A primeira Batalha
A fumaça já pairava espessa no ar, ardendo as narinas e ofuscando os olhos. Era difícil ver o inimigo por detrás da fuligem, ficando somente visíveis os clarões de seus canhões quando disparava em direção à pequena caravela. Segundos depois seguiam-se os gritos e sons de madeira estilhaçando pelos ares. Era uma briga desleal. A fragata com seus trinta canhões atacava sem dó a caravela que tinha apenas dez, sendo que desses apenas quatro ainda se faziam úteis após poucos minutos de troca de disparos.
Tinham cometido um erro estratégico. O capitão, achando que havia despistado o inimigo, havia entrado em um canal para conseguir reforçar o casco para uma eventual batalha. Entretanto, não contava com a capacidade do capitão da fragata inimiga de antecipar seus passos e aguardar sob a cobertura da curva do canal. Quando a embarcação se expôs era tarde demais para manobrar e tentar voltar. Restava apenas lutar por suas vidas.
Como um bom marinheiro de primeira viagem estava tão perdido quanto um grão de areia no fundo do oceano. Corria de um lado para o outro desesperado acatando as ordens dos mais experientes. Um marinheiro de bigode espesso que se chamava Billy havia pedido mais um barril de pólvora para o canhão posicionado na proa. Charlie, obedecendo o marinheiro correu descendo as escadas até o paiol e agarrou o primeiro barril com que seus olhos castanhos e assustados se depararam. Antes que pudesse subir novamente se encolheu todo para se proteger dos pedaços de madeira que se projetaram no ar quando uma bala de canhão perfurou o casco a estibordo.
A tripulação do Lâmina do Oceano era pequena, cerca de vinte homens experientes e calejados pelo sal e vento de viagens diversas, enquanto Charlie fazia sua primeira e, ao que tudo indicava, última viagem. A fragata perseguiu a embarcação por dias até conseguir essa oportunidade que parecia saber aproveitar muito bem. Dos vinte tripulantes, pelo menos meia dúzia já havia perecido em poucos minutos de disparos.
— Disparem cães imundos! — gritou o capitão com voz já rouca de tanto dar ordens aos homens confusos.
Um disparo passou centímetros à frente de Charlie quase fazendo-o cair de costas na escada com o susto. Ofegante e com um medo congelante sentiu uma mão lhe agarrar a gola da camisa e erguê-lo na direção do convés.
— Ande logo, rapaz — disse o marujo de costeletas pretas que lhe impulsionava para cima.
A menino subiu os últimos degraus e procurou por Billy para lhe entregar o barril, mas o homem não estava à vista. Ao lado do canhão que o marinheiro manejava, um grande furo se fazia visível e um rastro de sangue indicava que o homem havia sido lançado para longe com a força do impacto.
— Por mil demônios! Atirem de volta! — vociferava o capitão.
Charlie simplesmente reagiu e assumiu o canhão de Billy. Acendeu o pavio e tapou os ouvidos aguardando o disparo de olhos fechados. Nada aconteceu. Foi quando se deu conta que faltava preparar o canhão, motivo pelo qual Billy havia pedido a pólvora. No tempo que levou para carregar a pesada arma o inimigo havia disparado pelo menos uma dúzia de vezes.
Os gritos eram terríveis e ensurdecedores.
O choro era incontrolável, mas logo foi seguido de um grito de fúria que o devolveu o foco. Acendeu o pavio novamente e, desta vez, a arma disparou. O canhão deu um coice violento, quase atingindo o marujo inexperiente que se sentiu idiota por ter esquecido a regra de ouro. Nunca fique atrás do canhão!
A fumaça subiu rápido e dificultou a visão, mas Charlie teve a certeza de ter atingido o navio inimigo, ainda que não soubesse dizer qual o tamanho do estrago causado. Da popa da fragata alguns tripulantes atiravam com seus mosquetes, fazendo feridos e adicionando mais morte àquele dia ensolarado de inverno.
— Abandonar o navio! — ouviu o capitão gritar. — Abandonar o navio!
O menino assustado olhou em direção ao timão de onde o capitão gritava suas ordens e viu o homem de barba branca e calvo ser atingido em cheio por uma bala de canhão. O projétil levou o corpo do capitão, tábuas e tudo mais pelo caminho, para o além.
Paralisado pela cena que acabara de presenciar, Charlie sentiu a embarcação ceder a constante pressão recebida do inimigo. A popa da caravela começava a afundar e erguia a proa levemente à medida que a água inundava o convés. Os marujos que ainda estavam vivos se lançavam nas águas geladas do canal na tentativa de manter seus corações pulsando dentro do peito. Um canhão a estibordo deslizou com a inclinação e se soltou da corda que o prendia, rolando com força sobre um homem de meia idade que estava prestes a pular na água.
— Pule, menino! Pule! — conduziu-o o homem de costeletas enquanto se lançava para fora da embarcação agarrando a camisa de Charlie.
A água estava incrivelmente gelada, fazendo Charlie perder o fôlego por alguns segundos e ficando em choque. Choque esse que foi rapidamente quebrado ao constatar os disparos feitos em sua direção vindos dos botes que o inimigo lançava na água para caçar os sobreviventes. Um homem ao seu lado acabava de submergir quando um tiro lhe atingiu a têmpora, fazendo o corpo boiar inerte e a água se tingir de vermelho.
— Mergulhe! — disse o homem de costeletas.
Charlie apenas obedeceu.
Enfiando a cabeça debaixo da água via os rastros das balas que afundavam em busca de seus alvos. A profundidade não era muito grande, cerca de três ou quatro metros, não sendo muito difícil chegar ao fundo. A dificuldade era se manter no fundo, longe dos olhares atentos dos inimigos. Alguns marujos menos capazes de segurar o fôlego eram obrigados a submergir, só para serem enviados ao outro mundo quando suas cabeças se tornavam visíveis na superfície. Charlie, cujos pulmões não haviam sido afetados por anos de fumo, era capaz de segurar a respiração por um longo período de tempo. Mas não seria suficiente.
Apesar do medo, teve a presença de espírito de se dirigir para bombordo da embarcação que afundava. A carcaça da caravela poderia servir de proteção por alguns minutos. Tirando a cabeça da água e puxando uma imensidão de ar, apoiou na madeira do casco para se manter na superfície. Havia com ele mais dois ou três marujos que haviam tido a mesma ideia. Alguns tentavam nadar para a margem mais próxima, mas o som de disparos vindos da esquerda indicava que não haviam conseguido.
Com medo de ser descoberto atrás do barco submergiu, ficando bem abaixo da embarcação que afundava lentamente. Em meio a destroços e corpos o silêncio era sombrio. Viu o casco de um dos botes dando a volta na caravela, enquanto um segundo bote aguardava de tocaia os que tentassem retornar por debaixo da carcaça.
A morte se aproximava de um lado, enquanto o carrasco estava do outro. Quase sem fôlego, nadou alguns metros até o fundo do barco que estava afundado pela metade. Usando o leme do navio como escudo colocou somente o rosto para fora para puxar o máximo de ar que pôde e voltou para debaixo da água.
Tentaria o que nenhum dos outros havia tentado. Movido apenas pelo puro e mais primitivo desejo de viver, nadou como um peixe. Movia os braços e pernas por debaixo da água a uma distância estupidamente longa da margem oposta. A pressão no peito era terrível, mas ainda faltavam vinte metros para poder se dizer a salvo. Ignorando todas as mensagens que seu cérebro lhe dava para submergir em busca de ar, continuou a dar braçadas. Usando algumas pedras no fundo do leito se impulsionava para avançar mais rápido. Já em um pedaço em que era possível ficar em pé, usou toda sua força de vontade para ignorar o instinto de erguer a cabeça e subir de uma vez. Virando o corpo de bruços e com muito controle tentou colocar apenas a face para fora, o suficiente para puxar um pouco de ar e seguir como um polvo tateando o fundo. Ao seu lado, uma árvore larga com raízes expostas pela maré erguia-se imponente no leito do rio. Rezando para todos os deuses que conhecia, lançou-se para detrás da árvore na esperança de não ser notado pelos carrascos no meio do canal.
Seu corpo tremia de medo e frio, encolhido e rijo atrás do tronco da árvore. Com as mãos cruzadas sobre o peito rezava em silêncio para não receber um disparo em sua direção. Ouvia os inimigos conversando em meio a gritos e vez ou outra ouvia um tiro. A luta para não olhar era enorme. A dúvida se haveria dois botes cheios de homens armados se aproximando da margem oposta lhe consumia, mas caso não tivessem visto ele se afastar, colocar a cabeça para fora poderia significar a denúncia de sua fuga.
As horas passaram e seu corpo tremia inconsolável. Os dentes batiam como castanholas e produziam um som que lhe dava medo, dando a impressão que seria aquele som mínimo que poderia lhe denunciar, mas por mais que tentasse não conseguia controlar.
Quando a noite caiu, a maré subiu e ninguém havia lhe dado um tiro, achou que era hora de se levantar. Com dificuldade e com os músculos enrijecidos de frio, caminhou lentamente sob a cobertura da escuridão para terra seca. As roupas encharcadas pesavam uma tonelada. Em um olhar discreto sobre os ombros viu um pedaço do Lâmina do Oceano iluminado pelas chamas que vinham do convés. Alguns metros adiante no canal, a fragata inimiga festejava e regozijava-se de sua vitória.
Derrotado e cansado, Charlie deixou de lado seu ódio e fúria, dando lugar ao alívio por poder tremer de frio na margem do canal onde seus companheiros pereceram. Caminhou por horas pela mata até achar uma estrada que o levou direto a um vilarejo.
Havia sobrevivido a sua primeira batalha.