Raio e trovão

- Eu deveria ficar assustado?

A pergunta fora feita num tom absolutamente despreocupado, embora do outro lado da transmissão de rádio estivesse falando o chefe do estado-maior da República de San Román, um país pequeno mas com um nada desprezível arsenal nuclear.

- Isso cabe ao senhor interpretar, coronel Hurtado! - Esbravejou o general Martin Avilés. - Tínhamos um acordo em andamento com o coronel Figuera e agora tomei conhecimento de que ele foi assassinado!

- Está me dizendo que um coronel do exército da República Democrática de Alamar tinha um acerto secreto com o alto comando de San Román? - Retrucou Hurtado, sem elevar o tom de voz. - Ora, isso é muito grave. Sabíamos que Figuera era um traidor, e o que me diz só confirma as evidências que tínhamos.

- O coronel Figuera trabalhava em prol da paz entre nossas nações! - Insistiu Avilés. - San Román precisa saber como as negociações serão conduzidas, ou tomaremos as medidas cabíveis!

As quais poderiam implicar num ataque nuclear preventivo, bem o sabia Hurtado. Ainda que isso fosse algo extremamente improvável.

- Vamos com calma, general. Já temos a situação sob controle aqui em Puerto Calamar e de pouco adianta me ameaçar ou chamar seus amigos dos EUA; os quais, aliás, serão denunciados pela tentativa de golpe de estado em Alamar e sua vinculação com o traidor Figuera. Se eu ventilar para a imprensa que além disso houve a participação de San Román nesta intentona, pode ter certeza de que a guerra será inevitável.

- Não ousaria fazer isso! - Exclamou Avilés.

- Nós também temos um arsenal nuclear. E mísseis de longo alcance - retrucou Hurtado. - Mantenha-se longe do botão vermelho, general; prometo que farei o mesmo.

A transmissão foi encerrada e o coronel viu-se novamente só no grande gabinete do palácio presidencial, onde até o dia anterior o general Herrero, do qual era protegido, comandava os destinos de Alamar. Agora, Herrero e seu assassino, o coronel Figuera, estavam mortos. E ele, Hurtado, era o novo senhor da pequena república centro-americana.

Se Avilés tinha o apoio dos EUA, Hurtado também podia contar com amigos poderosos. E eles já estavam a caminho.

* * *

Cercado de tropas no porto de Puerto Calamar, capital de Alamar, o coronel Hurtado fez um pronunciamento público, o primeiro desde que assumira o governo do país. Por trás dele, fundeado na baía de Buena Vista, estava o imponente porta-aviões soviético "Novorossiysk", o qual chegara algumas horas antes. Era um lembrete nada sutil aos militares de San Román e aos EUA de que Alamar não estava sozinha no mundo.

- A morte do general Herrero, este herói da liberdade de Alamar, que lutou incansavelmente contra as sanções injustas impostas pelos EUA, foi vingada - discursou Hurtado. - O traidor Figuera foi justiçado, bem como a maior parte dos que o acompanharam nesse golpe frustrado. Alamar resiste, contra as pressões do Império e de seus lacaios de San Román; e como prova da amizade eterna entre nossos povos, a URSS enviou seu maior porta-aviões, o qual está ancorado à vista de todos. Vida longa à Alamar!

O público, que se aglomerava por trás de um cordão de isolamento, aplaudiu entusiasticamente e agitou bandeirolas com as cores nacionais. Se os EUA haviam pensado em semear a discórdia no seio do povo de Alamar, pensou Hurtado ao entrar na limusine presidencial, o resultado não podia ter sido mais frustrante.

Ao desembarcar no Palácio de La Concepción, sede do governo, no centro de Puerto Alamar, o coronel foi informado de que o embaixador soviético, Gennadiy Savelievich, estava à sua espera.

- Gena! - Saudou-o alegremente Hurtado ao recebê-lo no gabinete presidencial.

- Meu caro coronel - redarguiu o embaixador.

Os dois homens trocaram um abraço cordial antes de sentarem frente à frente, Hurtado por trás da imensa mesa de mogno onde o presidente habitualmente despachava.

- Trágico revê-lo nestas circunstâncias - disse Gennadiy Savelievich. - Infelizmente, nada pudemos fazer para impedir o ataque terrorista contra o general Herrero, mas a União Soviética se faz presente através de sua marinha de guerra.

- E eu não poderia estar mais agradecido pela sua pronta resposta ao nosso pedido de ajuda - replicou Hurtado. - Sabemos do interesse dos EUA em subjugar Alamar e destruir nosso arsenal atômico, mesmo correndo o risco de iniciar a III Guerra Mundial aqui, na América Central.

- Os EUA não teriam se arriscado tanto se não estivessem desesperados e contassem com o apoio dos romanenhos - avaliou o embaixador. - É provável que estejam em poder de alguma informação estratégica a qual nós, seus aliados tradicionais, não possuímos.

O comentário havia sido feito num tom relaxado, mas Hurtado sentiu que o embaixador o estava pressionando. E que a presença do porta-aviões soviético nas águas territoriais de Alamar não era apenas para protegê-los das ameaças imperialistas.

Hurtado sabia que estava caminhando sobre uma corda bamba, e que abaixo dele havia apenas o vazio. Precisava pensar cuidadosamente antes de dar o próximo passo.

- [17-09-2020]