Trem da Morte Parte IV - Papas e Paceña

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Cochabamba era uma cidade um pouco mais civilizada do que Santa Cruz de La Sierra, mais arborizada e mais bonita. O frio andino do seu clima temperado nos recebeu na descida do ônibus. Chegamos no início da noite e como sempre, vários meninos aliciadores de hóspedes dos hotéis simples da região nos pegaram pelo braço para que fossemos com eles. Vinham em enxames, como abelhas.

Reunimo-nos em uma roda, com as mochilas ao centro, em praça próxima a la estácion de bus e combinamos que dois iriam ver os hotéis próximos, para somente depois optarmos por um. A maioria dos moleques bolivianos estava ao nosso redor, aguardando ansiosa a nossa decisão. Desta vez, foram destacados Niltinho e Pedro "Porra" para verificar as condições da hospedagem. Os niños bolivianoscom roupas coloridas e puídas, sandálias de pneus, rostos redondos, olhos puxados, cabelos lisos pretíssimos e dentes careados, os acompanhavam na busca. Era cômica a visão da multidão dos pequenos ao redor dos dois. Aguardamos com frio e fome, pois demoraram mais de hora para definir o melhor dentre todos: perto, limpo, arrumadinho e de bom preço.

Ao chegarmos ao hotel fomos para um bom banho. A cozinha já estava fechando, mas por sermos um grupo grande conseguimos que o jantar nos fosse servido. Para nossa surpresa, vieram las famosas hamburguesas, mas desta vez no prato com papas fritas. Ficamos achando ser o prato nacional deles. Em contrapartida, tomamos uma cerveja de nome Paceña. Maravilhosa!

- Mui buena la cerveja! - falo para o dono do hotel.

- Sí, es muy buena, hecho por alemanes que huyeran de la guerra. Hay muchos nazis en Bolivia- responde.

- Da "porra" essa "breja"! - completa Pedrinho.

- "Las hamburguesas são buenas, mas com papas fritas, bueníssimas!" -fala Cesinha em seu arranhado "portunhol", fazendo-nos rir junto com o proprietário do local.

- Sabía que tenemos más de diez tipos de papas aquí en Bolivia? Su origen es de los Andes - continuou o dono do hotel.

- Verdade? Eu não sabia! - pergunta Cesinha meio incrédulo, voltando-se para mim. - Esse "cara de lua" está nos gozando. Cerveja de nazista e origem das papas aqui. Nem a pau! - completa.

Comentamos com o dono do hotel a nossa intenção de ir até La Paz de táxi. Aconselhou-nos o ônibus, porque a subida da cordilheira de táxi, além de difícil e lenta para os taxistas, ficaria muito cara para nós. No dia seguinte, fomos novamente a la estación que era muito semelhante à anterior.

Compramos los boletos e praticamente lotamos o ônibus que já estava parado a nossa frente. Ficamos preocupados porque tratava-se de uma velharia o nosso bus, provavelmente dos anos de 1950. Era um Mercedes Bens pequeno, "cara comprida", traseira arredondada, motor na frente e bagageiro externo em todo o teto.

- "Porra, que merrda de jardineira qui nóis vai!" - comenta rasamente Pedro "Porra".

Antes de embarcarmos, veio um garoto de uns dez a doze anos, no máximo, subiu no bagageiro para receber as bagagens jogadas pelo motorista e ali arranjá-las, amarrando-as firme com cordas. Depois, cobriu-as com uma lona preta para não molharem, caso chovesse. Nada de tickets de controle. Era tudo feito na típica improvisação sem cerimônia dos bolivianos.

Subimos no "busito", ocupando quase sessenta por cento dos bancos, com alguns poucos índios e cholas nos demais assentos. Não levavam seus sacos e animais desta vez, como no trem da morte, para nosso alívio.

Partimos para a subida da cordilheira até o altiplano boliviano e depois descermos para a cratera vulcânica em que fica a capital do país, a 3.600m de altitude. Seria um trajeto de cerca de 400 km, com 8horas de duração, aproximadamente, contando com as paradas do ônibus. A estrada era sinuosa, de leito pedregoso e o bus duro como uma carroça. Mas nada tirava o nosso ímpeto e a nossa alegria. Seguimos tocando e cantando nossas músicas, alegrando a todos. O moleque ajudante ia em pé ao lado do motorista e nos assistia encantado sorrindo.

Para fazer as curvas, o veículo quase encostava no barranco e quando vinha algum carro da direção contrária, ele parava para que o em descida a fizesse. Em alguns trechos, víamos os precipícios de mais 500, 1.000 m de profundidade e segundo soubemos depois, quedas de veículos não eram raras. Poderíamos dizer que havia também a estrada da morte na Bolívia.

Em dado momento, o garoto das bagagens veio até o fim do veículo e pediu licença para mim que estava no último banco. Levantei. Ele passou por mim, saiu pela janela com o ônibus em movimento e subiu no bagageiro. Olhei para cima com a cabeça por fora e o vi andando por cima das bagagens lépido e ágil como um gato. Soltava algumas cordas para tirar o plástico que as cobria, para provavelmente pegar alguma mala. Que loucura!

Paramos, então, em um local árido, seco e frio em que havia alguns prédios com bares e restaurantes de beira de estrada. Os bolivianos sentados na frente do bus desceram. Um deles veio até a roda traseira do carro e começou a urinar, virado para a janela, justamente abaixo do local em que estavam sentadas duas das nossas meninas. Elas começaram a rir e ele também. As risadas e as gozações foram grandes e começamos a chamá-lo de "lo mijão". Ele, sem qualquer cerimônia, sorria para nós. Era tudo uma enorme brincadeira.

Descemos também e vimos o garoto jogando, do alto do teto do ônibus, sacos e malas de papelão para uns casais de índios que desembarcariam ali. Realmente, tudo o que acontecia, nessa nossa aventura juvenil, parecia-nos coisa de outro mundo. Tudo foi inesperadamente inesquecível.

Seguimos viagem subindo a majestosa serra. Na paisagem árida e pedregosa apareciam algumas construções típicas em pedra e tetos de palha. Ao passarmos, crianças com roupas velhas e esburacadas, nos acenavam. Suas mães cholas nos sorriam, com seus filhos bebês amarrados às costas. Algumas culturas de batata e milho podiam ser vistas e as famosas lhamas e alpacas, animais característicos dos Andes, começavam a aparecer.

La Paz aparecia agora na paisagem, rodeando a cratera do vulcão extinto, tendo ao fundo alguns picos de rochas vulcânicas cobertos de gelo reluzente. Uma bela vista! Mais um trecho cumprido de nossa odisseia andina a caminho de Machu Picchu, através de um país de costumes arraigados e mantidos por gerações. E sabíamos agora ser o berço da batata. Interessantíssimo!

Hoje, pesquisei na Wikipédia sobre a origem da batata e da cerveja Paceña e obtive o que segue:

- A história da batata começa quando este tubérculo foi cultivado pela primeira vez nos Andes, na América do Sul. É imprecisa a data do primeiro cultivo, pois, os vestígios orgânicos são mal preservados no registro arqueológico. Os vestígios mais antigos conhecidos datam de 8 000 a.C. e são oriundos do Peru, mas é provável que já tivesse sido cultivada antes disso. Seu cultivo abarcou vasta área da atual Venezuela aos atuais Chile e Argentina.

- A Paceña é produzida pela Cervecería Boliviana Nacional. Em 1886, um grupo de empreendedores alemães fundaram a Cervecería Boliviana Nacional, empresa que em 1920, se converteria em Sociedade Anônima. É fabricada em La Paz, capital administrativa da Bolívia, a mais de 3600 metros sobre o nível do mar, com água purificada da Cordilheira dos Andes, esta cerveja com 4,8% de teor alcoólico é a mais consumida no país, com 98% do mercado boliviano.

Estava certo o boliviano, dono do hotel, com cara de lua, sobre a origem das papas, mas sobre sera cerveja Paceña feita por nazistas, nem tanto.

La paz nos aguardava.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 10/09/2020
Código do texto: T7059486
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