Trem da Morte V - Mate-Coca
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La Paz nos recepcionou da mesma forma que as cidades anteriores, com os mesmos caçadores mirins de hóspedes, mas agora com alguns marmanjos nos achacavam também descaradamente, brigando com los niños, dando-lhes tapas e empurrões. O dia estava frio, claro e ensolarado, de céu anil fortíssimo e límpido como é nas grandes altitudes.
O jovem ajudante do bus, caminhando como um trapezista pelas malas e sacos no bagageiro no teto do veículo, apontava para nossas malas perguntando: - és esta? Depois jogava-as uma a uma ao chão para as pegarmos. Demos-lhe uma boa gorjeta. Foi incrível a viagem.
Queríamos nos hospedar no centro da cidade e indo para lá encontramos pelo caminho em praças e ruas, vários carrinhos de hamburguesas, o prato nacional deles e alguns quioscos de mate-coca a bebida contra o "mal das alturas". Era o Food Truck da época. Estávamos a 3.600m acima do nível do mar e viemos a saber do seu uso para o problema de altitude.
A cidade era bem mais arborizada e movimentada, mas suja. Suas construções, de arquitetura europeia e ibérica eram antigas, do início do século passado. O povo era mesclado, mas de tipo físico andino, claro. Tinha índios, cholas e bolivianos com vestimentas como as nossas. Viam-se poucos brancos e os que surgiam eram estrangeiros como nós.
Uma cena que corriqueiramente víamos e nos espantava, era a de carregadores índios, com cargas enormes nas costas. Usavam cintas de couro passadas pela testa para segurar volumes maiores do que eles, às vezes, o dobro ou o triplo do tamanho. Eram baixos e magros; tinham faces curtidíssimas pelo sol, com riscos fundos; vestiam bermudas esfarrapadas, sandálias de pneus e gorros. Caminhavam rápido, alguns até corriam, subindo e descendo as ruas rampeadas, porque a cidade fica assentada dentro de um vulcão extinto, com as casas mais pobres construídas nas paredes íngremes e rochosas da cordilheira. Uma visão inesquecível! Apesar da pouca roupa, não sentiam frio. Pareciam formigas. Incrível!
Ficaríamos na cidade por dois dias no máximo, para depois subirmos ao altiplano boliviano à 3.800m de altitude, em direção a Cuzco e Machu Pichu, o ponto final da nossa aventura maravilhosamente vivenciada. Veríamos também o famoso lago Titicaca no caminho.
A noite se iniciava, conseguimos um hotel razoável perto do centro. Estávamos cansados, um bom banho e cama era novamente a nossa primeira vontade. Não iríamos jantar, pois comêramos durante a viagem. O sono seria o nosso alimento.
Dormíamos no mesmo quarto eu, Cesinha, seu irmão Niltinho e Pedro "porra", que roncavam pesadamente. Acordei no meio da noite para ir ao baño, este agora no dormitório, mas minha cabeça parecia sustentar um sino de toneladas, que ressoava a qualquer barulho como um amplificador de som. Com dificuldade tentei levantar, não deu, arrastei-me a muito custo até o banheiro e sentei no vaso como um peso morto. A cabeça pulsava e eu ouvia os sons do meu coração acelerado. Estava com o mal das alturas. Pela manhã fui capengante, apoiado em Pedro, para tomar café. O garçom ao ver o meu estado, nos falou:
- Tienes que beber mate-coca para pasar el mal de altura!
- Si? E onde posso conseguir? Tenies aqui? - pergunto.
- En las calles hay quioscos donde puedes tomar mate-coca - diz.
- Ah si, los vi ontem! E no vai dar loucura? - pergunto em "portunhol".
- No, no hace nada, mejorará mucho y mañana será bueno.
- Outra cosa, vi unos índios carregando mucho peso nas sus costas e com poca roupa. No sentem frio? - pergunto em parafraseando "Chacrinha", o velho guerreiro: "de quem não se comunica, se trumbica".
- Sí, son muy fuertes y mastican hojas de coca con cenizas para amortiguar el frío. Es de nuestra cultura!
Saimos para uma volta na cidade e em um quiosco próximo ao hotel pedi o mate-coca. O rapaz pegou algumas folhas secas de coca e colocou em uma xícara, vertendo água fervente sobre elas. Fiquei esperando alguns minutos. Passou-me o chá que bebi devagar. Cheirava bem e tinha gosto adocicado, parecido com erva cidreira. A dose era forte e grande, tomei-a toda.
- Estará bien pronto! - diz ele, deduzindo o meu mal pela palidez e "cara" de sofrimento. Devia ser comum os "gringos" passarem mal àquela altitude.
-Vou tomar um "pra" ver se dá "barato" - diz Cesinha animado.
- Eu também - emenda seu irmão.
- "Num vo toma essa porra, não"! - o falar impagável de sempre do Pedrinho...
Voltamos a caminhar e o resto do grupo andou a nossa frente até o mercado central da cidade. Era sábado, dia de feira, encontraríamos de tudo do costume e da cultura boliviana. Eu melhorava e já voltava a minha habitual disposição. Cesinha e Niltinho riam à toa. Pedrinho fumava seu cigarrinho de palha, bem fedido, que trouxera de Taquaritinga.
Chegamos ao "mercado", um local cheio de barracas ao longo de uma rua aberta, ou seja, nada de mercado, e sim uma feira ao ar livre como as nossas. Havia de tudo mesmo, galinha; porco; lhamas que cospem nas pessoas; frutas; batatas de todos os tipos, tamanhos e cores; comidas, as famosas hamburguesas, a chicha; até enfeites e quadros cuzqueños, falsificados, é claro. Havia também artefatos em prata, da famosa prata dos Andes, cobiçada pelos espanhóis, que se apoderaram dela em grandes quantidades, na época da colonização.
O pessoal do hotel nos disse para cuidarmos das nossas bolsas e mochilas no mercado, pois os garotos, los niños, poderiam passar por nós na multidão, rasgá-las com giletes e roubar nossos pertences. Cuidamos bem delas, mas uma das bolsas das meninas ficou marcada pela tentativa, mas por ser de couro grosso, não conseguiram rasgá-la. Sorte!
Na feira compramos, para o frio, malhas e gorros de alpaca com os desenhos andinos típicos. Pedrinho comprou um gorro e não o tirou mais da cabeça, substituindo o seu, até então insubstituível boné. As meninas gostaram das bolsas de panos coloridíssimas. Eu comprei uma tigela pequena de prata, toda trabalhada, para minha mãe e para minha irmã, uma pulseira com uma série de penduricalhos imitando a Porta do Sol, lhamas e outros símbolos bolivianos.
Voltando para o hotel passamos por uma chola vendendo folhas de coca, estava sentada, de chapéu coco e vestimenta típica. Comprei um pouco para fazer o "chá da altitude" no hotel. Cesinha e Niltinho também compraram.
- Quem sabe fazendo um chá bem forte dá "barato" - fala Niltinho.
-"Si usseis ficarem doidão, eu marro usseis na cama e fumo o meu cigarrin fedido. Porra! "
- Nada! Dá barato, não! Só anima um pouquinho mais a gente, ô Pedrinho Porra! - brinca Cesinha.
No hotel, preparamos o chá. Cesinha e Niltinho riam sem parar de qualquer bobagem. E Pedrinho de gorro novo e "cigarrin de paia fedido", fumava. Uma cena impagável!
A viagem seguiria ainda com novas historias, mas agora com as folhas de coca para o chá das alturas ,e quem sabe, venha a "dar barato" nos dois irmãos!
Cusco nos esperava!
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