Trem da Morte - Parte I

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Era o ano de 1973. Pela manhã eu cursava o 3º colegial no Colégio Nuno de Andrade - uma escola fraca que hoje não existe mais. À tarde fazia um cursinho para engenharia e lá ouvi falar sobre o "Trem da Morte", na Bolívia. Curioso e aventureiro resolvi saber como era e por que tinha esse nome. Iria viajar por ele, claro!

Conversei sobre essa viagem na Bolívia com o meu colega e amigo Cesar, do Nuno de Andrade, que se entusiasmou e convidou também o seu irmão.

Eu planejara viajar por esse trem até Machu Pichu no Peru. Definimos executá-la nas férias colegiais de inverno, no meio do ano, mas esquecemos que fazia frio por lá, ainda mais acima de 3.000m de altura.

O irmão do Cesar falou com um primo, que falou com a irmã, que falou com a amiga, que falou com o amigo, uma cadeia até formar o grupo de 13 pessoas, sendo 3 mulheres. Uma tropa! Fiquei impressionado pelo interesse, pois a viagem nada tinha de confortável, ainda mais para as mulheres.

O roteiro incluía as idas de trem para Bauru, depois até Corumbá, na divisa com a Bolívia, para então embarcarmos no Trem da Morte, pois era de lá que partia.

Naquela época havia ainda trens de passageiros aqui no Brasil, como o Trem Húngaro para o Rio de Janeiro, que partia de São Paulo na sexta-feira à noite, chegava ao Rio pela manhã e voltava no domingo. Era um programa de fim de semana que muitos faziam. Outros tempos!

No dia do início da viagem, estávamos em uma caravana de carros para ir até a Estação de Trem Júlio Prestes - hoje Sala São Paulo - e de lá para Bauru. Mas tínhamos que pegar uma das meninas antes, a Carmen. A encontramos desesperada, no portão de sua casa, dizendo que seu pai não a deixava ir. Pediu-nos que falássemos com ele. Fomos os 12 tentar convence-lo. Era um senhor alto, moreno, de cara fechada e sotaque arrastado.

-"Minha filha non vai viajar non com deiz homens, dijeito ninhum! " - fala de chofre e direto. Sua mulher ao seu lado de olhos arregalados ouvia quieta.

Coube às duas moças do grupo conversarem com ele e ajudadas pela mãe, conseguiram que ela fosse, mas com a condição de que elas cuidariam "do seu filhinha querido "

Após resolvido esse impasse, fomos para a estação pegar o trem que partiria às 12 horas.

Ao chegar, tomamos conta de um vagão inteiro, estava praticamente vazio. A viagem até Bauru durou cerca de 10 horas. Pitoresca! Lembro-me das paisagens que víamos pelas janelas do trem, havia plantações, criações, tudo muito verde, cultivado e cuidado. Era uma tarde de inverno ensolarada, com suas cores avivadas pela luz do sol, peculiar dessa estação do ano A visão era tranquila e pacata. Estávamos felizes.

Chegamos a Bauru à noite e fomos para um hotelzinho à beira da estação, um "pulgueiro". No dia seguinte pegamos o outro trem para Corumbá e chegamos cansados, tarde da noite também.

Na estação ferroviária de Corumbá, fomos assediados por vários moleques que queriam que fôssemos para os seus hotéis. Simpatizei com um esperto, vivaz e bastante querido. Adolescentes que éramos, fizemos uma roda com os meninos vendedores no centro e votamos para qual iríamos, pois todos eles nos garantiam ótima estadia de três estrelas. Fomos para o do moleque querido.

Ficamos em 3 quartos, um para as mulheres e dois para os homens, cinco em cada um. A noite foi horrorosa, com muitos pernilongos e no meu dormitório, havia um dos colegas que roncava feito um porco, incomodando todos os demais, fora os odores que expelíamos. Mas era tudo festa e estávamos ansiosos para pegar o famoso trem no dia seguinte. A aventura finalmente se iniciaria.

No café da manhã conversamos com o dono do hotelzinho, que nos disse que teríamos que ir até Puerto Suarez, já na Bolívia, de onde o trem partia.

- E como iremos? - pergunto, pois era quem coordenava a viagem, por ser o seu mentor, junto com o Cesinha, que trouxera o resto da "gangue". Ou seja, éramos os responsáveis pelos outros 11, que ficavam comodamente aguardando as opções de votação.

- Terão que ir de táxi até lá, pois o trem sai hoje à tarde e demora mais de três horas. Eu tenho quem possa levá-los. - diz, já pegando o telefone e ligando para seu amigo boliviano, deduzi, pois falava em castelhano com ele.

- Pronto, ele está vindo em dois carros e os levará até o trem.

Acertamos a conta da espelunca, pegamos nossas mochilas e aguardamos o boliviano. Vieram dois carros antigos, dois Chevrolet pretos de capota amarela, em péssimo estado, uns calhambeques.

- Buenos dias! - cumprimenta-me o do primeiro carro, que deduzi ser o chefe. Era baixo, cabelos pretos lisos, cara redonda de maçãs salientes, olhos negros puxados: um índio andino perfeito.

- Buenos dias! - respondo.

- " Tienem que pagar la carrera por adelantado! " - fala ávido, de olhinhos reluzentes, imaginando ganhar o dia com aquela corrida, pois o grupo era grande.

- Quanto és? - falo em meu portunhol. Parte do grupo está em frente ao "pulgueiro", alguns estão deitados no monte das bagagens e outros, ainda, conversavam despreocupados, aguardando.

- Ciem cruceros cada uno. Mil trescientos cruzeiros es el total! - está querendo ganhar muito esse boliviano cara de lua. Acho um roubo. Vamos propor cinquenta "por cabeça", fala Cesinha de olho arregalado.

Discutimos por um tempo até chegarmos a um valor que o grupo topou, mesmo sendo caro. Fechamos em setenta cruzeiros por pessoa, totalizando novecentos cruzeiros. Entramos nos carros. Estávamos excitados, iríamos viajar no famoso Trem da Morte.

Seguimos por uma estradinha de terra empoeirada e esburacada por mais de três horas, com um incessante ir e vir de carros. Os calhambeques até que eram confortáveis, só não andavam muito rápido.

Chegamos a uma vilazinha em que havia somente essa antiga estação férrea, era Puerto Suarez. E ali estava o nosso desconhecido de aço, ao nosso lado, nos aguardando. O movimento de pessoas era frenético, bolivianos em sua maioria. Somente nós e alguns outros estrangeiros iriam pegar o trem. Distinguíamo-nos pelos tipos físicos: altos, cabelos ruivos ou loiros portando mochilas e sacos coloridos de dormir. Estávamos na Bolívia e nem sequer passáramos por qualquer alfândega, seja brasileira ou boliviana. Uma bagunça!

-"Legamos. Buena viaje! " - diz o motorista para nós.

-" Por qué o nombre Trem de La Muerte? " - pergunto a ele.

-" Por qué la gente viaja en el techo de los carros, se cae y muere! " - respondeu ele. Fiquei mais curioso ainda, pois como podiam viajar no teto do trem? Era liberado?

Após comprar as passagens ("los boletos"), para Santa Cruz de La Sierra, que era também o final da linha, subimos no trem. Ele era composto da locomotiva, de dois vagões de passageiros e de muitos vagões de carga. Soube depois que a linha fora construída pelo Brasil e era quem a mantinha.

Entramos no primeiro vagão de passageiros e não havia nenhum lugar vago, estava completamente lotado de bolivianos com suas roupas caraterísticas. As mulheres trajavam saias rodadas coloridas, chapéu coco, cabelos em tranças até a cintura. Tinham rostos redondos riscados pelo frio e dentes pontiagudos. Um povo sofrido! Os homens usavam gorros de lhama caraterísticos, roupas puídas, calças curtas e sandálias de pneu. Havia muitas crianças, de todas as idades. Seus pertences eram levados em sacos de aniagem. Malas ou mochila não havia nenhuma. Povo pobre! No vagão iam também os seus animais, tais como: galinhas, porcos, cachorros, cabras e outros. Uma imundice! O banheiro era usado como assento. Uma loucura, coisa de cinema, uma visão inacreditável!

Por milagre, as nossas mulheres conseguiram, no segundo vagão de passageiros, um banco de madeira inteiriço. Menos mal! Nós homens, sem ter lugar definido, ficávamos sentados sobre nossas mochilas ou em pé junto às portas de acesso aos vagões.

No início da tarde, ele começou a apitar para avisar que estávamos partindo para Santa Cruz de La Sierra, à 640 km de distância, a serem percorridos em cerca de 20 horas.

Após a partida, alguns bolivianos subiram no teto, acima do vagão de passageiros, como dissera o motorista.

O início da nossa aventura no Trem da Morte estimulava as nossas expectativas.

Viajaríamos no teto para ver se a experiência faria jus ao seu apelido?

O que nos esperava ali?

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 09/09/2020
Código do texto: T7058686
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