285 - África
A esta distância, parecia tudo um sonho. A guerra acabou, o que lhe parecia inaceitável foi aceite, o que lhe doeu mais ou mais a feriu ficou como memória delida da sua juventude. Desistiu cedo de se queixar e muitas vezes calou a vontade de se explicar a quem julgava sem dados nem conhecimento. Os piores juízes são os teóricos, os que julgam a vida sem nunca a terem vivido, os que, sob a ideologia que professam, são incapazes de se colocarem na pele do outro, de se imaginarem com fome e sede, a correr por onde pudessem para sobreviver. Um dia cercaram a cidade. Dali poucos sairiam vivos. Ele viera quando já não o esperava, cansado, fraco, desanimado. Viera para a ver, disse. Abriram a lata de atum e beberam uma garrafa de vinho. A seguir, mesmo sem música, enlaçados, dançaram. Quando a manhã chegou ele já não estava. Voltou para o quartel, seguiu com o pelotão e morreu em combate. Quando se percebeu grávida a terra era a mesma, sem segurança ou recursos, mas a saída dos lugares de abrigo era um risco de morte que teria de correr. Chegou ao aeroporto, embarcou, estava em Lisboa. Quando a criança nasceu não tinha família para a apresentar. Foram tempos duros. Depois, como quem apaga de vez o passado, casou com um homem maduro que lhe deu toda a estabilidade, que ajudou a criar o filho e que, depois de uma doença rápida, também se foi embora. Agora tinha a pensão dele, a casa que lhe deixou, a quinta e o resto dos bens que a tornavam quase rica. O filho vivia com ela, tratava de tudo, zelava pelo seu bem-estar. - Um destes dias, caso-me, disse antes de trazer uma jovem que tinha todos os predicados para ser perfeita.