tal ação.

Sir Robert disparava ordens quando um homem a cavalo o atingiu com sua espada em seu escudo e lançou-o ao chão. Corri para ajudá-lo.

— Saia, moleque! — vociferou ele, enquanto eu o ajudava a se levantar.

— Abaixe! — gritei, puxando-o de volta para baixo. Uma lâmina passou zunindo próxima de sua orelha.

— Não me atrapalhe! — disse ele, me empurrando para longe, como forma de agradecimento.

Uma flecha caiu no chão, pouco mais de um metro de onde eu estava. Me recuperando do empurrão, resolvi ajudar os poucos vivos que restavam. Os ladrões estavam nos dizimando e para piorar nossa situação, vi Jean, o outro escudeiro que deveria informar Sir Richard, sem vida com uma ferida aberta no peito.

Estamos por nossa conta.

Eu era um dos três que ainda estava em pé. Os ladrões tiraram proveito de sua formação e da vantagem que tinham sobre os cavalos, e em poucos segundos tinham dado cabo do grupo liderado por Sir Robert. O cavaleiro, entretanto, impunha certa resistência, tendo levado alguns dos atacantes para o túmulo. Brandia sua espada com destreza, mas, ainda assim, tinha dificuldade de impor um ritmo de ataque que lhe permitisse ser uma ameaça ao bando.

Munido de coragem e vontade de morrer com honra, tal qual um cavaleiro faria, apanhei do chão uma lança e arremessei com toda minha força. A arma voou e atingiu um dos ladrões no meio do peito, derrubando-o do cavalo. Mais sorte do que habilidade, devo admitir, mas a arma não sabe diferir.

Animado com meu êxito, apanhei do chão a espada de um dos nossos e parti para o ataque.

— O que pensa que está fazendo, John? Saia daqui! — comandou Sir Robert, quando me viu as suas costas com a espada em riste.

— Não poderia deixá-lo, milorde!

Posso estar enganado, mas creio ter visto um sorriso em seu rosto quando lhe disse isso.

Os ladrões formavam um círculo, mantendo eu e Sir Robert no centro. Flechas e olhares sanguinários apontados para nós. Seis dos patifes apearam dos cavalos e armados com suas espadas e machados apenas nos observavam.

— Um cavaleiro e seu escudeiro, que comovente — disse um dos atacantes com um bigode espesso no rosto.

— O menino matou o Sem Dedo — pontuou outro.

— Bem, isso significa que não podemos deixá-lo ir agora, meu jovem — disse o homem de bigode para divertimento de seus camaradas.

— Venha patife, se tiver coragem! — disparou Sir Robert, impaciente.

O bando riu com vontade do nobre e seu linguajar, sendo repetida por diversas vezes a palavra “patife”.

— Lile, mate logo eles e vamos sair daqui, antes que alguém avise aos cavaleiros de verdade que estamos aqui.

O comentário pareceu ter ofendido Sir Robert que partiu em fúria em direção ao homem de bigode. Trocaram ataques e defesas, mas milorde já estava cansado demais para afugentar com eficácia os golpes do inimigo. O que pôs um fim na luta foi uma flecha disparada por um dos ladrões montados. O projetil atingiu Sir Robert na panturrilha, causando um grito de dor e desistência.

O homem de bigode não ficou satisfeito com a interferência, lançando um olhar feroz contra seu companheiro. Sem nem mesmo um aviso, passou a lâmina de sua espada na garganta de Sir Robert que mal havia se sustentado em pé e já ia ao chão sem vida.

— O moleque é meu, não interfiram! — vociferou o homem de bigode, olhando fixamente para mim. — Vamos ver o que sabe fazer, escudeiro.

— Lile, deixe o Ruivo acabar com esse, o menino precisa de experiência.

— Tem razão, Ruivo, esse é todo seu.

Olhei a minha volta esperando identificar meu adversário. Deparei-me com um rapaz, não muito mais velho que eu com cabelos avermelhados que descia do cavalo e armava-se com um machado e uma faca.

Ele era magro, alguns centímetros mais alto e tinha um olhar temeroso que identifiquei rapidamente, pois era esse mesmo olhar que eu tinha em meu rosto. As roupas que usava eram leves e mal-acabadas, me dando uma vantagem caso conseguisse atingi-lo. Eu não era um estranho a combates, Sir Robert havia me treinado bem, minha esperança era que o tempo dedicado fosse suficiente para levar alguns dos mal feitores comigo para a tumba.

Meu único remorso é que seria morto sem ter completado meu treinamento de cavaleiro e sem o título tão sonhado. Mas terei sido morto com honra, em batalha, em defesa dos inocentes e em um ato de coragem. Isso me trazia conforto e forças para continuar na empreitada.

O inimigo arqueou-se, preparando para o ataque, mas sem executar ação alguma ainda. Seus companheiros torciam e se divertiam a nossas custas. Rodávamos um em torno do outro, estudando os movimentos e esperando uma abertura. A paciência do Ruivo acabou antes da minha e ele tentou desferir um golpe de cima para baixo com seu machado. Aparei com facilidade com a espada, tendo uma súbita esperança de que a luta seria mais fácil que eu esperava. Mas era isso que ele queria, com meu flanco exposto pela necessidade de erguer a espada, o ladrão desferiu um golpe com a faca e não fosse meu rápido reflexo eu não teria sobrevivido nem mais um segundo.

Os ladrões que assistiam aplaudiram a ação do companheiro, dando-lhe confiança para que me pressionasse. Tentou outro ataque com a faca, mas, dessa vez, consegui bloquear e conduzir seu braço para o lado oposto, fazendo-o girar. Com agilidade passei a lâmina de cima para baixo no ombro dele e o fiz arquear de dor. Tentei aproveitar o momento e desferir um golpe fatal, mas o infeliz teve a presença de espírito de se virar dando uma machada que quase me atingiu no estômago, não fosse eu ter me afastado a tempo. A faca era uma preocupação a menos. Com o ombro ferido gravemente o rapaz havia abdicado de segurar a arma e optou por ficar apenas com o machado em mãos. Em fúria, correu em minha direção como um bode cego. Antecipei o trajeto e ergui a ponta da lâmina segundos antes de ele estar ao alcance. Não houve tempo de trocar a direção, e a força com que ele empregou foi suficiente para a lâmina lhe perfurar o tronco, atravessando tecido, carne e órgãos até o lado oposto. Ele estava tão perto que pude sentir o hálito podre do moribundo.

Houve um súbito de espanto, seguido de silêncio dos ladrões que assistiam a morte do rapaz pelas minhas mãos. Munido de toda coragem que tinha, empurrei o corpo do Ruivo e apontei a espada ensanguentada para o homem de bigode, indicando o desafio.

Ele apenas riu.

— Ficou confiante, não é, escudeiro? Matar um novato é uma coisa, mas achar que isso será suficiente para que você me mate é muita presunção.

— Levarei todos vocês comigo, dou-lhe minha palavra!

Despertei uma gargalhada dos ladrões e em vez de me sentir envergonhado, estava furioso. Queria todos na ponta da minha espada, nem que tivesse que receber mil cortes para isso!

— Venham miseráveis! Façam seu pior! — desafiei-os sem um pingo de tremor na voz. — O caminho da honra não teme a morte. E eu hei de não temê-la!

— Alguém me faça o favor, e enfie uma flecha nesse moleque logo, para a gente poder ir beber.

Girei rápido esperando o projétil, mas em vez de me atingir, a flecha que voou atingiu o homem de bigode no peito. Ele caiu sem entender o que havia acontecido.

Sir Richard e seus homens vinham ao encontro dos ladrões que se desesperavam com a imagem dos cavaleiros bem armados e organizados, com objetivo implacável. Eu no centro da confusão tentei atingir alguns dos malfeitores distraídos, fazendo um cavalo empinar e derrubar sua montaria. Atingi outro sujeito na barriga, fazendo-o se dobrar e me olhar antes de cair do cavalo pela última vez. As forças de Sir Richard haviam se dividido, vindo uma parte ao encontro dos ladrões e outra contornando as árvores para impedir que fugissem do outro lado. Seríamos vitoriosos afinal.

Tinha acabado de acertar um golpe de misericórdia em um dos ladrões caídos quando senti um forte impacto na costela. A princípio não senti dor, apenas um desconforto. Foram longos, os segundos até que eu fizesse ciência da haste de madeira que brotava do meu tórax. Ao ver a flecha, a dor chegou como um raio. Faltou-me ar e forças para me manter sobre as duas pernas. A queda foi inevitável. A espada me fugiu aos dedos e o desespero tomou conta do meu corpo.

Aflito, estendi a mão na esperança de ser salvo. Para minha surpresa, uma mão agarrou a minha. Num primeiro momento, achei ser um inimigo, vindo finalizar o serviço, mas deparei-me com um rosto familiar. Barba curta e cabelos longos esbranquiçados, armadura reluzente e olhos verdes penetrantes.

Sir Richard segurava minha mão, como um pai segura a de um filho, o cavaleiro me olhava com ternura.

— Qual seu nome, rapaz?

— John, milorde, John Thacker — respondi com dificuldade.

— Você lutou bem, John Thacker. Não fosse sua bravura, não teríamos tido tempo de interceptá-los antes que fugissem novamente. Eu e o povo dessa vila devemos nossa vida a você.

— Não somente a mim, milorde — disse, tentando puxar o pouco de ar que ainda me era possível. — Vinte homens valentes deram suas vidas para que pudéssemos estar aqui agora.

— Lembrarei de seus nomes, dou-lhe minha palavra.

Tossi involuntariamente e minhas pernas subitamente não se faziam mais presentes. Meu corpo estava leve e eu pouco sentia.

— Sinto muito não ter tido tempo de servi-lo como cavaleiro, milorde — lágrimas escorriam de meus olhos sem que percebesse. — Teria sido uma honra.

— Serviu-me melhor que meu mais valoroso cavaleiro. Diante de seu ato de bravura hei de nomeá-lo cavaleiro neste momento.

Sir Richard levantou-se, tocou a ponta de sua espada em meus ombros e pediu a atenção de todos.

— Você, John Thacker, jura, com Deus como testemunha, que sua espada defenderá os inocentes, representará os justos e golpeará os maus? Jura dar sua vida pela justiça e paz, sob meu estandarte até que Deus resolva privar-lhe de tal dádiva?

— Juro, milorde!

— Que de hoje em diante, este homem seja Sir John Thacker! Corajoso cavaleiro, salvador da Vila de Longstraid, defensor além da ponte e protetor dos indefesos. Eis aqui vossa espada, cavaleiro! Fazei dela a extensão da justiça.

Sir Richard colocou a espada em minhas mãos e eu a agarrei como se minha vida dependesse disso. Estava ofegante. O meu senhor novamente segurava minhas mãos e me olhava com compaixão.

— Mas, senhor, não pode me nomear cavaleiro, achei que somente o rei ou um bispo pudessem nomear um homem cavaleiro.

— Hoje eu posso, meu rapaz, hoje eu posso.

— Estou cansado, milorde.

— Descanse, Sir John, você merece.

Matheus Tonon
Enviado por Matheus Tonon em 03/07/2021
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