Onde está o ingresso?

Onde está o ingresso?

Alexandre Santos (*)

Desde o anúncio de que, pela primeira vez, a banda viria ao Recife, eles ficaram eletrizados.

Na era para menos. Afinal de contas, com o imaginário preenchido por videoclipes surreais e todas as horas de lazer impulsionadas e animadas por melodias ainda por serem imaginadas, pela poesia gótica de letras plenas de simbologia medieval, pelo som histérico das guitarras mágicas, pelo ritmo alucinante ribombado por couros celtas metralhados sem dó nem piedade por baquetas moto contínuas, por vozes estridentes e surpreendentemente melódicas que pareciam soar das entranhas do Planeta e pelos rumores de camarins repletos de meninas apaixonadas, no íntimo, cada um dos garotos queria ser um dos cabeludos tatuados do 'Periscœpio Periférico'.

Foi quase um mês de preparativos.

Buru, Giba e Pepeu tinham muito o quê fazer.

A inspeção do clube-palco da apresentação, a escolha do melhor local na plateia, a encomenda das camisetas estilizadas com a caveira-símbolo e com a heráldica própria da banda, a compra antecipada dos ingressos. Era muita coisa. Passando e repassando periodicamente cada detalhe, o check list das providências foi verificado mil vezes, ganhando mil novos itens e teria incorporado outros mil [itens], se outras mil verificações fossem feitas. O site do fã clube foi visitado várias vezes todos os dias, em viagens digitais que, desfrutando detalhes incorporados a conta-gotas, passavam em revista a discografia, as antigas formações, a longa estrada já percorrida pela banda e, nos últimos dias, novidades da atual turnê e do show no Recife, incluindo as opções de guarda-roupa, a mensagem da banda aos admiradores locais e, como cereja do bolo, o repertório - uma sequência que, retirada a tradicional 'PintaSSilgos Amestrados' da abertura, executaria uma versão live do novíssimo 'Elephantes em fralda', o CD lançado no verão passado, considerado pela crítica especializada a obra prima do 'Periscœpio Periférico'. Eles não tinham dúvidas de que aquele seria o show do século.

Empenhados em desvendar os detalhes importantes (claro que, na cabeça deles, em se tratando do 'Periscœpio Periférico', todos os detalhes eram importantes), o 'Elephantes em fralda' foi completamente esmiuçado. Nada escapou. Os jovens pesquisaram detalhes das capas e dos encartes, dos clipes publicitários, da história do estúdio de gravação, dos currículos artísticos e das biografias dos profissionais envolvidos. As críticas foram lidas e criticadas, reservando o céu àqueles que elogiavam o disco e o inferno aos que ousavam apontar-lhe defeitos, as letras foram analisadas segundo diversos aspectos e as músicas ensaiadas à exaustão. De tão embutidos nos preparativos, Buru, Giba e Pepeu sequer perceberam os torcicolos surgidos em função dos ensaios da nova coreografia da banda - um estranho balé que, como se cabeças fossem martelos a esmagar maldições numa bigorna imaginaria, sincronizava o vigoroso balançar dos pescoços com o ritmo alucinante das músicas, levando as longas cabeleiras a açoitar o ar, produzindo um efeito visual muito bonito (e, ao mesmo tempo, muito útil, pois espantava moscas e mosquitos surdos).

Vencendo o calendário - que, de tão emperrado naqueles dias, parecia contido por uma ampulheta entupida -, chegou o dia a partir do qual o Recife ingressaria no circuito histórico das cidades fincadas no mapa dos grandes shows do 'Periscœpio Periférico'.

Logo cedo, já vestidos com as roupas negras que faziam o estilo da banda, o trio se encontrou para rever o check list e, como ocorria sempre, fez novo acréscimo. Desta vez, incorporou uma caneta para a remota hipótese de surgir chance de pedir autógrafo a algum dos ídolos.

Aquele era um dia especial.

Depois de praticamente engolir o almoço, Buru, Giba e Pepeu correram para o clube, cujo entorno, como esperado, estava tomado por uma multidão eclética e barulhenta. Ali tinha de tudo. Junto com fãs e curiosos, uma enxurrada de vendedores ambulantes se amontoava, pronta para atender todas as espécies de desprevenidos. Parecia uma miniatura da feira de Caruaru, pois havia de tudo. Desde camisas estilizadas, flâmulas e adereços alusivos ao 'Periscœpio Periférico' e, claro, ingressos para os retardatários até bandeiras do Brasil e de Pernambuco, passando por CDs da banda e todo tipo de fast-food. Carrocinhas de sorvete e de sanduiches disputavam espaço com cambistas, que disputavam espaço com vendedores de refrigerantes, que disputavam espaço com pessoas que se dirigiam ao show, que disputavam espaço com a equipe de organização, que disputava espaço com isopores e fogareiros, que disputavam espaço com carrocinhas, fechando um circuito que se projetava para além da compreensão, variando segundo o nível de claustrofobia de cada um. A confusão era total.

Em meio ao pandemônio encoberto e bafejado pela fumaça e vapores vindos das churrasqueiras com cheiros de salsichão, churrasquinho de gato e cachorro-quente comeu-morreu, os atravessadores esgoelavam dispor ingressos, oferecendo-os aos desavisados com ágios escorchantes de cem, duzentos por cento. "Ainda bem que compramos nossos ingressos com antecedência", com ar inteligente, Buru comentou com Giba e Pepeu.

Parte daquela confusão decorria da dinâmica própria dos shows da banda, que, talvez para criar clima ou, quem sabe, dar tempo para as passagens de som e ajustes na parafernália técnica, mantinha os portões fechados até uma hora antes da apresentação. Enquanto isso, a fila já quilométrica não parava de crescer, dando voltas no quarteirão, deixando a impressão de que metade da humanidade estava ali para prestigiar o 'Periscœpio Periférico'. A fila enorme não constituía problema para os fãs, especialmente porque a espera não era monótona. De fato, antes que surgisse alguma reclamação, de forma natural, sem qualquer ensaio, um grupo solfejou acordes do refrão de PintaSSilgos Amestrados', música dominante da obra da banda e, em instantes, ganhando novas vozes, o som se converteu em coro. Daí à música animar a coreografia da banda (que, pelo visto, era conhecida por todos) foi um passo, contaminando a todos e transformar a feira numa festa.

De qualquer forma, mesmo atenuado pela animação reinante na fila, o ruge-ruge era cansativo e, ao tempo que se aproximava o momento da abertura dos portões, aumentava a expectativa dos fãs, que não cabiam mais em si de tanta ansiedade. Como relógios sincronizados, quando as cantorias já não conseguiam vencer o desconforto (rompendo a tranquilidade aparente, começaram a espocar reclamações pela demora e questionamentos sobre a competência da organização), surgiu a movimentação que acalmou a situação. De fato, saído ninguém sabe de onde, um homem, que disse chamar-se John Doo, se apresentou para botar ordem na confusão.

Trajando a inconfundível roupa negra da banda, o tal John Doo, um tipo alto e magro, quase esquelético, parecia ter experiência em controlar situações como aquela:

- Os portões estão prestes a abrir, pessoal. Vamos organizar a fila - a voz vinha num timbre de quem sabe o que está fazendo - Para ganhar tempo, vou recolher os ingressos... Todo mundo com ingresso na mão.

E, sem dar margem a discussões, agindo como se fosse a coisa mais normal do mundo, eventualmente pedindo para ver a documentação daqueles que pareciam mais jovens (e, assim, ganhando mais autoridade e, lógico, dando mais autoridade àquilo que fazia), John Doo passou a recolher os ingressos, trocando-os por uma ficha que, segundo ele, deveria, simplesmente, ser colocada na urna colocada ao lado da borboleta. Não houve resistências. Na realidade, os fãs sentiam certo alívio ao fazer o pré check-in com John Doo, pois, de alguma forma, ao entregar o ingresso, eram tomados por uma sensação de 'estar quase' no show tão aguardado.

De sua parte, com as preciosas fichas guardadas nos bolsos, olhos postos nos portões ainda fechados e animação renovada, Buru, Giba e Pepeu se concentraram apenas nas delícias que estavam por vir e se desligaram de John Doo, que continuava recolhendo ingressos pela fila, perdendo-o de vista. A cantoria recomeçou e continuou por mais alguns minutos até que, finalmente, a fila começou a andar.

Foi quando começou a verdadeira confusão.

– Sem ingresso, ninguém entra - o berro do porteiro foi a senha de que havia alguma coisa errada. Ele se dirigia à garotada que - ao invés do cartão magnetizado esperado pela máquina que, automaticamente, liberava a borboleta mediante a leitura digital - lhe estendia fichas coloridas.

Aquilo foi o estopim de uma das maiores barafundas já ocorridas na portaria do Clube.

Imediatamente cercado por garotos que, desesperados pela possibilidade de perder o show do 'Periscœpio Periférico', gritavam 'Já entregamos o ingresso' a plenos pulmões, o porteiro balançou a cabeça e, sem demonstrar qualquer reação, reafirmou:

- Sem ingresso, ninguém entra.

Embora, lamentando terem sido vítimas do conto do check-in antecipado, sem disposição para brigas, alguns mais abastados correram aos guichês ou aos cambistas e, pouco ligando para as fichas recebidas de John Doo, compraram novos ingressos. A maioria, no entanto, não parecia disposta a pagar duas vezes pelo mesmo show.

A confusão aumentou.

Sem conseguir conter a multidão, que parecia disposta partir até para o quebra-quebra, a organização voltou a fechar os portões e, ao tempo que anunciava o adiamento do show por mais meia hora, chamou a polícia para reforçar a segurança. Estas iniciativas, no entanto, se mostraram insuficientes. Aliás, a confusão estava longe de acabar e, pelo contrário, cresceria ainda mais, especialmente porque, por trás de cada um dos garotos barrados, havia uma família com algum nível de poder e de influência social. Não deu outra. Em instantes, reforçando a balbúrdia já existente, além de jornalistas sempre ávidos por notícias fresquinhas e advogados esperançosos por eventuais causas de injúria e difamação, chegaram carrões trazendo mamães e papais preocupados e ansiosos por saber o que havia acontecido com os seus filhos. O nível de tensão aumentou. Ao coro do 'entregamos o ingresso' entoado pelos barrados - que se misturava com os gritos dos vendedores, inclusive dos cambistas que prontamente perceberam uma nova oportunidade de negócios, e com o choro aberto berrado por muitos -, se somou admoestações dos pais em diferentes graus de dureza. Àquela altura, a paz parecia longe de acontecer. Acuados pela realidade, os organizadores do show começaram discutir soluções que implicassem em custos suportáveis. Foram ágeis. De imediato, reabrindo os portões para entrada para os portadores de ingressos, [os organizadores] pediram àqueles que dispunham apenas das tais fichas a formarem uma fila separada. Para surpresa dos organizadores, verificou-se que o número dos prejudicados não era significativo. Ninguém podia saber, mas, diante da possibilidade de perder o show, ao invés de se expor a querelas de resultado incerto, muitos prejudicados preferiram esquecer as fichas sem valor recebidas do tal John Doo (dando-as como caso perdido) e correr aos guichês ou aos cambistas para comprar novos ingressos.

Vendo a pequena fila dos lesados, os administradores perceberam que não valia a pena arriscar brigas e, em gesto pragmático (tomado por uns como magnânimo), junto com uma ácida crítica à segurança da cidade ("não estamos mais seguros em canto nenhum", disseram eles, inclusive como forma de fugir das próprias responsabilidades), mandaram, pura e simplesmente, distribuir convites promocionais a todos os prejudicados, apagando no nascedouro as explosões que viriam pela frente.

Habituado a lidar com pequenos trambiques, tanto aqueles inventados por espertos desejosos de assistir shows sem pagar como aqueles aplicados por cambistas de ingressos falsos, de pronto, o porteiro percebeu que aquele caso não se enquadrava no perfil tradicional dos golpes e, sem dúvidas, aqueles meninos tinham sido ludibriados por alguém inteligente e experiente. A 'ficha mágica' era um dos golpes mais ousados, especialmente porque exigia algum talento dramático por parte dos golpistas. Lembrado de shows anteriores, sem querer admitir falha de segurança (e, porque não admitir, [admitir] uma certa conivência por parte do 'Periscœpio Periférico'), o porteiro imaginou o quê poderia ter acontecido. Na realidade, se suas suspeitas estivessem corretas, ele poderia dizer até dizer quem eram os golpistas. Ao entregar os convites promocionais que dariam acesso a Buru, Giba e Pepeu ao Clube, [o porteiro] não resistiu à curiosidade.

- Vocês lembram a quem entregaram o ingresso?

- A John Doo - a resposta veio em coro - um cara alto, cabeludo, vestido como se fosse da 'Periscœpio Periférico'.

Não havia dúvidas. O cambista-trambiqueiro 'oficial' voltara a atacar e, com certeza, voltaria a atacar ainda naquela turnê. O porteiro tinha razões para pensar assim, pois, na realidade, John Doo não era o nome de uma pessoa e, sim de um fã clube não oficial da 'Periscœpio Periférico', cujos membros, provavelmente financiados pelo golpe da 'ficha mágica', seguiam a banda mundo afora, por onde quer que ela fosse. O porteiro (e muita gente) sabia que a ação do John Doo não era desconhecida da banda. Aliás, corria à boca miúda nos bastidores da organização que, num dos shows realizados no ano passado, tão logo soube da prisão de alguns dos rapazes do Jonh Doo, o próprio empresário da banda saíra em seu socorro e bancara os custos do acordo que os livrara da prisão.

Uma correria interrompeu a conversa no portão do clube.

Cercados por fãs e pela segurança, caminhando em ritmo de quem está atrasado, os músicos do 'Periscœpio Periférico' chegaram ao Clube e, distribuindo sorrisos e acenos, passaram a menos de um metro dos garotos. O choque foi grande, não só porque eles não esperavam ver seus ídolos tão de perto, mas, também, porque, no grupo que cercava a banda estava John Doo. Os garotos se olharam entre si, mas, antes que pudessem fazer qualquer coisa, aconteceu uma coisa que, por mais que venham a viver, jamais esquecerão. Contidos por John Doo, os músicos se voltaram e, preenchendo um sonho dos garotos, além de autografar as suas camisas, se deixaram fotografar ao lado deles. Ao final daquele encontro maravilhoso, antes de voltar a empurrar os músicos rumo ao palco, à guisa de cumprimento, John Doo bateu nas mãos espalmadas de cada um dos três garotos, que não continham a emoção.

Convencidos de que John Doo não era tão ruim como pensaram inicialmente, usando os convites promocionais, Buru, Giba e Pepeu entraram no clube e se esbaldaram.

Aquele foi o melhor show das suas vidas.

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural