Trem da Morte - Parte II

224

O trem iniciava o seu movimento lentamente. Ouvia-se o forte ruído metálico das rodas girando, o atrito com os trilhos, o som do seu "tum-tuntum" característico, o crescer da velocidade até a cadência dessa melodia se tornar um embalo. Era bom andar de trem. Eu gostava!

Fiquei de pé nos degraus da escada de acesso ao vagão, no local do seu engate, admirando, a minha frente, a forte aridez da paisagem seca e descolorida do serrado boliviano. Mesmo sendo inverno, fazia sol e calor. A baixa velocidade do trem, de entre 40 a 50 Km/h, nos fazia entrar em ressonância com o badalar dos sons e dos embalos do vagão. Fato que provocava sonolência em alguns de nós. Empacotados como sardinhas em lata naquele quadrado mínimo, alguns deitavam em suas mochilas e cochilavam. Nossa aventura começara.

Logo no início da viagem, vi alguns bolivianos subirem no teto dos vagões. Na próxima parada subiria também, porque, no final das contas, era o maior motivo da viagem: descobrir a verdade sobre o apelido desse trem.

Nossas três mulheres, uma delas a "menino querida", seguiam sentadas lado a lado no rígido banco de madeira do vagão de passageiros. Destoavam muito, com suas bolsas e malas, das cholas bolivianas - como eram chamadas as mulheres indígenas locais. Estas olhavam-nas curiosas, com cochichos animados em sua ininteligível língua milenar, o quíchua. Eram para elas como bichos de outro planeta e vice-versa.

O trem viajou vagarosamente por algumas horas e parou no meio de um ajuntamento de casebres. E ainda em movimento foi rodeado por uma multidão. Várias cholas subiram para vender de tudo: empanadas, bebidas (lembro-me da Coca Cola deles, a Inca Cola), cigarros, chocolates. Era como em um mercado. As mercadorias eram anunciadas na língua nativa, aos berros.

Curioso, desci do trem e fui ver o que acontecia ao redor. Logo a minha frente havia uma nativa com duas bacias, a primeira continha uma água amarelada parecendo um suco de milho e a outra, vários copos afundados em água normal. Ela pegava o copo da bacia com água, enxaguava, pegava com ele o suco amarelo, entregava às pessoas, depois tornava a emborcar o mesmo copo na água e assim sucessivamente. Interessei-me, mesmo vendo a total falta de higiene, e fui até ela, perguntando:

- O que és?

- Chicha.

- Do que és feita - perguntei em "portunhol". Ela sorriu com seus dentes pontiagudos e percebi que os da frente eram dourados.

- Está hecho de maíz fermentado. Es muy bueno para la salud! - respondeu sorrindo os dois dentões de coelho reluzentes em amarelo.

- Uno, por favor? - pedi.

Ela pegou um dos copos de vidro sujos, enxaguou e enfiou na chicha. Ao provar senti o gosto azedo de milho fermentado, mas era agradável. Gostei da bebida e tomei dois copos.

Segui esperando o trem apitar para retomar a viagem. Vi várias pessoas ao ar livre, sentadas e em pé em cima do teto dos vagões, principalmente nos de carga.

- Vou subir agora e confirmar se é mesmo o Trem da Morte! - penso comigo.

Caminhei em direção ao nosso grupo e me deparei com mais uma cena inimaginável: um boliviano urinando nas rodas do vagão da frente, virado para as janelas, sem a menor cerimônia. Não havia banheiros!

Vi também uma chola agachar, ficar por um tempo e ao levantar, deixar uma mancha molhada no terreno arenoso. É a cultura e o costume local. Soube depois que elas usam inúmeras saias, umas sobre as outras e que se limpam com elas. Seu costume e sua cultura. Inacreditável!

Chegando próximo ao nosso grupo, encontro-os em uma rodinha rindo do jeito do boliviano urinar.

- Viu que loucura. Eles "mijam" sem a menor vergonha, na frente de qualquer um. Se bobear até te molham. - fala rindo Cesinha.

- E as meninas, como estão? Devem estar "loucas" para irem ao banheiro, não? - pergunto.

- Elas não levantam do banco para não perder o lugar. Acho que irão até lá no "seco" - fala o Niltinho, irmão do Cesinha.

- Vamos ver como é viajar no teto e se é da morte mesmo? - pergunto ao pessoal. - Estamos mal-ajeitados naquele cubículo entre os vagões. Lá, pelo menos, teremos espaço e ar puro - continuo sugerindo para o grupo.

Três concordaram. Pegamos nossas tralhas e avisamos ao resto do grupo. Subimos. Tivemos que trepar pelo encurvado da frente do segundo vagão de passageiros, o que complicava um pouco o acesso, mas conseguimos.

Ao ficarmos de pé sobre o teto, vimos um tablado estreito de madeira, no centro dos vagões e ao longo de toda a composição, permitindo um caminhar mais fácil. Fomos andando por ele. Os primeiros vagões estavam todos ocupados. Havia pessoas sentadas na transversal ao eixo dos vagões, apoiando os pés nas bordas metálicas na altura que tinham nas extremidades. Descobrimos também que as cordas amaradas na passarela de madeira eram para o viajante se amarrar para não cair, caso dormisse. Parecia mais uma loucura boliviana. Ajeitamo-nos, no antepenúltimo vagão de carga, quase no final da composição, local em que havia pouquíssimas pessoas.

Tranquilo, o trem retomou o seu curso. Podíamos observar a bonita paisagem em todas as direções. Era árida ainda. O trecho seria todo plano, sem túneis, somente algumas pontes que não poderiam nos derrubar.

O dia começava a "morrer" e a noite, de céu escuro e reluzente de estrelas maravilhosamente nítidas, prenunciava frio. O frio que "caiu" junto, obrigou-nos a colocar casacos e a desembrulhar nossos sacos de dormir, que amarramos às tabuas para não cairmos também. Em dado momento, escutamos:

- Boletos. Boletos, por favor! Era o picotador de passagens junto com um guarda, pedindo-nos as passagens. Vinham caminhando pela tábua. Caso não tivéssemos, teríamos que descer na próxima estação ou comprar naquele momento. Mais uma cena inesquecível.

- Incrível, não? - diz Cesinha, animado e atônito com tudo o que vira até aquele momento.

Seguimos por cerca de 14 horas ali no teto do vagão, ao ar livre, até chegarmos a Santa Cruz de La Sierra, seu ponto final. Dormimos um pouco, mas era impossível relaxar pelo desconforto e medo de sermos mais um na estatística de morte no trem.

As meninas passaram a viagem toda sem irem ao banheiro e ao chegarmos correram alucinadamente a ele. Uma cena incrível, também

Conferimos que o trem era uma coisa de outro mundo e que a morte caminhava junto a ele, no seu teto. Soubemos depois, que naquele ano ainda, um brasileiro caíra e morrera. Valeu a aventura, a experiência de vida e o contato com essa cultura de costumes milenares e diferentes.

Hoje, reencontrei a Carmen, no Face book, a "filhinha querido" e que mora em Israel, que me fez reavivar esta inesquecível viagem da nossa juventude, realizada há quarenta e sete anos. Pesquisei também, se realmente o nome do trem se devia às quedas das pessoas do teto. Mas obtive na Wikipédia: Trem da morte é um trem da Bolívia que percorre a estrada de ferro entre as cidades de Puerto Suarez e Santa Cruz de la Sierra. É conhecido como o Trem da Morte por causa de uma epidemia de malária que ocorreu durante a construção da ferrovia e matou milhares de trabalhadores bolivianos. E a viagem seguiria até Machu Pichu, já tendo conhecido o famoso Trem de la Muerte!

https://blog-do-cera.webnode.com/

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 10/09/2020
Código do texto: T7059481
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.