A ASSOMBROSA CAÇADA DO RIO APUAÚ
A ASSOMBROSA CAÇADA DO RIO APUAÚ
Pescaria na Amazônia
Autor: Moyses Laredo
Às margens esquerda, do baixo rio Negro, desemboca o rio Apuaú, em meio ao arquipélago das Anavilhanas, um conjunto de 400 ilhas e 60 lagos pertencentes ao Parque Nacional Anavilhanas, que fica de descida, a pouca distância de Manaus. A região ainda é de baixíssima densidade populacional, mas, de uma riqueza sem limites, com abundante flora e fauna, sobretudo pela riqueza de sua morfologia. É também onde encontram-se as mais belas e selvagens cachoeiras da região. É a porta de entrada para quem procura experiências mais profundas na Amazônia.
Um belo dia, decorria o ano de 84, um amigo empresário, dono de um bonito barco, tipo iate, de registro “Xanaíza”, em homenagem a uma ex-namorada. Amante de caçadas e pescarias, homem destemido, porém de raso conhecimento dos mistérios da mata, resolveu empreender uma aventura pelos confins do rio Apuaú, num lugar, ainda desconhecido da maioria dos pescadores comuns, por se localizar fora do roteiro, nas profundezas do além das cachoeiras. Convidou para compor sua trope uns cinco amigos, sendo um deles o próprio caseiro conhecido como “bunda de cobra” porquê, não sei! Outro da turma, era um caçador experiente também de apelido horrível, Chico “peneira de peido”, abreviado depois com o uso, só para “Chico peneira”, os outros, eram caboclos matreiros da região, pau-pra-toda-obra, já conhecido por ele. Tinha o “gogó de sola”, apelido recebido, porque disse ter lutado com um macaco gogó-de-sola, que segundo a crença, é um macaco, como qualquer outro, vive nas matas distantes das moradias. Dizem que o nome lhe veio, por ele possuir o pescoço castanho-vermelho, pelado, semelhante a uma sola. É muito valente e ofensivo, apesar de ser pequeno, se iguala em tamanho, a um macaco de cheiro. Ataca qualquer animal, a onça, o burro, e até o homem. É fama que onde ele firma os dentes jamais solta, só se lhes cortarem a cabeça fora. E mais, um baixinho entroncado, vulgo “queixo de graviola”, ou só “graviola”, cujo apelido, depois de se conhecer a criatura, faz sentido o apelido, e o último deles, era um pretão enorme, apelidado de “azeitona”, porque dizia sempre, quando gozado pelos amigos, de que não era tira-gosto de ninguém. Todos já calejados com as adversidades e os obstáculos dos rios amazônicos, eram homens brutos, foram escolhidos a dedos por suas habilidades, o amigo empresário, não queria convidar seus parceiros de cervejadas, por serem tipos muito finos, que comiam peixe com garfo e faca e guardanapo.
O local escolhido é de dificílimo acesso até os dias atuais. Tinham conhecimento das temíveis corredeiras, que é a seção de um rio, ou curso de água, onde o leito tem o gradiente (variação de altitude) relativamente alto, aumentando, portanto, a velocidade da água e a turbulência, que antecedem as cachoeiras. Sabiam que enfrentariam tudo isso no caminho, ninguém avaliou muito bem as consequências, porque, em todas as pescarias, as dificuldades sempre existiram, e essa não seria diferente, resolveram assim mesmo, encarar mais uma, nada seria diferente daquilo já acostumados, tudo valia pelo passeio.
O rio Apuaú, baixo rio Negro, após as ilhas de Anavilhana, de quem sobe o rio Negro, é muito farto em caças, principalmente a paca, animal de muita abundância nessa região, que passeia descuidadamente pelas beiradas do rio, bem como, o peixe tucunaré que na época entre julho e dezembro chega de cardume a estufar a água. O rio Apuaú, sofre influência direta do volume de chuva que o invade com grandes enxurradas e faz com que suas águas inundam áreas imensas, formando lagos de igapó.
Depois de todo aparato conferido, canoa, motor, lona para acamparem na mata central, redes, mosquiteiro, cordas para içar os botes nas cachoeiras, que se interpõem ao ponto escolhido de caça, caixa de gelo, sal para a salmoura (conservar mais o gelo), e finalmente as "maricotas" (nome carinhoso dado para suas armas, 12” e 20”).
Entraram rio acima no Xanaíza, até chegar bem dentro onde o calado permitia. Nesse ponto, pararam o barco, ali, realmente se dava o início da tão esperada aventura. Fundearam o imponente iate, e começaram os preparativos, desceram os botes com seus motores cada um de 15 HP, mantimentos, bagagem, munição, caixa de ferramentas, afinal, toda a tralha. Distribuíram-se em duas embarcações, para dar suporte uma à outra, para o caso de algum motor engripar (dar problema, deixar de funcionar), o outro bote o socorreria, em lugares muitos ermos na floresta amazônica, toda preocupação é válida.
Subiram o rio de bote, se livrando das pedras do caminho, até chegar ao ponto da caça, tiveram que ultrapassar oito corredeiras, de correnteza muito forte. A vista daquelas paragens são de tirar o fôlego para quem aprecia a natureza, no caminho avistaram muitas cobras d’água deslizando ladeira abaixo ao sabor da correnteza, com a certeza de estarem nos seus habitats. As corredeiras são prenúncios de cachoeiras, nesse caminho se depararam em número de oito delas, até chegar à cachoeira do Pilão, bem maior, onde para ultrapassar tiveram que descarregar os objetos dos botes, abrir uma picada por dentro da mata de quase duas horas a bom cortar paus, depois, içar os botes por entre as pedras lisas e perigosas das cachoeiras e os carregar no lombo. Após ultrapassar a cachoeira mais alta, avistaram um enorme poço, com suas águas em redemoinho constante, com bastante formação de espumas em círculos, tipo daquelas que se vê, quando se atravessa o rio Negro, ninguém soube o que era aquilo, alguns arriscaram dizer, que ali dentro, morava uma boiúna (cobra grande). De cobra grande, não sabiam, mas de matrinchã “maceta”, era o pau que rolava, tinha até demais, dava pra vê-las nadando aos montes.
Encontraram uma área plana, e resolveram por lá acampar, cuidaram de armar seus acampamentos, e como de praxe, montaram também uma barraca sanitária, para evitar o corre-corre, de noite na mata, se apertasse dor de barriga, também foi escavado uma pequena fossa negra, um pouco rasa, arranjaram uma tampa com uma esteira de paus roliços, tendo uma abertura no meio, pois esperavam passar pelo menos uma semana ali.
Em aproximadamente uma hora tudo estava armado, inclusive com as redes atadas e tudo o mais, um luxo, para os padrões locais. Ainda de dia, voltaram no tal poço encantado e pegaram umas gorduchinhas matrinchãs para o jantar, jogaram-nas no braseiro, só tiraram o bucho, nem ticaram e nem tiraram as escamas. O mesmo fogo que fizeram, e usaram para espantar os carapanãs e mutucas e outros bichos da mata, serviu para assar as matrinchãs. Trouxeram tudo que necessitavam para temperá-las, estavam com todos os apetrechos, tanto para carnes quanto para peixes. O “Chico peneira” que era o cozinheiro da expedição, tinha sido taifeiro de bordo em embarcações do rio Amazonas, por muitos anos, e se encarregou de preparar e assar as bichinhas.
Ao escurecer, saíram para caçar pacas pelas beiradas onde as tinham avistado passar, embora sejam animais de hábito noturno, mas, pela sua abundância, descuidavam-se da própria segurança. O importante é atentar para a fase da lua, pois na lua cheia, a mata fica muito iluminada, os animais perdem suas seguranças e se entocam, tempo que dura aproximadamente uma semana, nenhum animal sai da toca, até que mude de fase da lua. Nesse tipo de caçada, faxiar pelo rio, consiste em percorrer as beiradas, numa canoa, munido de um silibim (lanterna tipo tocha de 12v, de foco de mão, de longo alcance da luz) e as “maricotas” é claro! Vai-se deslizando pelas margens, remando lentamente, por vezes ao sabor da correnteza, em total silêncio, só mesmo o da mata, que por sinal, às vezes é assustador, até o iuma, conhecido como unicórnio, que é um pássaro tão acanhado e inofensivo, à noite quando percebe perigo solta uns cânticos estranhos, também se ouve rosnados, pra tudo quanto é lado.
Da canoa mesmo se depararam com duas tochas brilhantes em terra, são os olhos da paca, que refletem a luz, possuem no fundo dos olhos o chamado “tapetum lucidum”, presentes também nos olhos dos animais de hábito noturno, feito os olhos dos jacarés, que ao serem focados, parecem duas tochas de fogo. Após o encontro fortuito com a inocente paquinha, acontece então, o inesperado disparo certeiro, é “pá-bufe” como diz o caboclo.
Ao chegarem com a paca no acampamento já “limpa”, pois na canoa, trataram logo de tirar o “fato” (bucho) para que não forme gases no intestino e a carne entre mais rápido em decomposição, depois de tirado o couro, separados os pedaços e escolhidos os da janta, o resto foi devidamente acomodado em sacos plásticos e armazenados na geleira. Nessa noite, a janta foi animada com a carne de paca, tinha até paca no tucupi, imagine. Foram dormir lá pelas onze com a temperatura baixando, a noite na mata é fria, todos se acomodaram em suas redes, com o mosquiteiro puxado, a uma certa distância da outra, fogueira ardendo, no silêncio da noite, ouvindo o zunido dos poucos carapanãs (os rios de águas escuras são ácidos, não proliferam carapanãs, os poucos que existem, são das poças d’água das folhas ou do interior dos bulbos florais. Decepcionados por não poderem tomar um golinho daqueles sangues apetitosos, quando subitamente, o empresário, sentiu o primeiro solavanco no punho de sua rede, imaginou que alguém tivesse passado para ir ao banheiro e sem muito cuidado, acabou esbarrando na sua rede, até chegou a chamar a atenção do descuidado, - “Ei meu irmão, toma cuidado, tu me acordou!”, o sono tomou conta dele e voltou a dormir pesado, dez minutos, ou mais um pouco, novo solavanco no punho da rede, desta vez mais forte e demorado, - “PQP, que filha-da-puta escroto, bebe e fica incomodando os outros”. Até então, ainda achando tratar-se de um dos peões que trouxera. Com a escuridão da noite não podia enxergar quem era o “sacrista”, resolveu puxar o mosqueteiro para sair da rede, pegou a pequena lanterna que trazia amarrada na franja da rede, porém, ao se sentar, após ligar a luz, o que viu, fez gelar seu sangue. Estava diante de si, segurando o punho da rede com violência, com cara de poucos amigos, uma criatura que lhe custou reconhecer, algo nunca visto, era uma “espécie” de índio, porém, muito alto e extremamente forte, possuía o corpo escuro coberto de pelos, também escuros, capacho de penas na cabeça, uns dentes caninos enormes, que grunhia um som aterrorizante, na sua língua nativa, enquanto balançava a rede muito ferozmente, finalmente balbuciou com uma voz esturrada, num português sofrível - “SAI – MINHA – REDE – E – MINHA - MATA”, repetindo por várias vezes, enquanto continuava a balançar vigorosamente o punho da rede. O pobre homem, assustadíssimo, ficou estatelado com o choque da visão daquilo. Depois, em roda de amigos, contou que à primeira vista, imaginou ser o Saci Pererê, mas, nunca tinha ouvido falar que haviam sacis nas lendas amazônicas, contudo, aquela criatura ali, diante dele, era real, nada a duvidar. Quando se recuperou do enorme susto, tomou a decisão certa, e aos pulos e correrias, a de sair dali o quanto mais rápido possível fosse, seus companheiros também que assistiam a tudo, tinham despertado com os altos esturros daquela criatura, gritando com o patrão ameaçadoramente, também ficaram todos muito assustados, pularam de suas redes e uns ficaram a rezar, - “Valei-me isso, valei-me aquilo...” de tão baixo e rápido como rezavam que não se entendia nenhuma palavra, talvez, nem mesmo o santo que invocavam entendia patavina. Um deles, ainda tirou um maço de cigarros e ofereceu à criatura que rosnou em sua direção, o que o fez sair em disparada junto com os outros, em direção ao bote ancorado, deixando tudo pra trás. Em questão de minutos estavam navegando na escuridão de volta ao Xanaíza, passando as cachoeiras todas na volta, com a dificuldade da escuridão da noite e a luz dos silibins, facilitado apenas pelo bote sem peso, era passar o bote e pular em cima e tocar viagem. Chegaram no iate já ao amanhecer do dia, tremiam mais do que vara verde, ninguém queria falar nada, temiam que a criatura os tivesse seguidos, pois ainda estavam em seu domínio “MINHA MATA” lembravam-se bem das suas palavras.
Ao conversarem com estudiosos das lendas Amazônicas, acharam que tiveram um contato com o “Anhá-Angá, ou “anhang” do tupi-guarani. “Ang” significando Alma e “Anhá”, correr, ou seja, uma alma que corre. Pode ser traduzido por alma errante dos mortos, sombra, espírito ou, como fala o caboclo, visagem, que é o mesmo que assombração. Podem ter tido um encontro com o “Mira-anhangá” – visagem de gente. Esses seres, são habitantes das matas, quem sabe, vendo-os matar os animais, se apresentaram para afugentar o “inimigo”.