O MENINO QUE VENCEU A FLORESTA
O MENINO QUE VENCEU A FLORESTA
O menino da minha história, é mais velho que eu, está na classe mais adiantada. Ele é da quarta, mas brincamos todos os dias no recreio. Ele sempre diz que me acha um moleque valente e que tem inveja de mim. Vive dizendo que eu sou diferente porque gosto de ler, mas eu gostaria mesmo de ler Harry Potter. Na verdade, eu é que tenho inveja dele, ele é muito inteligente.
Ele vivia me convidando para ir brincar na casa dele. Um dia eu fui, era na esquina da Rua da Praça com a Rua da Igreja. O terreno é muito grande, meu pai disse que tinha uns três alqueires ali, ocupa todo o quarteirão e encosta na igrejinha do fim da rua. É uma casa azul com janelas enormes e portas de duas folhas. Na frente tem um jardim de girassol, um pé de abacate, e uma antena, acho que é a maior do mundo. Ah, tem um portão de madeira que permite que a Teca o ultrapasse. Ao lado, entre a casa e a murada, corre uma senda estreita que leva ao fundo da construção onde moram os mistérios que ele disse que havia lá. Fomos ladeando a casa pelo corredor até chegar à edícula. Pelo muro havia muitos caixotinhos fechados com letras nas portinhas.
Ia perguntar o que eram aquelas caixinhas quando ouvi a voz da mãe dele: “Que bom que chegaram, está um lindo dia para brincar”. Ela é alta e magricela, tem cabelos espichados que parecem molinhas que se movem quando fala.
Minha mãe é escritora, já publicou muitos livros.
Ela disse que estava finalizando a história que mais gostou de escrever “A casa da Esquina”, o cenário é esta casa aqui, uma história de muitas brincadeiras misteriosas nas árvores da floresta que se esconde ao fundo do terreno. Nessa história, um dos meninos chega a dormir na mata. E o mais legal de tudo, segundo ela, era a resistência, e a coragem de permanecer sozinho na mata.
Que mata? – Fiquei muito curioso.
Aqui atrás da edícula tem uma floresta encantada – a mãe respondeu sorrindo.
O mistério então já tinha começado. Meus olhos arregalaram para o lado do fundo. Eu não via nada lá além de um armário branco estreito, varais com algumas peças penduradas, e um tanque.
Você quer conhecer? – Perguntou o menino.
Ele então me levou para conhecer a floresta que ficava escondida atrás da lavanderia. Entramos dentro do armário. Sinceramente, que coisa esquisita! E a mãe dele fechou a porta, dizendo lá de fora “Abre-te, Floresta! ” E o fundo do armário se abriu de maneira mágica. Que demais! Era mesmo uma mata de verdade com árvores maiores que a casa, muitos arbustos e pássaros que moravam em ninhos no topo das copas. Já de cara um pé de jaca carregado da fruta. “Minha mãe adora jaca! ” Eu disse com olhos encantados. “Você vem sempre aqui? ” E o menino sorriu para mim respondendo que sim. Meus olhos corriam para todos os lados, nunca tinha entrado numa mata, muito menos pelo armário. Havia algumas trilhas e optamos pela menor a mais estreita. Ainda pude ouvir a mãe dele dizer lá da lavanderia: “Não pode se divertir muito, hein! ”, e depois uma farta gargalhada.
E lá corremos e subimos em diversas árvores sem nos dar conta do horário. Ele me mostrou várias barracas armadas com sacos de dormir para a criançada acampar. Elas foram montadas em lugares bem afastadas umas das outras. Se alguém se perder, pode dormir na barraca, disse ele. Fiquei pensando quem seria louco de dormir no meio do mato. Quando chegou a hora do almoço, a Francisca foi nos procurar com uma cesta de alimentos. “Eu estava faminto. ” As marmitas estavam quentinhas, e sucos para um piquenique na mata. Ela possuía um apito amarelo que usou para chamar a gente. Depois vi que o menino também tinha um pendurado no pescoço. Na hora me lembrei da história do livro que a mãe dele estava escrevendo. Os personagens se perdiam na floresta e usavam um apito para serem localizados. Uau, estamos vivendo a história do livro! Assim que acabamos de comer, a Francisca recolheu tudo e deu uma garrafa de água para cada um.
Depois, sumiu no armário gritando animadamente: “Valendo! ”. O que será que estava valendo? Fiquei pensando se a gente se perderia como no livro:
Você já se perdeu aqui?
E o menino riu dizendo: “Essa é a brincadeira mais divertida. A gente se separa, se perde, fica maluco procurando a saída porque isso aqui parece um labirinto. Tem que resistir o máximo. Tem que ser esperto, usar a inteligência. Quando não aguenta mais, a gente apita e eles vêm nos salvar”.
Foi quando ele pendurou um apito amarelo no meu pescoço, depois me olhou de modo engraçado, dizendo “divirta-se! ”, e saiu em disparada por uma das trilhas que eu ainda não conhecia. Tentei correr para acompanhá-lo, mas é claro, ele era um ano mais velho, corria muito mais que eu, e conhecia o lugar. Pouco depois me vi perdido na floresta. Comecei a ter medo de ficar sozinho. Pensei nos mistérios, o que mais teria de estranho ali? Poderia ter muita coisa. E chamei o menino, mas ele não ouviu. “Hei, cadê você? ”. Chamei de novo, e nada. Levei a mão ao apito, estava com medo de não ser encontrado, mas desisti quando lembrei do que ele tinha dito: “Essa é a brincadeira mais divertida. A gente se separa, se perde, fica maluco procurando a saída porque isso aqui parece um labirinto. Tem que resistir o máximo. Tem que ser esperto, usar a inteligência. Quando não aguenta mais, a gente apita e eles vêm nos salvar”, “o mais legal de tudo, é a resistência e a coragem de permanecer sozinho na mata”.
Ainda não tinha ouvido o menino apitar. Se eu apitasse a brincadeira acabaria. Então resisti. Andei de lá para cá e daqui para lá. Hummm... o menino deve conhecer a saída, quem sabe exista uma porta dentro do tronco de uma dessas árvores. Vai ver ele já saiu. Aí me veio a história do livro. Os personagens brincaram muito explorando a mata até escurecer, e um deles dormiu na floresta, ele também resistiu. Ela disse que na manhã seguinte ele encontrou a saída, nem precisou usar o apito. Saiu com cara de super-herói. Foi aí que decidi me aventurar, e me sentir propositalmente perdido para me divertir. Numa das trilhas encontrei uma barraca e entrei, parecia mais seguro dentro dela. Uma mochila no canto continha agasalho, cobertores, biscoitos, doces, câmera fotográfica, bússola, binóculo, corda, pedaços de fitas coloridas, e muitas curiosidades. Enfiei minha garrafinha de água junto com essas coisas, e sai com a mochila nas costas. Fui fotografando pássaros, árvores, sol que penetrava por entre as galhadas. Tudo começou a ser muito divertido.
Já fazia muito tempo que eu perambulava pelas trilhas quando ouvi um som agudo de um apito.
Deve ser o menino! – Então ele ainda está na mata. Fiquei contente de não estar só.
Ouvi outro apito. Este agora vinha de outro canto, tentei me dirigir para lá, parecia mais perto de mim. Mas não encontrei ninguém. Reinava o silêncio em toda a parte.
E a voz do menino disse de onde eu não podia vê-lo:
Tô saindo, fui picado pelas formigas, sou alérgico. Você está sozinho, divirta-se!
Resolvi responder para que ele soubesse que eu ainda estava na brincadeira: “Tudo bem, se eu precisar, apito”.
E o veio o silêncio de novo.
Tive vontade de apitar para ir embora com ele, mas me contive. “O mais legal de tudo, é a resistência, a coragem de permanecer sozinho na mata”. O negócio era não ter medo e ir adiante. Aquilo, realmente, parecia um labirinto. Um dia eu e meu pai nos perdemos numa cidade do interior, a gente estava de bike. Ele disse que quando a gente se perde é bom prestar muita atenção nos detalhes do lugar, e gravar tudo na memória. Pelas minhas andanças, fui marcando com fitas, duas trilhas que davam em barracas, qualquer coisa entraria em uma delas. Além do mais, eu andei fotografando a tarde inteira. Acho que estava com medo. Abri um pacote de biscoites e devorei todos eles. Deitei numa clareira, precisava pensar. Não sei que horas são, mas a tarde já deve estar acabando. Olhei para cima com o binóculo, e vi que a árvore mais alta dali tinha galhos fortes, resolvi escalar. Subi num zás! Lá do alto tudo era maravilhoso. Tirei muitas fotos. Com o binóculo vi a torre da igrejinha que parecia perto de onde eu estava, e o sol se ponto atrás dela, uma beleza. Vi também, do outro lado, a antena da casa do menino, essa estava bem mais longe de mim. Pronto, já sabia para que lado estava a saída. De onde eu estava também dava para ver o topo de uma quaresmeira florida, e ficava na rota a seguir. Lá embaixo a mochila me aguardava. Desci devagar, desta vez tive medo de cair daquela altura. Quando pisei no chão percebi que já anoitecia. Pensei na minha mãe que deveria estar preocupada comigo. Não, não vou apitar. Ela sabe que vou dormir na casa do menino. Era hora de ir para a tal barraca.
Andei depressa, mas logo me vi correndo. Entrei num sopetão, e fechei o zíper, não queria seres estranhos me visitando. Uma vez já acampei com meus primos na casa da praia. Estávamos em oito numa barracona, foi uma bagunça danada. Mas aqui estou sozinho dentro de uma barraca miúda de nylon, eu e esse maldito silêncio que faz a gente pensar qualquer coisa. Que família esquisita essa do menino! Será que ninguém vem me buscar mesmo? E se eu me machucasse, desmaiasse, e não conseguisse apitar? Acendi a lamparina do teto antes que ficasse totalmente escuro. Ouvi uns ruídos, comecei a tremer. Desviei meus pensamentos para a paisagem do alto da árvore. Estava frio àquela hora, ou seria o pavor? Puxei o cobertor, cobri a cabeça, e acabei dormindo.
Frágeis raios do sol me acordaram quando começaram a penetrar pelo nylon azul. Sentei tentando me lembrar onde estava. Ah, a florestinha do menino! Acho que esqueceram de mim. Comi um pacote biscoitos de uma só vez, tomei o restante da água e me levantei. Ao abrir o zíper da tenda vi que já era dia alto. Não podia correr o risco de não encontrar a saída.
Coloquei a mochila nas costas e saí determinado. Refiz o plano, a rota da quaresmeira. Minha mãe não me saia da cabeça. Subi de novo numa árvore alta e de lá vi aquela quaresmeira repleta de fores, ela estava bem perto de mim, e a antena parecia que estava ali, ou será que era ilusão por causa do binóculo? Não importa, agora já sabia a direção. Com a mochila nas costas segui as pistas que fotografei do alto, e de repente, para minha alegria, eis a jaqueira. Aquela jaqueira que o menino me mostrou assim que entramos na floresta. Afastei os arbustos e segui a trilhinha até enxergar a parede e o fundo armário. Respirei fundo, acho que consegui! Apitei forte, uma, duas, três, muitas vezes. E a voz do menino: “Abre-te, Floresta”. E entrei no armário, fiz cara de super-herói quando a porta se abriu. Lá estava o menino que me abraçou bem apertado, e ouvi uma salva de palmas. Ué, o que minha mãe faz aqui? Abracei todos. Estava salvo. A Francisca apitou lá da cozinha, e lá fomos nós para o café da manhã. O menino não me largava “Sempre achei que você venceria a floresta, sabia que eu jamais a venci? ”. Fiquei admirado de ouvir isso, sempre achei que ele sabia de cor os caminhos de saída. Sentamos à mesa num falatório sem fim. Eu ria de alegria. Minha mãe estava tão orgulhosa, não parava de falar isso. A mãe dele ligou a televisão da cozinha e mostrou como funcionava a vigilância da casa, afinal uma casa tão grande precisa de olhos para vigiá-la, e foi pensando nisso que o marido criou um sistema específico. E nas inúmeras telinhas estavam pontos estratégicos da floresta. A barraca azul! Vocês me viam daqui?! E a mãe dele disse: Claro, meu querido, eu e sua mãe acompanhamos cada passo seu. E sabe de uma coisa, eu não sabia direito como terminar minha história, mas agora já sei. Mudei o título da história: O menino que venceu a floresta.
Ri timidamente, mas feliz. O menino aproveitou para me convidar para o aniversário dele no mês seguinte, e seria na floresta com uma competição de resistência. Sorri convencido.
Ao sairmos vi de novo os tais caixotinhos ao longo do muro: “O que é isso? E a mãe dele respondeu: “são prêmios para quem vence a floresta, você é um campeão, pode escolher sua portinha”. Outro mistério da casa do menino, certamente. Me adiantei afoito para abrir um dos compartimentos, e não haveria melhor presente: Harry Potter.