Trem da Morte - Parte III - “Pedro Porra”

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Nossa chegada à Santa Cruz de La Sierra foi atabalhoada. Nossas moças estavam atemorizadas e com razão, pois ficaram sem ir ao banheiro durante mais de 20hs, desde Puerto Suarez. Assim que chegaram correram ao primeiro hotel ao qual os meninos bolivianos, caçadores de turistas, as levaram. Tivemos que ir até lá para tirá-las da espelunca. Depois, caminhamos todos juntos ao centro da cidade para encontrar alojamento melhor e fugir da área ferroviária, que era péssima

Éramos um grupo de adolescentes alegres, com roupas, falas e costumes diferenciados, quase uns extraterrestres para os bolivianos. Eles, com suas vestimentas típicas, nos olhavam com curiosidade, pois naquela época e região turistas eram raros.

A cidade era plana, com poucas ou nenhuma árvore. As casas eram em alvenaria, de paredes grossas, sem aberturas externas, amuralhadas, junto à calçada, em sua maioria caiadas de branco com enormes portões de entrada em madeira maciça entalhadas, típicas da arquitetura espanhola.

Algumas das casas cobriam as calçadas como galerias, para fazer sombra, pela total falta de vegetação. Influência herdada dos árabes que invadiram a Península Ibérica e ali permaneceram por séculos, transferindo muitos dos seus costumes culturais para os espanhóis que depois colonizaram esta região da América do Sul.

Era cerca de meio-dia, pois chegáramos pela manhã, cansados, famintos e sujos após a longa viagem no Trem da Morte. Estava quente mesmo em pleno inverno.

Chegamos a uma enorme praça bem cuidada, com algumas árvores e bancos de concreto, nos quais nos "largamos" exaustos. Não dormimos quase nada no teto do trem, mas valera a pena e agora um banho e uma cama era tudo o que queríamos.

Na praça, havia um carrinho de comida com vários bifes à milanesa empilhados de um lado, e do outro, uma pilha de ovos fritos. Cheirava deliciosamente bem. Fui até lá com a boca salivando, pois, depois de ter tomado a chicha da chola que lavava os copos em uma bacia com água misturada com restos da bebida, aquilo era um banquete, literalmente.

- Buenos Dias, Senhor! - falo, no meu "portunhol" de sempre.

- Buenos dias! Quieres uno? - responde olhando-me, parecendo saber da minha fome.

- Sim, por favor. O que és?

- Hamburguesas.

- Hamburguesas? - replico curioso. Porque hamburguesa para nós é com hambúrguer e não com bife à milanesa e ovo. Mas, estávamos na Bolívia e tudo ali era de "outro mundo".

Ele pega um pão redondo amarelado, que parecia feito de milho, retira das pilhas um bife e um ovo, coloca dentro e me passa o sanduíche seco.

Pego e mordo, com ansiedade, para matar a minha fome. Era delicioso, pois o bife estava temperadíssimo e picante, mas o sabor era amenizado pelo pão e pelo ovo, em uma combinação perfeita. Devorei-o em segundos e pedi outro.

- Yo no dijo que la hamburguesa era muy buena? - diz o vendedor.

O resto do grupo veio ver o que eu comia e ao dizer-lhes que era gostoso, comeram também avidamente os sanduíches, menos as moças, que tinham nojo de tudo o que era de rua. O dono do carrinho ficou radiante. Praticamente acabáramos com eles, ganhara o dia conosco.

Satisfeitos, voltamos para a praça em busca de um hotel. As meninas já haviam se hospedado em uma pousada próxima dali. Mas como era cara, pegamos dois quartos em outro local, perto também, em que o banheiro era coletivo e o chuveiro elétrico. Fizemos uma enorme fila, brincando com cada um que entrava ou saia. Tomamos nosso banho e, cama. Dormimos a noite toda, mesmo com nossos gases e o colega que roncava como um porco. Éramos jovens e nada nos incomodava...

Nossa programação do dia seguinte era ir até Cochabamba, no meio do caminho até La Paz. Tomamos café e fomos nos encontrar com as meninas, em seu hotel chique. Elas estavam à mesa e chegamos todos juntos, assustando os demais hóspedes, pois erámos tantos que parecia uma invasão. Sentamo-nos com elas e começamos a conversar:

- Dormiram bem, meninas? - pergunto.

- Sim, como anjos, depois de um banho quente e de um jantar maravilhoso. A comida é ótima. Tivemos um sono pesado, gostoso e estamos prontas para mais uma etapa da nossa aventura - responde Arlete com o assentimento das outras duas.

Definimos nosso roteiro até La Paz, a capital boliviana, situada a mais de 3.000m acima do nível do mar. Passaríamos por Cochabamba, distante 500 km e a 2.500m de altitude, para subirmos gradativamente a cordilheira e aclimatar o nosso organismo a essa mudança brutal de altitude.

- De trem, nem pensar! - falaram as meninas em uníssono. Rimos todos, entendendo o motivo.

- Podemos ir de ônibus, é perto. O que acham? - pergunto.

- Melhor! De trem nunca mais! -responde Arlete como a porta-voz das garotas.

Fizemos nossa assembleia de grupo.

- "Porra, vamo de quarrque jeito, porra! " - diz Pedro, apelidado por nós de Pedro "Porra", porque sempre usava essa palavra em qualquer frase que dissesse. Era baixo, magro, cara "chupada" com um buço já passando a bigode ralo, olhos e cabelos pretos, fala típica de caipira de Taquaritinga, interior de São Paulo, arrastando os erres e claro, com muitos palavrões. Ah, e sempre de boné. Esse era o nosso querido Pedro "Porra".

Fomos comprar a nossa ida até Cochabamba. La Estación de Bus não era nada mais do que a loja de venda de passagens da empresa de transportes. Era pequena e só nós e nossas bagagens já lotaram o local. O bus sairia pelas 11 horas e deveríamos esperar até lá. Para passar o tempo começamos a improvisar uma banda de jazz. O irmão do Cesinha, o Niltinho, que tocava bateria, aboletou-se no balcão e começou a batida, alguns de nós o seguiram imitando, com a boca, os sons dos outros instrumentos. Saiu um som até legal. Nosso show começou a provocar o ajuntamento de bolivianos em frente à estación, o que nos animou mais ainda. Eles sorriam e aprovavam a nossa performance, fazendo com que prolongássemos nossa apresentação até a chegada do nosso bus. A plateia nos aplaudiu efusivamente ao final.

O bus chegou e para o nosso espanto era um belo ônibus brasileiro, quase novo. Não era um daqueles antigos que vimos circular pela cidade e que esperávamos.

- " Eita, porra de ônibus bão, né? " - comenta nosso impagável Pedro "Porra".

Fora o nosso grupo, que praticamente lotou o bus, alguns bolivianos e um senhor com três moças, aparentando serem da nossa idade, subiram no carro e sentaram-se nos primeiros bancos da frente. Por suas fisionomias, roupas e trejeitos, deduzimos serem estrangeiros. Não conseguimos ouvir seu idioma.

- São bonitas elas, hein? - se assanha Cesinha.

-"Bunita" pra "daná", "porra" - diz Pedro.

Iniciamos o trajeto e fazia um dia anil de inverno, limpo, ensolarado e quente. Iríamos subir a cordilheira, que aparecia no horizonte, imponente a nossa frente.

A paisagem começou a mudar um pouco, passando de solo muito árido, seco, arenoso com a vegetação rasteira de arbustos, para um pouco mais arborizada. O caminho era muito interessante porque subíamos suavemente o sopé dos Andes com seus riachos de águas cristalinas e leito pedregoso. A partir de mais ou menos 700m de altitude, uma vegetação mais densa tomava conta da estrada, mas árida ainda e mais pedregosa. A cordilheira nos abraçava de todos os lados, com seus picos brancos como algodão. A alta temperatura abrandava e a viagem seguia calma. Poucos carros cruzavam conosco pelo leito duro de pedregulho batido. A poeira predominava em nosso horizonte.

Já dentro do ônibus, mas animados com o sucesso anterior do show na estación, Niltinho começa a batucar e a banda de boca inicia novamente o seu improviso, mas agora com cantorias de músicas engraçadas, com muitos palavrões. Uma delas era um solo do Pedro "Porra", com uma letra de música caipira engraçadíssima, que falava sobre um casal de canarinhos namorando ao final do dia, quando vem um gavião e leva a sua namorada, provocando choro no canário. Dizia mais ou menos assim:

Foi no morrer do dia, quando vi com alegria dois canarinhos cantar

Com bicadas de ternura o casal trocava juras de eternamente se amar

De repente da "gaiada" surgiu gavião "marvado" e a canarinha levou

O canário desolado voou em disparada procurando o seu amor

Dos "óios" do canarinho vi "moiado" os cantinho de chorar pelo seu bem!

O riso foi geral. O bus acompanhava a nossa apresentação, com os bolivianos batendo palmas alegremente.

Seguimos assim até a primeira parada, em que havia baños. As nossas meninas ficaram maravilhadas, pois ir ao banheiro na Bolívia virara trauma. Mas eles não eram nada limpos. Ao voltarmos, eu, Pedro e Niltinho, vimos Cesinha conversando animadamente com o senhor e as três meninas.

- Brasileiros, porra? - nos interroga o caipira de Taquaritinga.

- Pois é! Devem estar horrorizados com as nossas músicas - completa Niltinho.

- Ainda mais com aquelas bem "pesadas", mas fazer o que? Já foi, vamos lá! - falo.

Caminhamos até eles, meio sem jeito, e ao chegarmos o senhor nos diz, com as meninas sorrindo para nós:

- Que banda boa vocês têm! E as músicas então, adorei a do canarinho! - diz ele sarcasticamente.

Subimos no ônibus e a viagem seguiu, mas não cantamos mais as letras "pesadas". Pedro "Porra" reduziu o seu vocabulário de palavrões e xingos, mas ás vezes escapava um "porra ou um pqp". Dizia ele que a boca falava sem pensar, não tinha jeito. Ficamos amigos das meninas que estavam viajando com o pai, Abreu. E nesse encontro Cesinha conheceu a Norma, uma das filhas do senhor Abreu, vindo a casar com ela posteriormente. Se não fosse nossa banda boca suja e o canarinho do Pedro "Porra", talvez, não teria conhecido? Será?

E a aventura seguia.

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 10/09/2020
Código do texto: T7059484
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