Corrida

— Avanteeeeeee!

Sob a ordem do oficial, a tropa sai em disparada ruidosa de sua trincheira rumo à terra de ninguém.

— Urraaaaaaaaa!

Centenas de homens escalam à unha a terra dura e fria, emergindo do complexo de corredores subterrâneos para a corrida mais decisiva de suas breves vidas. Aquele é o culminar de semanas de preparações, com chegadas secretas de reforços todas as noites. O ataque surpresa à trincheira inimiga, tencionando o ganho tático de alguns milhares de quilômetros quadrados de território, viria a pôr fim ao marasmo de meses sem alteração nas linhas beligerantes.

Um jovem recruta, saltando na terceira leva rumo ao desconhecido, lança-se de cabeça ao caminho encoberto pela névoa da fria manhã de primavera. Agarrando forte o enorme e pesado fuzil ao peito retumbante, carregado de adrenalina, não pensa em nada além de correr e correr; mandar impulsos às pernas para que desenvolvam o máximo impulso e velocidade. Olhos arregalados, sente ecoar no crânio sua respiração acelerada e os gritos dos companheiros ao redor. Ouvira muito dizer que gritar dá um ânimo a mais em situações como aquela, e não demora a soltar sua garganta em brados também.

— Pa-pa-pa-pa-pa-pa-pa-pa-pa!

Ao longe, flashes de luz desabrocham, um após o outro, em linha, fazendo os gritos ao redor se tornarem autênticos urros de pânico. Imitando alguns colegas à frente, o jovem recruta faz pequenos zigue-zagues na carreira, buscando desviar dos besouros de aço que cortam os céus, zunindo sônicos em parábola mortífera.

Não tomando conta da ineficácia do seu ato, vê colegas caindo aqui e acolá, em estranhos saltos ou em repentinos tombos.

“Será que estão com medo? Estão se lançando ao chão?”

É difícil aceitar que jovens como ele estejam sendo alvejados pela mais avançada tecnologia de guerra, que os vai vitimando como moscas ou ratos. Os gritos ao redor vão rareando à medida que o som das metralhadoras inimigas forma uma salva ensurdecedora, que domina o ambiente como aplauso a cada alma que desce à mansão dos mortos.

Retorcendo a expressão, pelo medo e pelo sangue dos amigos que respinga em seus olhos e face, o recruta vai furiosamente de encontro ao solo.

“Mo-morri?”

Volta a barriga para cima, limpa a terra do rosto.

Gosto de sangue.

Apalpa todo o corpo.

Está inteiro.

Vira de novo, de bruços, apalpa as costas. Pelo visto, nenhuma perfuração. Acima de si, o tropel desesperado das hordas posteriores, aqui e ali interrompido em grunhidos e tombos surdos.

Colocando-se na desafortunada posição sobre quatro apoios, puxa a bota direita daquilo que fora o motivo de sua queda: um pedaço rasteiro de arame farpado. Desvencilhando o pé, sente o chão úmido e frio, e conclui que perdera o calçado para o pedaço de aço retorcido e comprido que o nocauteara.

Sem ter condições de tirar grandes conclusões sobre aquela pequena gota no oceano de desgraças que é sua vida no momento, o recruta põe-se de pé e recomeça a marcha desabalada. Seus braços muito livres lhe recordam que, além da bota, o fuzil ficara para trás.

Não dá para voltar. Nem pensar.

A corrida para a tomada da posição adversária agora nada mais é do que mera corrida. Corrida empregada porque fora ordenada. Porque ele é um recruta e segue ordens. Ordens que vêm de cima, numa hierarquia que seu cérebro jovem e pouco instruído não questiona. Ordens cujo seguimento é tão natural quanto respirar ou dormir.

Um pouco mais à frente, e o som das metralhadoras vai ficando individualizado. Ao redor, nenhum grito é ouvido mais. Num piscar de olhos, e está pousado no fundo da trincheira adversária, caído numa posição esdrúxula. Sem perceber, tropeçou nos sacos de terra colocados no morrete que defende a posição inimiga.

Arfando, recompõe-se num pulo, olhos e boca escancarados, voltados aos rostos estupefatos ao redor. Passado o lapso, a cena daquela trincheira vai descortinando-se: jovens soldados como ele, às dezenas, encaram-no tão espantosamente quanto ele mesmo os encara, trajados em uniformes de cor e estilo diferentes do seu. Seus rostos, brancos pela etnia, frio e medo, têm bochechas coradas pela mesma adrenalina que martela o seu peito e enrijece os nós dos dedos. O ar é tão fétido, os sons dos ratos são tão incomodantes, e o chão é tão lamacento quanto o da sua trincheira. O lugar, embora desconhecido, lhe é tão familiar que é quase como se já tivesse estado ali antes.

Elevando o olhar, encara a metralhadora, fumegante e silenciosa, calada após cumprir com seu quinhão no macabro serviço de ceifar a juventude de uma tropa inteira que lhe viera de encontro. Uma máquina suja e dura, manuseada por três garotos tão ou mais apavorados do que ele.

Não sente ódio deles. Só seguem ordens para fazer algo que não entendem nem fariam por si mesmos. Assim como ele.

À sua direita, uma voz adulta ressoa, paternal. Um homem distinto, de uns trinta anos, provavelmente um oficial, lhe diz algo que não entende. É a língua do inimigo. De sua mão direita, uma caneca esfumaçante é estendida. Entendendo a linguagem universal do gesto, aceita a gentileza, quase se queimando com o chá quente que pulula de sua mão trêmula. Apoiando-a com a outra, aquece e molha a garganta árida, sentindo o calor gostoso da bebida caindo na barriga vazia, que agradece a beberagem com um surpreso ronco.

Sensação acalentadora. Fecha os olhos. Pulsos de alívio vão acalmando a tremedeira e a respiração a cada gole.

À sua esquerda, alguém urra e aplaude, logo sendo imitado por outros. Em segundos, a trincheira eclode em alegria juvenil, com os militares inimigos admirando a façanha ímpar daquele recruta. Sozinho, ele conseguiu completar a corrida de duzentos metros até ali sem tomar um único tiro. Algo inédito!

Como era costume após ataques como aquele, bandeiras de trégua foram levantadas por ambas as partes beligerantes a fim do recolhimento dos mortos e feridos. Então, aproveitando a folga no combate, a trincheira foi animada pelo acordeão do cozinheiro e muita cantoria, com bebidas e comidas reservadas para as ocasiões festivas. Celebrando a vitória do jovem adversário que alcançou seu objetivo, todos sorriam e se abraçavam como se fossem amigos de longa data. Irmanados pela má sorte de uma guerra que não entendiam por que os recrutara, tolhendo-os da vida e da feliz juventude, concluíram, naquele dia, que não havia diferença entre eles.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 01/09/2020
Reeditado em 01/09/2020
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