Armadilhas do coração
Nas teias da caipora
Longe de ter dias tranquilos, Zé Miranda, o caçador levava uma presa a tiracolo nada convencional. Como a pegara ainda não entendeu, mas não a soltaria antes de saber quem ela era. Na verdade preocupava-se com a senhorita jogada nas matas que dormiu dentro de uma de suas armadilhas de caça embutida em meio à paisagem.
Olhou para ela e sorriu de sua braveza, seu linguajar ameríndio não era conhecido, seria uma criança perdida em algum naufrágio, ou acidente nas matas fechadas do Amazonas?
Procuraria alguém a que a entendesse depois certamente a soltaria, mas queria preservá-la de se manter em meio a feras noturnas, certamente as mais perigosas. Sobreviveu até àquele dia, mas, agora cuidaria para que chegasse ao lar de onde saiu. Na verdade as autoridades o fariam, pois ao vê-la de pequena estatura e agitada como uma adolescente daria um jeito de protegê-la.
Pegou-a tragando seus charutos, deitada folgadamente na armadilha esperando que alguém a soltasse, enganou-se a menina de corpo pintado de vermelho e orelhas pontiagudas. Suas poucas roupas eram apenas tiras que utilizava para colocar suas lanças.
Aquela sexta feira ia tranquila apesar do pequeno incidente, logo se livraria da moça que não parava de esbravejar e seguiria seu caminho.
Entre tantas reclamações ele a tratava atenciosamente, ofereceu-lhe água, comida, e sentiu que ela se acalmava. Na última parada antes de chegar a Itacoatiara onde ficava a delegacia viu a conversando com os animais como se estes a entendessem, e o pior é que percebeu a permanência deles perto de sua pequena caravana de caçador: dois cavalos, três rifles, um carro velho e a armadilha que ele puxava, iam todos no ritmo dos animais, sem pressa para cortar a mata amazonense.
Chegando à cidade da Pedra Pintada foi direto ao distrito a fim de apresentá-la, no sábado seria o Festival de Canção 2019, um dos mais belos eventos brasileiro, se alguém negar este meu encanto deverá aceitar de o ser ao menos para o norte do Brasil.
Na porta da delegacia o brasão da cidade, Caipora olha para o desenho e faz sinal de querer tocá-lo, chama por Naiá, Zé Miranda a observa e sorri.
Ele aborda um dos guardas e explica rapidamente o acontecido, este o encaminha porta adentro, em poucos minutos a curiosidade leva os plantonistas ir observar a moça vermelha, juntou-se ainda uns poucos curiosos, mas barraram a chegada de outros, era apenas uma menina perdida pensaram.
Chamado o conselho tutelar, assim que viram a situação a encaminharam para um abrigo.
Ela estava assustada, mas sentia-se segura, em poucas horas chegaria um tradutor da tribo Nicorés, acreditavam ser este o seu sotaque pela experiência em campo que tinham.
Pela cidade corria a notícia da vermelhinha, alguns a ligaram às lendas de uma menina na floresta que a protegia, mas eram apenas estórias.
Soltaram-na, tentaram cobri-la, mas não teve jeito, seu corpo ainda sem formas de mulher, mas atraente aos olhos por sua pintura exótica virou motivo de fuxico.
O jeito de andar da caipora como a chamaram assemelhava-se a de animais em momentos de caça, vagueava como as ondas e tinha os olhos negros e grandes.
Caipora estava a espreitar as pessoas, conheceu alguns caçadores com os quais negociava fumo de corda em troca de caça, proibia radicalmente abater fêmeas prenhas. Uma vez um caçador deixou um objeto que ela ainda não conhecia, talvez tenha deixado cair, mas Caipora não conseguiu devolver, pois ninguém a via e ela nem se atentava aos rostos que se embrenhavam na floresta, eram muitos e por todas as estações, da mais chuvosa a mais seca.
Em outra ocasião deixou-se ver por uma criança cujos pais deixaram longe da vista, então ela foi devagar e perguntou a pequena menina o que era aquele objeto. Diana rapidamente e sem estranhar sua aparência exótica ensinou a mexer no celular. Foram apenas vinte minutos, mas o bastante para ela começar a dominar a pequena máquina com tantas facetas. Ganhou ainda um carregador e ela ensinou-lhe a usar. Caipora sabia ler e escrever não era bobinha não. Agora iria aprender muito mais.
No face book tinha seu rostinho, todos achavam que era apenas maquiagem, tinha muitos amiguinhos. Fez também um gmail e aprendera a mandar e receber emails fazia muitas atividades em meio à sociedade que nunca conhecera. Arranjou um cantinho escondido e após fazer amizade com um garotinho conseguiu sinal de internet, não podia se distanciar muito então estabeleceu um horário e se encontrava com o Dani todos os dias, há meses que trocavam conhecimento, poucas vezes deixou de ir por conta de algum caçador que desse trabalho para espantar.
Caipora não se deixava dominar pela tecnologia, mas era uma alegria só os momentos que usavam juntos os celulares. Com o tempo aprendeu também a utilizar o computador. A vida que era agitada fica ainda mais emocionante, gostava de aprender.
Destas coisas o caçador não sabia, isso tinha como carta na manga como dizem, e iria usá-las para dar uma lição no homem da cidade.
Quando Caipora começou a conhecer o mundo pela internet descobriu o que fazem com animais e sua vontade era ir para a cidade grande e conhecer os seres humanos de perto. Aquela era a oportunidade que esperava e ia se aproveitar dela.
Duas horas e tanto depois- ela mais calma - chega Maniquê o índio que traduziria para o delegado. Esperta Caipora lhe expõem as intenções e eles combinam agir a fim de que ela vá para a casa do caçador.
Maniquê: Ela disse que está perdida na floresta, mas não se lembra de nada, e que se acostumou viver lá, mas que desejava viver na cidade, pois esta crescendo e precisava de uma família...”que nada, estas falas foram apenas para ludibriá-los.”
Diante da informação a D.Cleide determinou que a levassem ao abrigo, lá o tradutor tiraria mais informações. Caipora, no entanto falou:
Não poderia ficar com o caçador? Traduzido pelo índio
Ele me tratou tão bem me sentiria mais segura.
D.Cleide diz que até poderia, mas com a decisão da esposa dele, é claro.
Imediatamente Zé Miranda liga por vídeo para Marilene e expõem a situação.
Acertados ficariam com a garota por alguns dias, mas procurariam saber quem eram os pais da menina vermelha.
D. Cleide vai com os três - pois o tradutor se propôs a ficar com eles por um dia ao menos - para casa onde combinam de se comunicar a cada instante que tiverem novidades.
D. Marilene as recebe muito bem, a ma Caipora desde o primeiro momento, e demonstra isto muito bem. Depois de um bom café da tarde e conversas animadas Caipora vai conhecer o quarto que ocuparia pelo tempo que fosse necessário. No quarto ela avista um computador, mas nem cita a sua existência, no entanto a comichão de ligá-lo sentiu de imediato.
O índio ficaria em outro quarto é claro, mas teriam dias bastante agitados pelo jeito. Caipora queria conhecer a cidade, e naquele visual exótico certamente chamaria muita atenção.
Na hora de descansar Marlene tenta fazê-la entender o chuveiro da casa, mas ela insistia que tomaria banho na cachoeira. Mas quando sentiu o calor da água e sentiu o cheiro gostoso do sabonete se entusiasmou. Viram a alegria da menina e seus risos eram ouvidos a longa distância, divertia-se com a espuma. Quase uma hora depois resolve sair, mas queria outro em breve.
A delicadeza aflorava e ela se mostrava uma menina doce e alegre, Zé Miranda cochichava aos ouvidos da esposa dizendo que ela seria uma ótima companhia. Marlene sorriu e o beijou. Seus dois filhos eram casados e moravam longe, viam esporadicamente.
Dormir, só encima de folhas, não teve jeito, pegaram folhas do quintal e forraram a cama, mesmo assim ela estranhou, pois não havia pássaros nem animais por perto. Marlene colocou um DVD de cântico de pássaros que tinha muitas imagens, assim foi que Caipora adormeceu seu primeiro dia na cidade grande.
Quatro horas da manhã Caipora já acionava o computador, o silêncio tomava conta da casa, e ela cuidadosamente desligara o som, passeava por imagens e reportagens sobre a vida natural, gostava de ver os vulcões em plena erupção, a queda de asteroides, chuva de estrelas dalvas, tsunamis, e tantas outras forças da natureza.
Lembrou-se do DVD que a fez dormir e procurou no Youtube semelhantes, o pouco tempo que usava na praça o notebook não permitia tal interação. O dia amanheceu e ela estava sentindo-se muito bem. O casal acordou por volta das sete horas, horário que os pombos costumam pousar nos telhados e Caipora tinha ouvido o pousar da revoada.
O rostinho alegre da Caipora logo surgiu na cozinha, e em seguida o índio que traduzia a alegria do reencontro.
-Bom dia Caçador, exclamou Caipora.
Zé Miranda: Acordou bem pelo jeito, bom dia.
Bom dia Benquerer.
Marlene: opa, benquerer, gostei dessa.
Caipora sorriu.
-Você é muito doce em seu trato, gosto do jeito como trata a mim, e aos outros...benquerer.
Zé Miranda: Vamos ao café, sabemos que você gosta de frutas, então pusemos uma boa variedade delas na mesa.
Caipora olhou as cores vivas das frutas, tão fáceis de pegar, nada de subir em árvores e as disputar com os macacos ou esquilos que seus olhos grandes brilharam, devorou uma a uma com muita vontade, lambuzada balbuciava e o interprete a observava, não parecia que ela ia dar qualquer lição no caçador, na certa mudara de ideia.
O aconchego de um lar sentir-se família, o carinho de pais é o desejo de todas as criaturas, entre os animais é assim também, raras exceções. E parece que este sentimento a estava envolvendo fortemente.
Desmanchava-se o coração da pequena moça, mas as aventuras do dia a dia levava-a a pensar na floresta e na vida que levava.
Quinze dias passaram-se e Zé Miranda nem saia mais para caçar, entretinha-se em aprender a língua aborígene que não é tão difícil como parecia de imediato, e Benquerer cuidava de seus cabelos e da tintura do corpo, isto ela não quis deixar para trás. Marlene já nem estranhava a orelhinha da princesa que dominava seu coração.
Caipora estudava a situação dos animais em todo canto, em especial na região onde morava, buscava conhecimento das maiores dificuldades, em pouco tempo estaria pronta para lançar um projeto de cuidados com os animais, de sua pequena luta e de todo aprendizado pelo qual passou usaria para a conservação de animais em ritmo de extinção em especial, mas também de todos em geral, cada um deles era um grande amigo a desfrutar da presença, observá-los a encantava, fez até uma poesia para chamar a atenção e a usaria em sua página:
A natureza
Ao olhar para ti, vejo em ti o meu eu.
Ao tocá-la, tão firme e tão forte, desarmo meu ser à procura de mim.
Cada detalhe, cada folha, tudo em ti são partes daquilo que sou.
Meu corpo é feito de uma natureza perfeita.
Que também é perfeita com tu és.
Maltrato a ti e recebo marcas em mim,
Arranco tuas folhas, derrubo seu tronco,
Antes tão forte como eu.
Agora caída, espero cair eu também.
Tombos da vida, refletida naquilo que és,
Mas retomo minha vida,
Dando vida a ti, ao plantar a semente,
Reponho a vida em ti e em mim,
Mas se me omito,
A vida que agora tenho, cairá sob a chuva,
Ou com a força do vento, assim como tu.
Caída por força minha e desejo meu.
O agir de tudo sempre nos encontra em seu caminho,
Se os pássaros já não fazem ninhos,
Desejo para mim o que a ti provoquei,
Em mim já não haverá carinho,
Porque de ti carinho retirei,
São laços, são forças, são caminhos,
Quisera eu enfeitar os teus.
Dar a ti minha sombra, meus frutos, meu eu.
Retribuir com a minha existência
A sua permanência, neste mundo que também é seu.
Os três saíram a passear pela cidade, o povo já conhecia a história da vermelhinha e se alarde a observavam, em uma esquina a dois quarteirões de casa ela avista em uma calçada um cachorro, um bassêt todo machucado, aparentemente teria sido atropelado. Ela solta as mãos de Marlene e corre acudir o animalzinho abandonado. Chega-se nele e coloca as mãos e o abraça, conversam com ele por uns dois minutos, em seguida o cãozinho sai correndo feliz em direção a casa onde morava.
O casal não entendeu, foi rápida demais a cena, mas amaram vê-la tão preocupada e atenciosa.
Nos dias seguintes outro fato ocorreu, era sábado e Zé Miranda estava arrumando a caixa d’água da casa. Marlene insistiu para que não subisse no telhado, mas era teimoso aquele homem. A esposa apesar de preocupada entrou na casa para desligar a panela de pressão, o feijão que cheirava a distância estava pronto. Questão de minuto e ouviu-se um grito, era Zé Miranda por certo, Marlene volta ao quintal e observa Caipora com o esposo no colo sorrindo.
Ela vai em direção ao marido e pergunta o que havia acontecido, e ele descreve a cena que jamais ela aceitaria por verdade, mas não havia outra explicação. Estavam diante de um mistério, como ela teria tamanha força?
Guardaram para si esta história, mesmo porque seria quase impossível alguém mais acreditar. E a alegria era tanta dos três que resolveram adotar alguns animais para ficarem com eles. Nada de trancá-los ou acorrentá-los. Só a porta da rua é claro seria uma barreira, mas nem iam querer se ausentar estando a princesa a cuidar deles.
Dois meses depois chega uma carta da Assistente Social para se apresentar ao Conselho tutelar.
Caipora já falava o português o bastante para se comunicarem, e o casal já dominava muito da língua de caipora.
Depois da esperada adoção foi em casa como uma família. Caipora contou para os pais seu sonho em relação a ajudar os animais, todos se envolveriam por amor a ela e à natureza que merece ser bem cuidada.