TEMPORADA DE ARRIBAÇÃO
TEMPORADA DE ARRIBAÇÃO
Sem corpo mole. Tinha de fazê-lo agora.
Não poderia mais voltar atrás; apenas só mais alguns instantes, e só.
Naquela tocaia ─ uma loca natural de pedras ─ o calor ficava cada vez mais difícil de suportar. Tomou alguns goles d’água serenada da cabaça, e apertou o barbicacho do chapéu de couro contra o queixo, repuxando a boca, num rilhar de dentes. Volta e meia entrefechava os olhos para poder divisar melhor a nesga de estrada que serpenteava entre os lajeiros e desaparecia na direção do horizonte. Qualquer sinal de poeira poderia ser o que ele esperava ─ a quem ele aguardava.
Uma ave de rapina pousa na borda do ninho feito na galhada ressecada bem ao topo de um majestoso mulungu. Em defesa da prole, dali ela observa tudo em derredor, qualquer intruso ameaçador. Pisoteia em volta da beirada, e emite um canto que lhe dá o nome:
”Acauã! Acauããã!...”
O canto ressoa em torno, e Rufa de sua toca remoça vivências de um tempo, há muito passado, uma espécie de meizinha, um cataplasma para aliviar aquele estado angustiante d’alma.
"O que fora um céu estrelado, noite passada, agora é manhã assentada num céu que se oculta das nuvens escuras em formação. No copiar da casa de pedras, Rufino, calção à altura dos joelhos, mão em pala à testa, busca o horizonte onde as serras azuis se acotovelam para receber a invernada que se anunciara em coriscos e trovoadas. Quando acostuma a vista, ele vislumbra um magote de aves de arribação. Um vaivém intermitente de avoetes a revoar pelos quatro cantos, em chegada ao sertão, vindos de algures em busca de alimento, água e um cantinho para procriar, numa galhada ou mesmo num pedaço de chão entre os arbustos, que seja."
"Rufino repuxa por vezes a baladeira, num ensaio para a temporada de arribação que se avizinha. Tem uma pontaria certeira, não erra uma ─ pedra atirada, arribação de queda. Pela estrada que ladeia sua casa, seus pareceiros de caça já se aproximam, cada um portando uma baladeira, e uma sacolinha de couro à bandoleira, com seixos miúdos. João da Bodega, Raimundo e o menor de todos, Simão, cangueiro como ele só. Rufino acena-lhes, trepando na porteira."
Não faz pouco tempo, se lhe perguntam ─ Qual a sua graça? ─ ele ergue o queixo e responde de pronto: “Rufa!”
De há muito que a baladeira deu lugar a coisa maior, não mais para abater arribação nas invernadas e comer assada à borda do rio, mas pra derrubar cabra de peia em qualquer estação. “Minha peleja é apartar briga de gente grande, pela morte matada de um dos sujeito. ‘Stou cum quem me pagar mais. Num é tudo farinha do mesmo saco... tudinho!”
O sol danado-danado arde a prumo no céu, e faz Rufa pingar pelo couro. No alforje ao lado, ele abre uma sacola e joga na boca dois punhados de carne-seca com farinha. Já deu de cara com esse tipo de situação, e não foi pouco. Acostumou-se. Sabe que precisa ter paciência, até a chegada da hora certa, o momento oportuno quando quem ele espera acabará despontando no fim daquele estradão, que reverbera ao mormaço emanado das rochas. Já recebeu a metade, dos vinte e cinco mil contos.
Depois do trabalho feito, a outra metade. Foi o acordo. Dinheiro grande. Um filho de cinco anos, uma filha de três e Mariinha sua mulher em casa, barriga avolumando o vestido longo, prenhe do derradeiro, carecem do de-comer. Acabado de mastigar a paçoca, sentir o sal e a carne esfiapada lhe preencher as entranhas, pega a cabaça, ali, ao alcance da mão, e tira mais um trago, dois... não mais. O odor ácido de urina lhe chega forte, às ventas. Relanceia para uma touceira de macambira, aquém da estrada onde “Formosa” está escondida apeada pelas rédeas, à sombra de um pé de umbu.
Rufa esquiva-se de uma modorra, mordendo o beiço inferior. Meneia a cabeça, expectante. Principia uma poeira por entre os lajeiros onde a estrada se esconde, a se evolar vermelha tocada pelos raios do sol que, já de há muito, encontra-se empinado no céu. O canto da acauã retine, anunciador de estranhos. Uma cusparada para o lado, ele manobra a carabina Winchester 44, chegando-lhe o cano à rocha de apoio, joelho na pedra, à mira do que vai despontar onde a estrada se perde.
Ele repõe o indicador no gatilho, prestes a premir na exatidão do instante.
Um alvo que não tarda em chegar!...
" Havia bastante arribação arrodeando pelo céu. No ar em pleno voo, ou pousadas nas galhadas, a baladeira acaba por derrubá-las ─ um tiro, uma queda ─, logo os alforjes ficaram estufados de aves ensanguentadas, abatidas. Muitas serão levadas para casa. Algumas são trespassadas por espetos improvisados e assam no fogo de uma trempe à beira do rio, enquanto os meninos tomam banho, esparramando água um no outro. Raimundo, afoito que é, salta do pontilhão dando uma cambalhota. "
"Em volta da trempe, mordiscando pedaços de arribação com farofa, eles se regalam a lamber os próprios dedos. Rufino, a cada pedaço que arranca no dente, leva uma pimenta malagueta junto, ante o olhar incrédulo dos pareceiros numa de suas melhores bravatas. “Como o diabo é que...” Ele fica de pé, passa e repassa as costas do punho fechado na boca, e declina em versos, algo que costumava ouvir dos cantadores na feira, num aboio lamentoso:"
“Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem;
Só me falta ser mulher!...
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré.”
"Aplausos e assobios. Raimundo fustiga o braseiro da trempe com um graveto. Rufino faz uma vênia inclinando o corpo para frente, deixando balançar no pescoço o crucifixo de prata, abençoado por Frei Damião. Aboiar em versos, mastigar pimenta malagueta e ter boa pontaria na baladeira, as habilidades que fazem dele um “sujeito de respeito” ─ como diz o outro ─, mesmo que seja no dia a dia um moleque bisonho de poucas palavras."
Um alvo que vem a galope!...
_Huuum... cavalo branco qui alumia no sol. Chapéu de massa preto enfiado na cabeça” ─ constata, resmungando consigo. “ Diz qui é sujeito mau. Qui seje!...
Rufa inclina a cabeça e estreita os olhos.
_É o cabra!
Uma gota de suor lhe salta da testa, queda-se pelo lado do nariz e alcança o beiço, onde a ponta da língua lhe sente o gosto salobro. Aperta a coronha contra o ombro, e engata a Winchester. Prende a respiração e manobra, serenamente, a extremidade do cano à figura do cavaleiro dentro da poeira vermelha. Melhor não errar. E não vai não. A mira está feita: quer o ponto abaixo do chapéu entre os olhos. O momento cada vez mais perto. O cavalo branco alcança o ponto onde dois paredões de pedras começam a transformar a curva da estrada numa espécie de corredor. O ruído dos cascos, a rebater contra o solo pedregoso, começa a chegar à tocaia. Ele leva aos beiços o crucifixo de prata, num beijo escumoso.
“Valha-me Nossa Senhora Santana!”.
A acauã anuncia o intruso.
"Simão erra o alvo na galhada. Rufino estica a baladeira e esquadrinha o bando em fuga, dentro da forquilha sustada na mão, na direção do céu. Prende a respiração e solta o seixo."
Respiração presa, o anular oscilante preme o gatilho.
Pego de supetão, o homem retesa as rédeas de vez, bamboleando na sela por momento, sob o olhar fixo de Rufa, e despenca para trás, chapéu saltando-lhe da cabeça, caindo com todo o corpo ─ um tiro, uma queda ─, foi no alvo. O cavalo continua no galope assustado, afastando-se do corpo tombado de borco, o par de esporas de prata, reluzente, apontando pro céu, braços abraçando o chão, cara plantada.
Do buraco feito no osso da fronte, qual um olho d’água, o sangue a minar.
De arremate, as duas derradeiras lapadas da meiota de cachaça para afrouxar as veias contraídas e deixar o sangue correr solto, nos entremeios de três pimentas malaguetas trituradas por todos os molares.
Rufa, brandindo o rebenque, esporeia o vazio da égua, que num abrir e fechar d’ olhos vai do trote ao galope, num desembestado arranque caatinga afora, beirando a estrada, em busca do horizonte que se esconde nas cabeceiras, além das serras azuis. Corpo derreado para frente, capote drapejando às costas, ele avança contra a ventania morna a lhe cortar o couro da cara.
Para espantar o lobisomem, as assombrações e as almas penadas dos que “bateram as botas” pela sua pontaria, principia a assobiar uma cantiga cantada pelos cangaceiros que via na feira de Caicó ou lá pras bandas de Currais Novos, menino ainda.
Sem intrusos, acauã cala o bico.
Num voo rasante, o crocitar da rasga-mortalha, prenuncia o transcurecer da tarde.
“Olê, mulé rendêra, olê mulé rendá...
Tu m’insina a fazê renda,
Q’eu t’insino a namorá!
Olê, mulé rendêra, olê mulé rendá...”