Próxima parada: submundo

Sarah nunca tentara fazer aquilo durante uma viagem astral, mas como o tempo fosse escasso, arriscou-se a experimentar. Foi até a tenda onde Nikala vivia com sua família em Kurys, e lhe pediu que velasse o seu corpo metafísico enquanto descia até o submundo, o Tamug.

- Certamente que posso fazer isso - acedeu Nikala. - Mas pode ser perigoso; se algo der errado e ficar aprisionada no Tamug, não será capaz de despertar nem aqui, nem no seu corpo físico.

- Vou correr o risco, - redarguiu Sarah - mas para aumentar minhas chances de sucesso, preciso de algo que sirva como moeda de troca.

Naturalmente, ela não estava se referindo a dinheiro, e Nikala sabia disso. Apanhou uma bolsinha de couro pendurada em uma trave da tenda, e sem dizer palavra, entregou-a para Sarah, que abriu o cordão que a fechava para examinar o conteúdo: sementes que lembravam grão-de-bico, não fosse pela cor, de um vermelho brilhante.

- Você sabe o problema que as sementes de arfe causaram ao xamã - observou Nikala com ar grave. - Em princípio, elas não deveriam ter saído daqui para o plano material.

- Não deixa de ser uma ironia que eu precise delas para tentar descobrir porque ele foi morto - arguiu Sarah, prendendo o saquinho no cinto. - Prometo que as usarei de modo sábio.

- Sei que posso confiar em você - acedeu Nikala.

A esposa de Nikala, Milda, havia estendido a um canto da tenda, uma pele de uruz com um cobertor de lã enrolado como travesseiro. Antes de sair com o marido, jogou um punhado de cogumelos secos sobre o braseiro aceso no centro do aposento. Sarah então, deitou-se sobre a pele, mão cruzadas no peito. Fechou os olhos e inalou profundamente.

Por um breve instante, pensou estar de volta à casa de Geberaty, em Vorkovo. Sentiu o corpo pesado e o cheiro das especiarias encheu suas narinas; depois, foi como se um peso lhe houvesse sido amarrado aos pés, e a estivesse puxando para um lugar escuro e frio...

* * *

Escuro e frio foram suas primeiras sensações ao abrir os olhos em Tamug. O céu acima dela estava nublado, mergulhado numa claridade crepuscular. A grama sob o corpo estava ressecada, assim como seco era o ar que lhe chegou aos pulmões. Sentou-se no chão e olhou ao redor.

Havia montanhas no horizonte, embora fossem escuras e parecessem decididamente estéreis. E também florestas, que aparentavam ser constituídas de árvores que haviam perdido todas as folhas no inverno, e que agora pareciam servir apenas como fonte de lenha. O rio que cortava o prado, tinha as águas cobertas de neblina e corria quase sem ruído. E, mais adiante, um acampamento osebi próximo ao qual viam-se rebanhos de cabras. Ergueu-se, e caminhou em direção ao mesmo, vendo que algumas pessoas começavam a surgir timidamente, vindo dos campos.

- Você brilha - ouviu de uma mulher magra, com duas crianças raquíticas agarradas às pernas.

Outros residentes do Tamug foram se aglomerando ao longo do caminho, pálidos e tristes. Eles a encaravam em silêncio, com admiração alguns e receio outros; ela apenas sorria em resposta, sem nada falar. Finalmente, chegou ao acampamento e havia um imponente senhor da guerra em frente ao mesmo, vestido de peles negras e com um capacete cônico na cabeça, ladeado por dois de seus tenentes.

- Você é uma vivente - disse o homem, examinando-a de cima a baixo. - Mas tem um brilho que só pode ter vindo de Kurys.

- Você está certo em ambas as observações - assentiu Sarah. - Venho de Kurys por não ter encontrado lá o espírito que procuro: o xamã Geberaty.

- Geberaty foi expulso de Kurys - replicou o chefe. - Talvez possa ascender um dia, depois de cumprir sua pena; ou, quem sabe, renascer, se não for julgado evoluído o suficiente.

- Preciso falar com ele - solicitou Sarah. - A vida de um homem depende disso.

- Isso não é da minha conta; se ele for um bom homem, irá para Kurys - retrucou o chefe, braços cruzados.

- Creio que ainda é cedo para isso - refutou Sarah. - Veja, não há algo que eu possa fazer por vocês, em troca dessa conversa?

O chefe olhou para a floresta desfolhada, testa franzida. E Sarah compreendeu que, sim, havia algo que ela poderia fazer por eles.

[Continua]

- [09-05-2021]