O preço amargo da mentira

“Meu último anseio, sentir o doce do seu beijo, sob a anuência dos feixes da luna mais rotunda”. Beijo é um ato animalesco, talvez impulsionado por forças tão intempestivas quanto incógnitas e, pelo jeito, quanto mais se recorre aos ósculos, mais ainda se parece imergir em um campo inexplorado. Se até Jesus Cristo se viu traído por um afável toque de bochecha, por parte de Judas com a boca, não é muito difícil testificar homens (e até mulheres) recorrendo à mentira em detrimento do prêmio: meia dúzia de ardentes osculações.

Longe de querer evocar o estilo santarrão ou promover um estamento ideológico a respeito de atos dessa espécie, mas confesso sempre ter nutrido repugnância por pessoas capazes de recorrer a métodos tão banais para concretizar seus anseios. Aquela velha história, baseada na premissa: definitivamente os fins não justificam os meios, afinal, meios ruins acarretam em fins ainda piores... Até um dia me descortinar, articulando estratagemas ascorosos para ser agraciado pelo méleo beijo da menina mais bonita!

Isso aconteceu no final da década de 90, no período de meio do ano, marcado pelas festas juninas. Acompanhado por alguns amigos, subimos em um ônibus com destino a uma cidade interiorana, jovens ansiosos, prontos para desfrutar do melhor que a noite pudesse oferecer. A cidade estava vestida para a festividade, fogueiras adornavam a fachada das casas, o cheiro de milho cozido se misturava as lufadas do vento, ensandecido, tentando extirpar as bandeirinhas de São João a formarem uma tenra cobertura, capaz de manter secos os corpos dançantes diante da garoa.

À medida que a festa decorria no ritmado sonido da sanfona, em invulgar harmonia com seus íntimos triângulo, sanfona, zabumba e pandeiro, meu grupo foi dizimado em subgrupos, até me ver sozinho na festa, mexendo meu corpo de forma canhestra e tendo meia lata de Coca-Cola como a melhor companheira de dança da noite. Mal sabia, o melhor estava por vir, em forma de uma estonteante morena de negros cabelos ondulados, pernas pomposas devidamente tracejadas no jeans justo e cintado, com uma encurtada blusa quadriculada, deixando parte do abdômen a mostra, além do vestiário típico ser completado pelas botas de salto alto, apetrecho final para a galhardia.

As maçãs do rosto eram salientes de ternura. Seus negros cabelos cacheados despontavam como a moldura para um rosto perfeito, alindado por um olhar penetrante, capaz de suscitar uma airosa vertigem. Lutava para não permitir que os participantes da festa formassem uma parede, ocultando a poética visão: a garota inominada compassadamente dentando uma espiga de milho. Enquanto a fitava, tentando não me deixar notar, nossos olhares subitamente cruzaram, e assim permanecemos, até a exuberante figura desviar o rosto, seguindo até o lixo onde depositaria o sabugo de milho.

Outra garota, possivelmente as duas estavam juntas na festa, seguiu até ela e pelo gesto, estava sugerindo partirem para outro lugar. Antes, minha nova musa mais uma vez me ofereceu um olhar, juro até ter avistado um singelo sorriso e logo desapareceram, embrenhadas na multidão. Vai logo atrás dela, deixa de ser tão tépido! Seria a decisão mais acertada, mas ao invés disso, apanhei mais uma lata de refrigerante e segui para um ponto menos povoado, contemplando a lua no compasso cadente do xote, xaxado e baião.

- Apostaria que você não é daqui e também não gosta muito de dançar!

– Talvez meus olhos estivessem me pregando uma peça, quem sabe estivessem sucumbindo a minha imaginação delirante: a voz invadindo meus ouvidos era mesmo dela. Antes de festejar o presente concedido pelo cupido espírito dos sanfoneiros, pude absorver o iminente conflito. Caso admitisse ser apenas um visitante, minhas chances com a bela morena seriam ínfimas, reduzidas a zero.

- A propósito, eu me chamo Bárbara! – Após me apresentar, tocando sua mão com leveza e encostando meus lábios, molhados de Coca-Cola, em cada lado das perfumadas bochechas, pude ensaiar uma mentirosa solução.

- Sou novo na cidade! Meu pai foi transferido para a agência bancária da praça lá atrás. Ainda não conheço ninguém, além de você, claro! – Nos aproximamos um pouco mais da festa, permanecendo longe o bastante para que pudéssemos papear um pouco, compartilhar nossas agruras. Depois, arriscamos alguns passos de dança e de tão polida, em momento algum transpareceu irritação com minha desengonçada habilidade para conduzi-la.

Quando a chuva nos atingiu com maior rigor, Bárbara sorveu o restante de Coca-Cola. Pelo olhar, estava certo de transparecer vontade de encarar seus lábios macios, um beijo resfolegante, marcado pela aceleração da frequência cardíaca. Por um segundo, tentou evitar, talvez me dissuadir alegando não gostar “muito de ficar”.

- Podemos namorar se você quiser! – Então a trouxe depressa pra mim, não podia mais esperar. Dessa vez, Bárbara não oferecia resistência, foram ósculos prolongados, com gosto de “”coca”, como queria ter arrancado uma daquelas bandeiras, testemunha fulcral do momento. Meus lábios, com suavidade, deslizavam pelo seu pescoço, sentindo seus cabelos sedosos emanarem um atordoante cheiro de mato verde, as suas bochechas rosadinhas, o queixo modelado com singular esmero.

Antes do fim da festa, Bárbara disse que precisava ir e pediu para encontrá-la mais tarde na praça, pouco antes da hora do almoço. – De repente, você pode conhecer seus sogros, ainda hoje. Só preciso ver como estará o clima! Tudo bem pra você?

- Claro que sim. Estarei lá, já contando as horas, minutos, segundos... – Como queria estralar os dedos e tornar verdade aquelas famigeradas mentiras. – Você podia me passar o número do seu telefone?

- Mais tarde, na praça! – E depois nossos lábios toparam pela última vez. Horas depois, minha boca experimentava o amaro saibo do remorso. Na estrada, seguindo para casa, podia imaginar Bárbara me esperando no banco da praça, enquanto já estaria repousando na minha cama, em outra cidade.

Há situações que indubitavelmente nos leva para o lado negro e é ainda pior quando temos plena consciência disso. Os cabelos dela tinham um saboroso cheiro de mato. Tantos anos depois, quando caminho por um parque, com a mata regada pela chuva, sou invadido por aquele cheiro inebriante, sendo impossível não rememorar nossos tenros momentos. Possivelmente, Bárbara já olvidou minha existência, mas eu ainda me lembro dela, dos abrasados beijos afanados e do insipiente gosto de Coca-Cola.

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 24/07/2020
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