Seja bem-vinda

Sarah despertou em Kurys, e atraiu a atenção de Nikala e sua esposa, Milda, que aguardavam pacientemente que voltasse de sua incursão ao Tamug.

- Tive sucesso... ao menos parcialmente - declarou ela, após sentar-se sobre a pele de uruz que lhe servira de leito. E retirando do cinto o saquinho de sementes de arfe, estendeu-o à Nikala.

- Estão todas aqui... menos cinco, que usei para desfazer uma injustiça no Tamug.

- Como eu disse, confiava que faria o melhor com elas - replicou Nikala, apanhando a bolsinha e amarrando-a novamente numa trave da tenda.

- Agora, eu preciso ir - avisou Sarah, deitando-se novamente. - Mas, como pretendo passar um tempo em Vorkovo, prometo que volto com mais calma... para a festa da colheita.

- Estaremos aguardando - disse Milda, atirando um punhado de cogumelos secos no braseiro.

Uma nuvem de fumaça ergueu-se, e Sarah respirou profundamente; seus olhos se fecharam, e quando os abriu novamente...

* * *

O crepúsculo havia caído sobre Vorkovo. Sarah saiu da tenda de Geberaty e encontrou Danylo Darchiev esperando por ela no jardim, ao lado de alguns pratos de madeira com restos de comida e jarras de cerâmica vazias.

- Quanto tempo fiquei lá dentro? - Indagou, espreguiçando-se.

- Umas seis horas - calculou Danylo, controlando sua curiosidade. - Deve estar morta de fome...

- Pelo que vejo, deixou um pouco de cerveja e de osuri para mim - avaliou, sentando-se num banco de pedra e servindo-se. - Quando chegarmos ao Uruz Pintado, janto melhor.

- Então... o que conseguiu averiguar? - Indagou finalmente Danylo.

- Que os Darchiev se tornarão ainda mais importantes para esta região, do que jamais foram - redarguiu ela, de boca cheia. - Marque outra audiência com o khatun para amanhã de manhã, precisamos cuidar da libertação de Ruslan.

Danylo encarregou um dos seus homens de procurar o mordomo do khatun, Chigu, e fazer a solicitação. Depois da confirmação, acompanhados da escolta e com a noite sobre suas cabeças, voltaram à taverna onde Sarah passaria a noite.

* * *

A manhã do último dia do prazo dado para a execução, encontrou Danylo e Sarah no salão de recepções do khatun.

- Imagino que traga novidades, guardiã - indagou Enebish, sentado em seu trono e ladeado por dois guardas armados com cimitarras.

- De fato, vossa graça - redarguiu Sarah. - Descobri a razão da morte do xamã Geberaty: ele foi punido pelos espíritos, por ter roubado sementes de arfe.

Enebish olhou para o mordomo, que apenas fez um aceno de cabeça.

- E como tem certeza disso? - Questionou Enebish, encarando Sarah com a mão no queixo.

- Eu estive com o espírito de Geberaty, vossa graça; - afirmou a guardiã - por seu crime, hoje ele está no Temug, não em Kurys.

Enebish ergueu os sobrolhos.

- Poderemos ser punidos pelo ato do xamã? - Questionou o khatun. - Os espíritos se vingarão dos calmucks por terem aceito produto de roubo?

Sarah juntou as mãos.

- Felizmente, vossa graça, os espíritos de Kurys consentiram em receber como reparação a devolução das sementes restantes, que o xamã mantinha escondidas. E o próprio Geberaty deverá voltar à terra, em breve, pois aceitou cumprir sua pena através da reencarnação.

- Geberaty voltará para nós? - Animou-se Enebish.

- Mas não mais para roubar sementes, vossa graça - advertiu Sarah. - E para que isso fique bem claro, os espíritos marcarão a testa do escolhido com um sinal de nascença... um ponto vermelho, como uma semente de arfe. Através disto, vocês o reconhecerão.

- Que qualquer criança que nasça com esta marca seja trazida à minha presença - ordenou Enebish, voltando-se para o mordomo. - Com isso, retiro a acusação de assassinato lançada pelos osebi contra Ruslan Darchiev. Que ele seja imediatamente posto em liberdade, e declarado xamã oficial da corte de Vorkovo.

E, com o dedo erguido:

- Pelo menos, até que o Geberaty renascido possa reassumir este cargo.

- Ouço e obedeço, vossa graça - replicou o mordomo, curvando-se.

* * *

Quando Sarah entrou no salão enfumaçado da taverna, bolsa de couro a tiracolo e gládio à cinta, todos os olhares convergiram para ela. Afinal, todos agora sabiam que não somente ela havia resgatado o filho de Danylo das masmorras do khatun, como também que Ruslan Darchiev ocupara o lugar do falecido xamã, que fora acusado de assassinar; e que, na verdade, Zaur Geberaty fora punido pelos espíritos, por haver roubado sementes que deveriam permanecer no plano astral.

Quem não a conhecia, tornara-se sabedor de que ela transitava pelos Três Mundos, e que nada escapava ao seu trabalho de investigação: Sarah falava com os espíritos e questionava os próprios deuses. Afinal, era uma guardiã.

Em silêncio, os presentes desviaram o olhar e voltaram a concentrar-se nos próprios assuntos. Já Sarah, aproximou-se do balcão e apoiando as mãos sobre o mesmo, falou para a estalajadeira:

- Gostei daqui; acho que vou ficar mais um tempo.

- Seja bem-vinda - respondeu Inessa.

- [12-05-2021]