ANGUS DOONLEY 
UM CONTO DE FAROESTE

  Quando Angus Doonley entrou pela via principal da cidadezinha mineira de Bodie Hills, no estado da Califórnia, em uma manhã gelada de 1879, apesar de parecer um homem perigoso, ninguém deu a menor atenção a ele e, portanto, não havia como prever aquela encrenca chegando ao povoado. Alguns cidadãos, de índole pouco questionável, não poderiam sequer imaginar que não iriam ver mais o fim daquele dia.
  O forasteiro avançou através da rua esbranquiçada pela neve. Vestia um sobretudo pesado para proteger-se do frio. Levava um chapéu puído pelo tempo, de aba puxada por cima dos olhos, o que lhe causava um efeito mais ameaçador ainda. O rosto, coberto por uma barba espessa, desgrenhada, estava pontilhado por flocos de neve trazidos pelo vento e imprimiam-lhe vincos marcados do cansaço de uma longa viagem a céu aberto.
  Muito tempo depois, nas conversas de saloon, ou histórias contadas pelos velhos, apontavam-se a indiferença dos cidadãos de Bodie Hills de não se levar o forasteiro a sério por causa da histeria conclamada pelo reverendo Willian Leroy. O consenso era de que a tragédia podia ter sido evitada com um pouco mais de tolerância de ambos os lados.
  Angus trotou o cavalo, atento em seu entorno. Estranhou as laterais da via principal vazias àquela hora da manhã. As pessoas resistiam em sair no clima frio, ou encontravam-se reunidas em alguma solenidade. A segunda hipótese logo se confirmou ao notar uma aglomeração de gente alvoroçada no fim da rua. A visão há algum tempo já dava sinais de enfraquecimento, mas conseguiu divisar o borrão adiante como sendo o enforcamento de alguém. Ficou preocupado por ter chegado tarde.
  A situação pedia um exame mais apurado, caso precisasse de um plano de ação. Angus sempre fora um homem cauteloso. Assim, parou o cavalo e, sem a menor cerimônia, pegou os óculos do bolso da jaqueta e os colocou no rosto para poder enxergar melhor a balbúrdia de gente em frente ao palanque montado para execução.
  O forasteiro reparou as pernas do enforcado penduradas, de balanço leve ao sabor do vento, sem qualquer sinal de vida. Seu corpo aprumou-se rígido em cima do mustang porque reconheceu o morto. Tratava-se de Frank Gordon Scurlock, o xerife da cidade e um grande amigo de infância. Um misto de remorso e raiva começou a nublar-lhe os pensamentos. “Maldição”, praguejou entre dentes. Cuspiu o fumo de corda na lama da rua com desprezo. Detestava a pena de morte pela forca.
  Antes de avançar, notou que a multidão ainda não se dispersara. Isso só poderia significar uma coisa: havia outra execução agendada naquela manhã. Tinha já uma vaga ideia da situação e quem poderia ser o próximo condenado. Esporeou o mustang em um trote discreto, sem chamar atenção.
  A poucos metros da aglomeração, ficou indignado com o tratamento dado ao corpo do amigo. Dois homens, depois de retirarem o xerife da forca, sentaram o morto em uma cadeira e o amarraram no encosto para não cair. A cabeça ficou inclinada para baixo, os braços amarrados para trás. Mal a cena grotesca fora preparada, o forasteiro viu um rapaz com as mãos amarradas à frente sendo empurrado para subir às escadas do cadafalso escoltado por um gingante. Conhecia o criminoso! Era por causa dele que viajara até ali naqueles confins de Judas.
  Os cidadãos de Bodie Hills, compenetrados com o espetáculo bizarro, encontravam-se de costas para o recém-chegado. Estavam agitados, falavam alto, lançavam xingamentos para o réu. Angus avaliou o  quadro geral por cima daquelas dezenas de cabeças. Depois de ponderar bem as suas opções, decidiu o seu plano de ação.
  Então, apeou do cavalo, tirou o sobretudo, pegou o rifle winchester modelo 1873 ao lado do alforje, deu um passo à frente, acionou a alavanca da arma e atirou para cima. O grupo, mesmo em agitação de protestos contra o criminoso, se assustou e voltou-se para o sujeito desconhecido.
  — Senhoras e senhores, gostaria de saber quem é a autoridade da lei de maior patente nesta cidade, haja visto que o xerife está morto – disse o forasteiro a encarar um amontoado de olhos hostis, talvez revoltados por ele atrapalhar o andamento do espetáculo em curso.
  Ninguém respondeu. No entanto, percebeu uma agitação no meio do povo. As pessoas afastavam-se em dar passagem para alguém se aproximar. Como uma porta de gente humana ao abrir-se, Angus viu emergir da abertura um velho de constituição forte, alto, de cavanhaque e costeletas bem escanhoados num rosto amplo, de olhos azuis penetrantes, chapéu-coco, de sobretudo e cara de poucos amigos. Não deixou de notar os três homens armados em seu rastro. Os guarda-costas se posicionaram um pouco mais atrás, um à esquerda e dois à direita do velho.
  — Eu sou o reverendo e juiz desta cidade. Meu nome é Willian Leroy nas graças de Nosso Senhor. Quem é você?
  — Meu nome é Angus Doonley, delegado de polícia em missão especial nesta cidade por ordem do Procurador Geral dos Estado Unidos.
  — É mesmo? – disse Leroy fazendo pouco caso ao lançar um olhar de desprezo para o distintivo da U.S. Marshals à mostra no peito esquerdo do forasteiro. – E posso saber qual é esta sua missão, moço?
  O delegado apontou o queixo na direção do sentenciado em cima do palanque de madeira.
  — Aquele rapaz ali é Henry McCarty.
  — Hum... sei. Aqui em Bodie Hills ele é... – o juiz virou-se para trás, olhou o condenado e voltou-se novamente na direção do forasteiro -  era o ajudante do xerife. O nome dele é Charles Gray.
  — Não. Ele é Henry McCarty – disse Angus em tom firme - conhecido no estado do Novo México como Billy the Kid!
  A notícia causou alvoroço na multidão. O espanto se expressou em um burburinho agitado de incrédulos. Muitos duvidaram da veracidade da informação.
  — Essa é boa. Esse quatro olhos deve estar é doido! – disse o guarda-costas à esquerda com um sorriso de troça na cara.
  Angus não deixou de notar que o caçoista levava a estrela de xerife no peito. Devia ter sido empossado pelo Juiz naquela manhã. O homem parecia perigoso porque, assim como ele próprio, o sujeito usava o cinturão das armas um pouco abaixo da cintura ao estilo dos pistoleiros. Aproveitou para examinar os dois guarda-costas à direita. O mais alto chamava atenção por um enorme bigode a lhe cobrir completamente a boca. Tinha o olhar experiente de atirador. O outro era um indivíduo gordo, no estilo almofadinha, lembrava um típico jogador de poker, todavia merecia cuidado também pois a experiência lhe mostrava que jogadores de cartas profissionais costumavam ser traiçoeiros. Voltou o olhar para o caçoísta.
  — Você é o novo xerife? – perguntou dirigindo-lhe hostilidade no tom de voz.
  O galhofeiro deu um passo à frente confiante.
  — Sou o novo xerife sim. Meu nome é Clay Pickett.
  Angus olhou o novo xerife de cima a baixo com indiferença deliberada. Mastigou o tabaco duas vezes e cuspiu as impurezas de lado. A insolência do gesto enrijeceu a espinha do outro.
  — Clay, não me leve a mal, mas a conversa aqui é com o juiz.
  Clay Pickett já ia dizer alguma coisa, contudo o reverendo levantou a mão dando mostras para que ficasse de boca fechada. Em seguida, encarou novamente o marshal. Ficou pensativo por um instante como se avaliasse com cuidado a informação recebida. Torceu o nariz insatisfeito e jogou o polegar por cima do ombro na direção do cadafalso.
  — Você diz que aquele rapaz ali é o Billy the Kid?
  — Isso mesmo. Fui designado pelo Procurador Geral dos Estados Unidos para levá-lo até o Novo México.
  O reverendo Leroy cofiou o cavanhaque por um breve momento. Permaneceu em silêncio meditativo por mais alguns segundos sem tirar os olhos bovinos do forasteiro. De repente, explodiu em uma gargalhada sonora.
  — Há, há há... Charles Gray? Aquele ali?  O perigoso assassino e ladrão de gado? He, he, he, amigo, não me faça rir.
  Todos começaram a gargalhar também numa só toada. Alguns forçavam as risadas sem muita convicção, apenas para agradar o juiz.
  — Eu tenho cara de quem conta piada? – Cortou o delegado com a voz agressiva.
  Uma expressão tensa se instalou na cara do reverendo. As risadas cessaram. O rosto do velho começou a ficar congestionado de raiva, suas sobrancelhas se contraíram. Balançou a cabeçorra em um gesto de recusa.
  — Moço, aquele rapaz não pode ser Billy the Kid porque ele simplesmente era o auxiliar do xerife até semana passada. Charles Gray, na verdade, que Deus tenha piedade de sua pobre alma, é um pervertido. Um imoral. Uma blasfêmia aos olhos de Nosso Senhor... o ex-xerife também, eles dois!
  — Não estou aqui para discutir a conduta moral do criminoso.
  — Ah, mas a conduta moral dele dentro desta cidade é da minha conta. Os cidadãos de Bodie Hills não toleram a imoralidade - disse o reverendo a inflar o tom de voz e fazer gestos amplos com as mãos. - Não aceitamos a sodomia! Jamais. Frank já recebeu o castigo, Graças a Deus. Agora, o outro deve ser punido da mesma forma por seus pecados. O homem foi feito para seguir os ensinamentos de Deus. Amém! – Deu ênfase em voz alta à última palavra, olhando para o céu como se estivesse falando diretamente com o Criador.
  — Amém – responderam em uníssono muitos dentro da multidão. “Glória a Deus” complementaram outros.
  Angus não gostou do rumo da prosa. Aquilo fedia a fanatismo religioso. O velho, com os olhos brilhando de raiva, virou-se para a turba enquanto continuava a discursar em voz alta.
  — Deus, na sua magnânima sabedoria, em Gênesis, foi bem claro, está escrito na bíblia: "Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra". O homem foi feito para a mulher. O homem foi feito para procriar a mulher! Este sodomita deve ter o mesmo destino do seu amante porque deste tipo de relacionamento nada de bom pode frutificar. Esta escória deve ser erradicada da terra. Amém, Senhor!
  — Amém!
  — Glória a Deus!
  — Como Juiz, o senhor deve saber que há seis anos a Carolina do Sul foi o último estado a revogar a pena de morte por sodomia em nosso país. Se os crimes do rapaz são por sodomia, então não se pode enforcá-lo. No máximo, ele deverá pegar 10 anos de cadeia, se muito. É a lei, reverendo.
  — Ora, você está falando nas leis dos homens, eu estou falando nas leis de Deus.
  — É a lei dos homens que decide quem vive e quem morre.
  O reverendo vacilou por um momento. Olhou de soslaio para os seus guarda-costas como se quisesse conferir se eles estavam atentos para protegê-lo. Angus deu um passo na direção do velho.
  — Quero lhe mostrar algo. Este documento pode comprovar o que estou dizendo.
  Muito devagar, pegou um pedaço de papel do bolso da jaqueta. Estendeu o impresso para o reverendo.
  — Este é o cartaz de procurado de Billy em Novo México – informou o oficial apontando o papel já nas mãos do outro.
  — E quem me garante que esse documento não é forjado?
  Um instante de silêncio caiu por sobre os dois homens. Ouviu-se o vento sibilar por cima da multidão. Clay Pickett, uma vez mais, deu um amplo sorriso de troça. O Bigode e o Jogador sorriram também, divertidos com a situação. O marshal não piscou por trás das lentes dos óculos enquanto fitava o juiz de modo intenso. Parecia uma estátua. Quando falou, todos puderam sentir um tom de ameaça no ar.
  — Você está me chamando de mentiroso, reverendo?
 

Continua... 
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Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 27/11/2020
Reeditado em 09/04/2021
Código do texto: T7121505
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