Um atalho para o Paraíso
Fora da cidadela após interrogar Ruslan Darchiev, Sarah pediu a Danylo que a levasse até a tenda de Geberaty, próxima ao porto de Vorkovo.
- Preciso me comunicar com o falecido, e o melhor lugar para fazer isso é de onde ele partiu deste plano de existência - explicou a guardiã, enquanto cavalgavam pelas ruas cheias de gente em direção ao distrito comercial onde o xamã trabalhara durante longos anos.
- E o que eu faço enquanto você estiver em Kurys? - Inquiriu Danylo, preocupado com o prazo relativamente curto que lhes havia sido dado pelo khatun para solucionar o crime.
- Você vai ficar de guarda e proteger meu corpo material enquanto eu estiver no mundo dos espíritos - determinou. Sarah podia cuidar de si mesma sozinha, mesmo que estivesse em transe, mas manter o osebi de guarda significava ter uma resposta mais rápida caso algo saísse errado.
Um soldado calmuck guardava o portão da tenda, localizada numa rua estreita com casas caiadas de branco em ambos os lados da via. Danylo exibiu o salvo-conduto do khatun e ele lhes franqueou a passagem. Atravessaram um pequeno jardim, e entraram na sala principal da casa, a qual não parecia ter sido tocada desde a morte de Geberaty. Havia duas estantes contra as paredes laterais, com jarras e potes cheios de ervas e compostos ocupando as prateleiras. Sarah acendeu um incensório de bronze, e após destapar alguns dos potes, salpicou pitadas dos compostos sobre as brasas, levantando uma nuvem de fumo azulado.
- Agora, você deve ficar vigiando do lado de fora, e aguardar que eu volte - especificou.
- Certo, mas... e se você demorar muito? - Indagou Danylo, ansioso.
Sarah deu uma rápida olhada para o céu azul, onde o sol estava quase no zênite.
- Se a fome apertar, você pode pedir ao soldado para ir comprar uma bandeja de osuri e uma jarra de cerveja na taverna da rua abaixo - deliberou. - Se Geberaty gostava disso, talvez seja mais fácil que se manifeste para mim; não vá comer tudo...
- Farei isso - prometeu Danylo, saindo.
Ao ver-se só, Sarah fechou a porta por dentro e depois estendeu no chão um tapete gasto de orações que estava na prateleira inferior de uma das estantes. Deitou-se sobre ele em decúbito dorsal, mãos cruzadas no peito, uma almofada sob a cabeça. Fechou os olhos, aspirou profundamente a fumaça picante que vinha do incensório e instantes depois, cruzou o limiar entre o mundo dos vivos e o dos espíritos.
* * *
Sarah abriu os olhos. Estava deitada num prado florido e perfumado, sobre o qual voavam borboletas amarelas. Acima dela, o céu era de um azul sobrenatural, pontilhado aqui e ali por nuvens brancas. Ela sentou-se, e olhou ao redor: tudo parecia mais nítido, mais vivo, e mais brilhante do que no mundo material; havia despertado em Kurys, o reino celestial.
Além do prado, a sul e oeste, erguia-se uma monumental cadeia de montanhas, coberta de neve. A norte e leste, uma imponente floresta de árvores milenares. Um rio cruzava o meio do prado, e junto dele havia um acampamento de tendas de couro dos antigos osebi, campos cultivados, e manadas de cavalos pastando. Foi para lá que ela se dirigiu, ao ver que havia um grupo de pessoas, indistinguível daquela distância, que pareciam estar aguardando por ela.
- Sarah! - Gritou um deles, de elevada estatura e tranças ruivas.
Ela sentiu um sobressalto no coração e acenou entusiasticamente de volta; o homem destacou-se, avançando em sua direção com os braços abertos. Mais alguns passos, e o reconheceu, mesmo após a eternidade que fazia que não o via.
- Nikala! - Exclamou, também abrindo os braços e correndo em direção dele.
Encontraram-se no meio do caminho, num abraço apertado.
- Finalmente, você veio até mim! - Exclamou o gigante, erguendo-a no ar pela cintura, como se ela fosse uma criança.
Sarah riu.
- Ainda não, Nikala... estou aqui só de passagem; e por favor, me ponha no chão!
Nikala obedeceu, mas a segurou pelos ombros, encarando-a com atenção.
- Por Xucau, você não mudou nada! Mas que história é essa de que só está aqui de passagem? Vai ficar até a festa da colheira, espero! Temos muita coisa pra conversar, mocinha!
- Sim, sim, temos - aquiesceu Sarah. - Mas antes, preciso saber de um homem que talvez tenha passado por aqui: Zaur Geberaty.
Nikala lançou-lhe um olhar espantado.
- O xamã? Vai me dizer que ele está morto?
- Sim - Sarah balançou afirmativamente a cabeça.
Nikala aproximou o rosto do dela e baixou a voz.
- Escute, Sarah... melhor não pronunciar esse nome em voz alta. O xamã arranjou umas tantas inimizades aqui em Kurys...
- Isso quer dizer que ele não está aqui? - Questionou Sarah intrigada.
- Não temos criminosos em nosso meio - afirmou Nikala com orgulho. - Ao menos, não antes de pagarem suas penas.
- [Continua]
- [08-05-2021]