Uma Manhã Inesquecível
- Como você veio parar aqui? – Perguntou o jovem rapaz que me ajudava a terminar algumas peças no fundo da minha oficina de carpintaria. Realmente meus traços não eram nada parecidos com os das pessoas daquela região, e como os moradores dali geralmente buscavam oportunidades em cidades maiores, era um tanto esquisito encontrar alguém que decidira tomar o caminho contrário.
- É uma história engraçada — Respondi —, eu morava em uma grande cidade, tinha um emprego bem remunerado e estava de casamento marcado, mas tudo mudou após uma manhã inesquecível.
- Tenho certeza que você deve ter seus motivos, mas convenhamos que isso é um tanto incomum. A maioria das pessoas persegue um bom emprego, uma boa relação e uma vida pacata na cidade. Só mesmo um maluco como você para desfazer-se de tudo isso.
- É verdade, admito, mas é bom tomar cuidado com esses desejos ordinários, pois muitas vezes eles nos colocam em uma verdadeira prisão. Existem muitas formas de se viver bem, garoto, e posso lhe garantir que eu estou muito melhor agora.
- Sua vida era tão penosa assim?
- Não exatamente. O que posso adiantar é que eu era um baita de um idiota! – Risos.
Após concluir o mestrado e começar a trabalhar fora, eu conheci Estela, a mulher que viria a ser minha noiva alguns anos depois. Antes de conhecê-la, eu não poderia sequer cogitar a possibilidade de me casar com alguém como ela. Maravilhosa em todos os sentidos, seu vigor feminino era notável em cada detalhe. Nos conhecemos por acaso em um pequeno evento da cidade. Ela era uma arquiteta, eu um economista, ambos iniciando nossas carreiras na região. O engraçado é que talvez essa fosse uma das nossas pouquíssimas semelhanças, mas, apesar de nossas diferenças, a paixão foi instantânea, não tinha mais volta, e em poucos anos já estaríamos falando em casamento.
É uma coisa engraçada. Quando nos tornamos adultos e começamos a construir nossas vidas, nos sentimos grandiosos e maduros, mas na realidade esse é o momento em que nos tornamos mais infantis do que nunca. Eu duvido que cogitaríamos o matrimônio se tivéssemos nos conhecido mais cedo. O problema é que quando se passa dos trinta, o temor de levar uma vida só acaba nos tornando crianças de novo. Estava claro que não estávamos preparados, nem sequer nos conhecíamos direito, foram anos e anos nos dando bem quase que somente na cama. No entanto, as nossas vidas foram se desenrolando. Consegui um cargo em uma empresa maior e ela estava com uma boa clientela. O velho sonho da vida pacata, como você disse, estava mais perto, e a empolgação foi inevitável.
O primeiro passo foi quando decidimos morar juntos para poupar dinheiro. Meus pais diziam que era um bom “teste” inicial, já a família dela odiava a ideia. Independentemente dos comentários, realmente foi um bom momento. Ter alguém sempre por perto é muito caloroso e confortável, por mais que as discussões fossem frequentes. Foi uma fase engraçada, inclusive. Parecia que estávamos mais interessados nos festejos e na utopia da família perfeita do que em nós mesmos. Nos curtíamos pouco e ficávamos quase todo o tempo idealizando o futuro.
Até aqui você provavelmente deve estar pensando por que diabos eu abandonei tudo isso, não é mesmo? Eu tinha um emprego legal, dinheiro na conta, uma futura esposa inteligente e belíssima. O que mais um homem deseja para iniciar a meia idade com o pé direito, certo?
Veja bem, tudo isso que te contei é verdade, mas essa é apenas a versão que costumamos contar para nossos familiares e amigos. Todos nós criamos essas narrativas agradáveis para conferir algum sentido à nossas vidas, mas quer saber? Muitas vezes fazer o que não faz sentido faz muito mais sentido.
O roteiro da minha vida estava perfeito, mas eu não era feliz, nenhum de nós dois era. Meu trabalho era sufocante e me obrigava a lidar com pessoas arrogantes todos os dias. Ela era uma excelente profissional, mas frequentemente vivia crises terríveis, abandonava projetos e se trancafiava em casa por dias aos prantos. A história do casamento melhorou um pouco as coisas, criamos um novo horizonte para nossas vidas. Estávamos encantados com toda a beleza do momento, a empolgação e o apoio das pessoas que gostávamos, porém, de alguma forma, nós sabíamos que toda essa história era uma tentativa frustrada de tentar resgatar algo que talvez nem existisse. O problema é que para esse “encantamento” perder o efeito, é necessário dar de cara com a parede ou levar uma bela surra do inevitável. Só, então, acordamos desse sonho maluco e percebemos que tudo não passava de uma prisão. A “surra” que levei foi daquelas, mas por sorte foi tudo muito rápido, uma breve manhã inesquecível. O fato é que, embora eu tenha experimentado várias desilusões de uma só vez, o que me marcou mesmo foi a estranha alegria que senti logo depois que tudo acabou. Eu nunca havia me sentido tão livre e feliz, e foi ai que percebi.
Aquele dia parecia ser uma quarta-feira qualquer. Acordei cedo como de costume e fui tomar um banho enquanto Estela preparava o café. Estávamos hospedando o Roberto, um velho amigo da minha faculdade que tinha uma entrevista de emprego na cidade e resolvera passar a semana para tentar a sorte com outras empresas. O problema é que desde o princípio ele me pareceu um tanto desinteressado e, inclusive, havia deixado claro que estava ali a mando dos pais. Não era da nossa conta, claro, e detesto admitir que ele era uma companhia agradável. No dia fatídico, porém, me incomodei ao vê-lo dormindo enquanto estava de saída.
- Você não deveria está procurando emprego? - O acordei abrindo a porta do quarto de hóspedes.
- Sim, com certeza eu irei, mas ainda está muito cedo, não acha? – Ele me respondeu abrindo os olhos com dificuldade.
- Não é cedo, todas as pessoas estão indo para o trabalho agora.
- Eu sei, hoje mesmo conseguirei algo. Obrigado mesmo pela gentileza cara.
Não sou de acreditar nessas coisas, mas naquele instante eu podia pressentir que algo grande aconteceria. Para piorar, chegando no andar do prédio em que trabalhava, saio do elevador e ouço uma baita bronca do meu chefe que repreendia todos os seus funcionários sem qualquer sombra de classe. Eu sabia do que se tratava e certamente sobraria para mim, por isso relutei um pouco no corredor para conseguir algum fôlego antes de entrar, o que não funcionou. Comecei a ser tomado por uma terrível onda de estresse, daquelas que se chega a sentir um sabor amargo na boca, e, sem medir as consequências, dei meia volta. Resolvi voltar para casa e inventar alguma desculpa para não acabar surtando na frente de todos.
Chegando na portaria do prédio onde morava, peço minha chave ao Vladimir, o porteiro. Estela costumava sair alguns minutos depois de mim, e a minha chave estava com Roberto que, àquela altura, também já deveria ter saído. Para minha surpresa, porém, Vladimir me disse que nenhum dos dois havia descido. Subi o elevador percebendo que não estava pressentindo nada, só estava começando a perceber o quão idiota eu era.
Chegando lá, abri as portas e caminhei até meu quarto sorrateiramente. A porta do quarto estava fechada, mas pelo buraco da fechadura pude ver aquele canalha folgado aos beijos com minha futura esposa. A ansiedade só aumentou com a constatação, mas me controlei para não fazer um escândalo. Minha mente estava vazia, não cabia qualquer pensamento naquele momento. Sai de casa sem deixar rastros tal como cheguei e, por alguma razão que desconheço, decidi voltar ao meu escritório ciente da bronca ainda maior que receberia pelo atraso. Havia algo que eu precisa fazer, mas não sabia, e quando cheguei mais uma vez no trabalho me surpreendi quando percebi que o filho da mãe ainda estava gritando com todos. Instantaneamente fui tomado por uma coragem que jamais senti antes e berrei:
- CALE A BOCA!
- O que disse? – Lúcio, meu chefe, respondeu indignado ao mesmo tempo em que todos se viravam para mim.
- O que está matando essa empresa não é a pouca produtividade dos funcionários é a sua gestão patética. Uma criança de 10 anos pode fazer um trabalho muito melhor.
- Você não deve gostar mesmo do seu cargo não é, senhor Júlio?
- Sinceramente não. E antes que me diga qualquer coisa, eu me demito.
Sai dali me sentindo um herói. Caminhei lentamente pelo corredor e não ouvi mais nenhuma palavra. Há alguns minutos eu não poderia conceber o que estava acontecendo. Meu casamento estava arruinado e, para piorar, eu abandono meu emprego! Quanta estupidez! Porém, em minha defesa, eu estava totalmente fora de mim.Todas as atitudes que tomei naquele dia, as tomei como um robô. Ao mesmo tempo eu me sentia como se estivesse despertando lentamente de um coma profundo. Meu relacionamento que parecia estável, simplesmente não fazia mais sentido, muito menos o casamento; e meu emprego, até então tolerável, se transformou em uma experiência insuportável.
Ainda como um robô suicida, me lembro de ir ao posto de combustível e encher o tanque do carro para rodar até quando me cansasse. Entretanto, achei melhor voltar ao meu apartamento para pegar algumas roupas e anunciar “formalmente” as minhas desilusões e decisões de última hora.
De volta ao meu apartamento, percebo que Roberto realmente havia saído para procurar emprego, somente Estela estava lá.
- Você não devia estar trabalhando? – Perguntei pretensiosamente.
- Eu resolvi não ir trabalhar hoje, estava um pouco indisposta. – Enquanto ela falava, me dirigia até nosso quarto para pegar cartões, documentos e trocar de roupa, certamente não pegaria estrada com uma camisa social. Chegando lá, encarei os lençóis, a cama desarrumada, o cheiro, tudo me fazia sentir nojo e raiva.
- O que está fazendo? – Estela perguntou confusa – Você está bem?
- Ótimo! Nunca me senti mais livre, literalmente. - Respondi enquanto retirava alguns peças de roupa do armário.
- Aonde você vai?
- No momento meu plano é só ficar bem longe de você!
- O que aconteceu?
- Olha, já chega! Não se faça de idiota...
- O que você tá dizendo?
- Digamos que eu sei exatamente do que se trata o seu “mal estar” de hoje. Quem sabe também tenha vindo para casa indisposta ontem e anteontem também. – Ela arregalou os olhos e se retraiu.
- Não Júlio, por favor! Você vai me perdoar, não é? – Eu sorri suavemente – A gente já passou por tanta coisa juntos, você não pode me abandonar por um deslize como esse!
- Na verdade eu posso sim!
- Você é um imbecil! Um possessivo! — Ela insistia.
- E você é uma mentirosa traidora. Nascemos um para o outro, não acha? Não... Não mesmo!
- E nosso casamento? E toda a economia que fizemos?
- Digamos que nosso casamento foi cancelado.
Eu sai e ela me seguiu em prantos até o elevador, mas não a deixei entrar e fui embora. Achava que tudo havia acabado ali, mas na portaria fui obrigado a cruzar com meu velho “amigo” mais uma vez. Não tive escolha se não acertá-lo com um soco na cara e, acredite em mim, foi um belo soco para quem nunca havia feito algo parecido antes. Segui para a saída, peguei meu carro e finalmente abandonei aquela confusão. Chegando na rodovia, ainda com os vidros abertos e sentindo o vento forte tocar o meu rosto, eu me acalmei e foi bem ali que senti algo diferente de tudo o que havia sentido naquele dia. Estava alegre simplesmente por estar ali. Não ligava para o passado, não me importava com o futuro, era apenas eu e a estrada, e aquilo me bastava.
Viajei por uma semana dormindo em uma cidade diferente a cada noite. Estava sozinho, mas nunca me diverti tanto e fizera tantos amigos espontaneamente como fiz naqueles dias. A velha fachada havia caído, eu não precisava me portar como os outros esperavam. Era como nascer de novo, mas muito mais forte e íntegro do que antes.
É claro que tive que voltar para resolver as coisas depois, e só me dei conta disso quando encarei a aliança em meu dedo após algumas noites. Era hora dar uma folga para minha recém descoberta alma aventureira e botar ordem na casa. No mesmo instante liguei para a Estela e marcamos de nos encontrar no dia seguinte.
Nosso encontro começou tenso, claro, mas quando mal percebemos caímos aos risos e piadas com tudo o que havia acontecido. Definitivamente o nosso relacionamento havia terminado, mas isso acontecera muito antes da traição. Roberto desapareceu envergonhado, provavelmente se sentindo culpado, já Estela e eu passamos mais uma semana juntos para nos desfazermos de tudo e revelarmos às nossas famílias que o sonho havia acabado. Nos descobrimos ótimos amigos nesses poucos dias, mas por razões óbvias decidimos não nos falar mais. Por coincidência a encontrei um ano depois no restaurante de uma cidade que estava visitando. Ela estava de malas prontas para ir morar no exterior e disse ainda que se inspirou em minha loucura espontânea para tomar coragem de sair do país sozinha. Continuar seus estudos fora era algo que ela sempre quis, mas nunca havia surgido uma boa oportunidade.
Eu, por outro lado, não quis retomar a minha carreira, por isso comecei a me permitir fazer outras coisas. Trabalhei de secretário, garçom, vendedor e até assistente de obras. Minha família e amigos eram completamente avessos ao fato de uma pessoa com um currículo como o meu prestar serviços tão básicos. Mas eu me sentia bem, gostava da simplicidade das pessoas, tudo aquilo me cativava.
Após uma série de empregos distintos, acabei nesta pequena oficina. Passei cerca de dois anos ajudando o senhor Aufredo e trocando boas histórias com ele durante o expediente. Aos poucos, fui pegando o jeito e até criei um estilo próprio para minhas peças que acabou agradando a clientela. Aqui também conheci Olivia, sobrinha de Aufredo, uma mulher fantástica, preciso dizer. Diferente das outras, eu e ela temos muitas coisas em comum, inclusive um passado pra lá de desapontador.
O engraçado foi quando o senhor Aufredo, percebendo que eu já conseguia tocar bem a sua oficina e sua pequena loja de móveis, me propõe uma oferta um tanto surpreendente, provavelmente inspirado nas histórias que contava sobre minhas viagens. Ele havia trabalhado aqui por mais de 40 anos e nunca conheceu outro lugar. Decidiu, então, se aposentar por conta própria e conhecer o país, desfrutar da liberdade que nunca teve. Me fez, então, uma boa oferta por toda a sua instalação, o que daria um bom fôlego para sua aventura, e não vi como recusar.
Há quem diga que todas essas decisões não fazem o menor sentido. Mas quer saber? São essas histórias que fazem pessoas satisfeitas. Não há nada como um gesto épico para dar sabor à nossas vidas.
* * *
Coletânea Ditos e Feitos - 2020
Recanto das Letras
- Como você veio parar aqui? – Perguntou o jovem rapaz que me ajudava a terminar algumas peças no fundo da minha oficina de carpintaria. Realmente meus traços não eram nada parecidos com os das pessoas daquela região, e como os moradores dali geralmente buscavam oportunidades em cidades maiores, era um tanto esquisito encontrar alguém que decidira tomar o caminho contrário.
- É uma história engraçada — Respondi —, eu morava em uma grande cidade, tinha um emprego bem remunerado e estava de casamento marcado, mas tudo mudou após uma manhã inesquecível.
- Tenho certeza que você deve ter seus motivos, mas convenhamos que isso é um tanto incomum. A maioria das pessoas persegue um bom emprego, uma boa relação e uma vida pacata na cidade. Só mesmo um maluco como você para desfazer-se de tudo isso.
- É verdade, admito, mas é bom tomar cuidado com esses desejos ordinários, pois muitas vezes eles nos colocam em uma verdadeira prisão. Existem muitas formas de se viver bem, garoto, e posso lhe garantir que eu estou muito melhor agora.
- Sua vida era tão penosa assim?
- Não exatamente. O que posso adiantar é que eu era um baita de um idiota! – Risos.
Após concluir o mestrado e começar a trabalhar fora, eu conheci Estela, a mulher que viria a ser minha noiva alguns anos depois. Antes de conhecê-la, eu não poderia sequer cogitar a possibilidade de me casar com alguém como ela. Maravilhosa em todos os sentidos, seu vigor feminino era notável em cada detalhe. Nos conhecemos por acaso em um pequeno evento da cidade. Ela era uma arquiteta, eu um economista, ambos iniciando nossas carreiras na região. O engraçado é que talvez essa fosse uma das nossas pouquíssimas semelhanças, mas, apesar de nossas diferenças, a paixão foi instantânea, não tinha mais volta, e em poucos anos já estaríamos falando em casamento.
É uma coisa engraçada. Quando nos tornamos adultos e começamos a construir nossas vidas, nos sentimos grandiosos e maduros, mas na realidade esse é o momento em que nos tornamos mais infantis do que nunca. Eu duvido que cogitaríamos o matrimônio se tivéssemos nos conhecido mais cedo. O problema é que quando se passa dos trinta, o temor de levar uma vida só acaba nos tornando crianças de novo. Estava claro que não estávamos preparados, nem sequer nos conhecíamos direito, foram anos e anos nos dando bem quase que somente na cama. No entanto, as nossas vidas foram se desenrolando. Consegui um cargo em uma empresa maior e ela estava com uma boa clientela. O velho sonho da vida pacata, como você disse, estava mais perto, e a empolgação foi inevitável.
O primeiro passo foi quando decidimos morar juntos para poupar dinheiro. Meus pais diziam que era um bom “teste” inicial, já a família dela odiava a ideia. Independentemente dos comentários, realmente foi um bom momento. Ter alguém sempre por perto é muito caloroso e confortável, por mais que as discussões fossem frequentes. Foi uma fase engraçada, inclusive. Parecia que estávamos mais interessados nos festejos e na utopia da família perfeita do que em nós mesmos. Nos curtíamos pouco e ficávamos quase todo o tempo idealizando o futuro.
Até aqui você provavelmente deve estar pensando por que diabos eu abandonei tudo isso, não é mesmo? Eu tinha um emprego legal, dinheiro na conta, uma futura esposa inteligente e belíssima. O que mais um homem deseja para iniciar a meia idade com o pé direito, certo?
Veja bem, tudo isso que te contei é verdade, mas essa é apenas a versão que costumamos contar para nossos familiares e amigos. Todos nós criamos essas narrativas agradáveis para conferir algum sentido à nossas vidas, mas quer saber? Muitas vezes fazer o que não faz sentido faz muito mais sentido.
O roteiro da minha vida estava perfeito, mas eu não era feliz, nenhum de nós dois era. Meu trabalho era sufocante e me obrigava a lidar com pessoas arrogantes todos os dias. Ela era uma excelente profissional, mas frequentemente vivia crises terríveis, abandonava projetos e se trancafiava em casa por dias aos prantos. A história do casamento melhorou um pouco as coisas, criamos um novo horizonte para nossas vidas. Estávamos encantados com toda a beleza do momento, a empolgação e o apoio das pessoas que gostávamos, porém, de alguma forma, nós sabíamos que toda essa história era uma tentativa frustrada de tentar resgatar algo que talvez nem existisse. O problema é que para esse “encantamento” perder o efeito, é necessário dar de cara com a parede ou levar uma bela surra do inevitável. Só, então, acordamos desse sonho maluco e percebemos que tudo não passava de uma prisão. A “surra” que levei foi daquelas, mas por sorte foi tudo muito rápido, uma breve manhã inesquecível. O fato é que, embora eu tenha experimentado várias desilusões de uma só vez, o que me marcou mesmo foi a estranha alegria que senti logo depois que tudo acabou. Eu nunca havia me sentido tão livre e feliz, e foi ai que percebi.
Aquele dia parecia ser uma quarta-feira qualquer. Acordei cedo como de costume e fui tomar um banho enquanto Estela preparava o café. Estávamos hospedando o Roberto, um velho amigo da minha faculdade que tinha uma entrevista de emprego na cidade e resolvera passar a semana para tentar a sorte com outras empresas. O problema é que desde o princípio ele me pareceu um tanto desinteressado e, inclusive, havia deixado claro que estava ali a mando dos pais. Não era da nossa conta, claro, e detesto admitir que ele era uma companhia agradável. No dia fatídico, porém, me incomodei ao vê-lo dormindo enquanto estava de saída.
- Você não deveria está procurando emprego? - O acordei abrindo a porta do quarto de hóspedes.
- Sim, com certeza eu irei, mas ainda está muito cedo, não acha? – Ele me respondeu abrindo os olhos com dificuldade.
- Não é cedo, todas as pessoas estão indo para o trabalho agora.
- Eu sei, hoje mesmo conseguirei algo. Obrigado mesmo pela gentileza cara.
Não sou de acreditar nessas coisas, mas naquele instante eu podia pressentir que algo grande aconteceria. Para piorar, chegando no andar do prédio em que trabalhava, saio do elevador e ouço uma baita bronca do meu chefe que repreendia todos os seus funcionários sem qualquer sombra de classe. Eu sabia do que se tratava e certamente sobraria para mim, por isso relutei um pouco no corredor para conseguir algum fôlego antes de entrar, o que não funcionou. Comecei a ser tomado por uma terrível onda de estresse, daquelas que se chega a sentir um sabor amargo na boca, e, sem medir as consequências, dei meia volta. Resolvi voltar para casa e inventar alguma desculpa para não acabar surtando na frente de todos.
Chegando na portaria do prédio onde morava, peço minha chave ao Vladimir, o porteiro. Estela costumava sair alguns minutos depois de mim, e a minha chave estava com Roberto que, àquela altura, também já deveria ter saído. Para minha surpresa, porém, Vladimir me disse que nenhum dos dois havia descido. Subi o elevador percebendo que não estava pressentindo nada, só estava começando a perceber o quão idiota eu era.
Chegando lá, abri as portas e caminhei até meu quarto sorrateiramente. A porta do quarto estava fechada, mas pelo buraco da fechadura pude ver aquele canalha folgado aos beijos com minha futura esposa. A ansiedade só aumentou com a constatação, mas me controlei para não fazer um escândalo. Minha mente estava vazia, não cabia qualquer pensamento naquele momento. Sai de casa sem deixar rastros tal como cheguei e, por alguma razão que desconheço, decidi voltar ao meu escritório ciente da bronca ainda maior que receberia pelo atraso. Havia algo que eu precisa fazer, mas não sabia, e quando cheguei mais uma vez no trabalho me surpreendi quando percebi que o filho da mãe ainda estava gritando com todos. Instantaneamente fui tomado por uma coragem que jamais senti antes e berrei:
- CALE A BOCA!
- O que disse? – Lúcio, meu chefe, respondeu indignado ao mesmo tempo em que todos se viravam para mim.
- O que está matando essa empresa não é a pouca produtividade dos funcionários é a sua gestão patética. Uma criança de 10 anos pode fazer um trabalho muito melhor.
- Você não deve gostar mesmo do seu cargo não é, senhor Júlio?
- Sinceramente não. E antes que me diga qualquer coisa, eu me demito.
Sai dali me sentindo um herói. Caminhei lentamente pelo corredor e não ouvi mais nenhuma palavra. Há alguns minutos eu não poderia conceber o que estava acontecendo. Meu casamento estava arruinado e, para piorar, eu abandono meu emprego! Quanta estupidez! Porém, em minha defesa, eu estava totalmente fora de mim.Todas as atitudes que tomei naquele dia, as tomei como um robô. Ao mesmo tempo eu me sentia como se estivesse despertando lentamente de um coma profundo. Meu relacionamento que parecia estável, simplesmente não fazia mais sentido, muito menos o casamento; e meu emprego, até então tolerável, se transformou em uma experiência insuportável.
Ainda como um robô suicida, me lembro de ir ao posto de combustível e encher o tanque do carro para rodar até quando me cansasse. Entretanto, achei melhor voltar ao meu apartamento para pegar algumas roupas e anunciar “formalmente” as minhas desilusões e decisões de última hora.
De volta ao meu apartamento, percebo que Roberto realmente havia saído para procurar emprego, somente Estela estava lá.
- Você não devia estar trabalhando? – Perguntei pretensiosamente.
- Eu resolvi não ir trabalhar hoje, estava um pouco indisposta. – Enquanto ela falava, me dirigia até nosso quarto para pegar cartões, documentos e trocar de roupa, certamente não pegaria estrada com uma camisa social. Chegando lá, encarei os lençóis, a cama desarrumada, o cheiro, tudo me fazia sentir nojo e raiva.
- O que está fazendo? – Estela perguntou confusa – Você está bem?
- Ótimo! Nunca me senti mais livre, literalmente. - Respondi enquanto retirava alguns peças de roupa do armário.
- Aonde você vai?
- No momento meu plano é só ficar bem longe de você!
- O que aconteceu?
- Olha, já chega! Não se faça de idiota...
- O que você tá dizendo?
- Digamos que eu sei exatamente do que se trata o seu “mal estar” de hoje. Quem sabe também tenha vindo para casa indisposta ontem e anteontem também. – Ela arregalou os olhos e se retraiu.
- Não Júlio, por favor! Você vai me perdoar, não é? – Eu sorri suavemente – A gente já passou por tanta coisa juntos, você não pode me abandonar por um deslize como esse!
- Na verdade eu posso sim!
- Você é um imbecil! Um possessivo! — Ela insistia.
- E você é uma mentirosa traidora. Nascemos um para o outro, não acha? Não... Não mesmo!
- E nosso casamento? E toda a economia que fizemos?
- Digamos que nosso casamento foi cancelado.
Eu sai e ela me seguiu em prantos até o elevador, mas não a deixei entrar e fui embora. Achava que tudo havia acabado ali, mas na portaria fui obrigado a cruzar com meu velho “amigo” mais uma vez. Não tive escolha se não acertá-lo com um soco na cara e, acredite em mim, foi um belo soco para quem nunca havia feito algo parecido antes. Segui para a saída, peguei meu carro e finalmente abandonei aquela confusão. Chegando na rodovia, ainda com os vidros abertos e sentindo o vento forte tocar o meu rosto, eu me acalmei e foi bem ali que senti algo diferente de tudo o que havia sentido naquele dia. Estava alegre simplesmente por estar ali. Não ligava para o passado, não me importava com o futuro, era apenas eu e a estrada, e aquilo me bastava.
Viajei por uma semana dormindo em uma cidade diferente a cada noite. Estava sozinho, mas nunca me diverti tanto e fizera tantos amigos espontaneamente como fiz naqueles dias. A velha fachada havia caído, eu não precisava me portar como os outros esperavam. Era como nascer de novo, mas muito mais forte e íntegro do que antes.
É claro que tive que voltar para resolver as coisas depois, e só me dei conta disso quando encarei a aliança em meu dedo após algumas noites. Era hora dar uma folga para minha recém descoberta alma aventureira e botar ordem na casa. No mesmo instante liguei para a Estela e marcamos de nos encontrar no dia seguinte.
Nosso encontro começou tenso, claro, mas quando mal percebemos caímos aos risos e piadas com tudo o que havia acontecido. Definitivamente o nosso relacionamento havia terminado, mas isso acontecera muito antes da traição. Roberto desapareceu envergonhado, provavelmente se sentindo culpado, já Estela e eu passamos mais uma semana juntos para nos desfazermos de tudo e revelarmos às nossas famílias que o sonho havia acabado. Nos descobrimos ótimos amigos nesses poucos dias, mas por razões óbvias decidimos não nos falar mais. Por coincidência a encontrei um ano depois no restaurante de uma cidade que estava visitando. Ela estava de malas prontas para ir morar no exterior e disse ainda que se inspirou em minha loucura espontânea para tomar coragem de sair do país sozinha. Continuar seus estudos fora era algo que ela sempre quis, mas nunca havia surgido uma boa oportunidade.
Eu, por outro lado, não quis retomar a minha carreira, por isso comecei a me permitir fazer outras coisas. Trabalhei de secretário, garçom, vendedor e até assistente de obras. Minha família e amigos eram completamente avessos ao fato de uma pessoa com um currículo como o meu prestar serviços tão básicos. Mas eu me sentia bem, gostava da simplicidade das pessoas, tudo aquilo me cativava.
Após uma série de empregos distintos, acabei nesta pequena oficina. Passei cerca de dois anos ajudando o senhor Aufredo e trocando boas histórias com ele durante o expediente. Aos poucos, fui pegando o jeito e até criei um estilo próprio para minhas peças que acabou agradando a clientela. Aqui também conheci Olivia, sobrinha de Aufredo, uma mulher fantástica, preciso dizer. Diferente das outras, eu e ela temos muitas coisas em comum, inclusive um passado pra lá de desapontador.
O engraçado foi quando o senhor Aufredo, percebendo que eu já conseguia tocar bem a sua oficina e sua pequena loja de móveis, me propõe uma oferta um tanto surpreendente, provavelmente inspirado nas histórias que contava sobre minhas viagens. Ele havia trabalhado aqui por mais de 40 anos e nunca conheceu outro lugar. Decidiu, então, se aposentar por conta própria e conhecer o país, desfrutar da liberdade que nunca teve. Me fez, então, uma boa oferta por toda a sua instalação, o que daria um bom fôlego para sua aventura, e não vi como recusar.
Há quem diga que todas essas decisões não fazem o menor sentido. Mas quer saber? São essas histórias que fazem pessoas satisfeitas. Não há nada como um gesto épico para dar sabor à nossas vidas.
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Coletânea Ditos e Feitos - 2020
Recanto das Letras