Inacreditável rali
Shafira acorda pela manhã, abre os olhos e lembra que está longe de casa. No quarto do hotel em Paris, a jovem piloto afasta o lençol de cetim e estica os braços num longo espreguiçar. Sente-se leve e quase nem acredita que está a poucas horas da estreia no rali Dakar. Mal consegue esperar o momento para iniciar a grande aventura de sua vida.
Sente orgulho por ser primeira mulher a participar do rali e se prepara para a mais dura prova do automobilismo mundial. Traz experiências de quem pilota como gente grande e possui troféus que causar inveja a qualquer veterano.
Vê o seu nome na imprensa e fica assustada com tanto assédio. De repente, passou a ser uma celebridade. A disputa pelos holofotes rende farpas dos pilotos mais antigos que classificam a mídia de tendenciosa e feminista, enquanto responder as mensagens da mídia social tornou-se missão impossível para Shafira.
Ela se levanta, abre a janela e vê as montanhas esverdeadas refletidas no mar translúcido. A visão da praia lembra as últimas férias com a família. Sente desejo andar sem destino pelas areias brancas, de pés descalços, cabelo ao vento, sob o sol do verão. Mas o lazer pode esperar como o relacionamento com o namorado não anda lá essas coisas. Ele nem se deu ao trabalho de acompanhá-la até Paris.
Corre o boato de que Shafira mantém um caso com um dos líderes influentes da organização do rali. O homem mais velho foi visto com ela em público, o que teria despertado a maledicência alheia. Ao saber daquela infâmia, ela apenas sorri, e não se importa em alimentar a dúvida.
Sabe que de nada adiantaria emitir um comunicado, porque continuariam criando fake News. Numa entrevista, a repórter quis saber se ela sentia atração por mulheres, numa referência aos esportes do mundo masculino. Enquanto eles se preocupam com sua vida pessoal, ela prefere planejar sua estratégia.
Toma o banho, veste o macacão azul marinho. Vaidosa, faz a maquiagem suave, com um toque de luminosidade no rosto e carrega um pouco mais no delineador, destacando o olhar da mulher que sabe o que quer.
A jovem piloto tem consciência do desafio que está prestes a encarar. Oito dias de poeira, pedras, mato, areia, navegação intensa e muita exigência física. O repouso muitas vezes improvisado. Um verdadeiro teste de fogo. Mas nada a fará desistir de pilotar por locais incríveis que só o rali proporciona.
Antes de sair do quarto, coloca as pilhas no cronômetro que será o seu balizador durante a prova. Checa alguns materiais e fecha a mochila. Tudo pronto. Toma o elevador e desce até o restaurante para o café da manhã.
Linda e sedutora, Shafira atravessa o salão e vai sentar-se com o navegador e o auxiliar técnico, que a esperam.
Na saída do restaurante, sente o coração gelar e prende a respiração por segundos, quando o olhar perturbador de um homem alto e corpulento a encara. É a segunda vez que aquele homem lhe dirige o olhar intrigante. Parece querer dizer algo numa atitude quase ameaçadora.
No local de largada, Shafira e o navegador já estão a postos. Competidores de vários países do mundo disputam o título mais cobiçado da competição mundial.
De posse do mapa do rali, ela analisa o trajeto de cerca de nove mil quilômetros de trilhas inóspitas, além de ter de encarar os 3.660 metros de altitude, antes de chegar ao destino.
Ela sabe que aquela aventura não é para amadores. Mas não pensa em desistir. Nas suas mãos, imagina o controle do veículo movido a diesel, com motor 3.0 e 345 cavalos.
No sétimo dia da competição está exausta, mas feliz. Disciplinada, ela ultrapassa todos os obstáculos e se dá conta de que está no caminho certo. A cada adversidade aumenta o desejo de conquistar a honrosa posição no rali.
Após percorrer oito mil quilômetros, pensa na prova e acelera, usando todos os recursos de tração do carro para passar pelo desfiladeiro. De repente, as rodas dianteiras se precipitam para o nada e o carro ergue em ponta, embicando cratera adentro.
É fim de linha?
No dia seguinte, apenas doze pilotos, dos noventa competidores disputam o título. A notícia de que Shafira sucumbiu pelo caminho se espalha entre os participantes. Teve até quem ousasse dizer que jamais uma mulher ganharia o rali. A prova é feita para homens.
Entretanto, quando ninguém mais acredita na reação, ante o olhar incrédulo dos diretores de prova, a menina prodígio cruza o primeiro lugar da chegada, com a bandeira do país a tremular na mão. O riso da vencedora desconcerta os adversários, que se rendem aos aplausos com gritos de bravo.