AS MELHORES SALTEÑAS DO MUNDO
AS MELHORES SALTEÑAS DO MUNDO
Autor: Moyses Laredo
Assim foi o convite feito a mim por um grande amigo, conhecedor das intimidades gastronômicas de Cobija, província de Nicolás Suárez, Departamento de Pando na Bolívia, fronteira com Brasiléia e Epitaciolândia, Municípios do Estado do Acre...repetiu-me ele, mais de uma vez durante o caminho, ”tu vais comer a melhor salteña do mundo, te preparas” Esse meu amigo na época era o responsável pela área da Sucam, legítima herdeira de um dos mais antigos modelos de organização de ações de saúde pública do Brasil, denominado Sanitarismo Campanhista, e fazia a inspeção epidemiológica de nossas fronteiras. Naquela época, o Brasil tinha um programa do Ministério da Saúde com o objetivo de criar uma barreira de proteção de grandes espaços de fronteiras, chegando a adentrar aos territórios de países fronteiriços, distribuindo medicamentos, borrifando as casas contra os mosquitos infernais da malária, como forma também de evitar que as doenças endêmicas se alastrassem em nosso País. Muito importante essa missão.
Feito o convite, nem pestanejei, a causa era nobre e ao mesmo tempo não deixava de ser uma viajem de turismo a “outro” País. Combinado o dia, seguimos bem cedinho em direção à Cobija, chegamos três horas depois, passamos pela Aduana (muito rigorosa àquela hora “de la mañana”, ...com todos os guardas ainda na siesta) adentramos às vielas sem pavimento nas ruas, buracos, todos de boca pra cima, como diz o velho Saló, desce ladeira, sobe ladeira, lama, cachorro, menino, dobra ali, vira acolá, para, espera, continua, até que finalmente concluímos o trabalho de profilaxia que o Brasil se dispunha a colaborar com os nossos vizinhos.
À boca-da-noite, já tomados banho, fomos a encontro da tal da birosca, a procura das famosas saltenhas. Eu já não me aguentava de tanta ansiedade pra cravar os meus dentes nas tão faladas gorduchinhas saltenhas acompanhadas com chicha, que é uma bebida fermentada a base de milho, fica melhor ainda. Novamente de volta ao Rali das ruas esburacadas, cachorro, meninos, lama etc. por fim, chegamos a tal lanchonete que, diziam servir a melhor salteña do mundo, de cansativo título, passei a falar apenas, “as saltenhas”, e pronto!
O lugar estava lotado, ambiente escuro, construção de madeira simples, com a cobertura de zinco, mais baixo do que o normal, tendo um pequeno desnível no terreno, onde o lugar ficava meio enterrado no terreno, as cadeiras com as mesinhas dobráveis de ferro com pintura descapeladas, faziam propaganda da melhor cerveja da Bolívia, a Paseña, estavam espalhadas por todos os lugares da beirada da rua, que por nós, é conhecido como calçada, mas que na verdade era tudo menos isso, digo porque, a grande quantidade de motos e os poucos carros que por ali se aventuravam, tinha que fazer um malabar para passar entre elas, se não fosse pelo horário, até cheguei a cogitar que ali se realizavam os testes de campo, de direção dos novos motoristas bolivianos.
O meu amigo me disse que iria conseguir uma mesinha para nós e se distanciou no movimentado lugar, parecia ter total intimidade com tudo aquilo, enquanto isso, nada para fazer, ambiente de pouca luz, carapanã que só a porra, som alto com todas as músicas regionais dos andes sendo tocadas, tais como: MARKASATA / FLOR DE CACTUS, CARAMBA CHIQUITA, UN CORAZON COMO EL MIO, para fugir daquilo procurei abrigo dentro da tal “birosca”, fui entrando varanda à dentro, não encontrei resistência de ninguém, como não achei mesmo viva alma para perguntar alguma coisa, continuei até chegar no quintal, onde eram produzidas as tais famosas salteñas que atraia até lá, grande afluxo de pessoas nativas e estrangeiros como nós. Confesso que à primeira vista não acreditei no que estava vendo, a pouca luminosidade me escondeu a realidade do ambiente, só uma lâmpada incandescente pendurada num bocal acima da fritadeira. Aos pouco fui adaptando a visão e conseguir vislumbrar o sistema de produção, pensei que seria expulso assim que me vissem, porque poderia revelar para o mundo seus segredos, mais que nada, até me chamaram, - venga patrício a acercarse ...e fui, encorajado pelo gentil pedido da senhora de saia rodada, cabelos em tranças, sentada num minúsculo e invisível banquinho, olhar amistoso, rodeada pelas bacias de frango com batatas, massa de pastel e o grande tacho com óleo quente borbulhando. Todos os conteúdos das bacias eram escuros quase preto, talvez a pouca luminosidade do ambiente favorecesse isso, não entendi o porquê, se as saltenhas tinham a cor de bronze, e porque os seus componentes estavam com a coloração escurecida? Então aconteceu o grande segredo das tais famosas e encantadoras saltenhas que atraiam a todos. Quando ela rebolou um pano roto, de cor desconhecida, que levava sempre enroscado no pescoço, por cima das bacias...de repente! Aconteceu uma revoada de moscas de todos os tamanhos e cores, de cima das bacias, tinha umas esverdeadas que até um zunido alto faziam quando decolavam, depois disso finalmente apareceu as cores dos conteúdos das bacias, a de frango era cor de frango mesmo com batatas, a massa de pastel era bege como deveria ser mesmo, apenas o óleo do tacho não mudou de cor, continuou preto, acho que é porque deveria estar ali há bastante tempo. Em seguida, pude observar que animais domésticos transitavam pelas pernas da gentil senhora, que aqui acolá, dava umas bicudas neles, só se ouvia o “caim-caim” do cãozinho, o cacarejar das galinhas ou o grunhido do porco que insistiam em chafurdar por entre as grossas pernas cabeludas da meiga senhora, os bichinhos estavam a procura das migalhas que escapavam dos seus grossos dedos cheios de anéis, quando enrolava as deliciosas saltenhas. Cruzava também por lá, serpenteando pelo meio do ambiente de montagem das frituras das famosas saltenhas, um pequeno veio de esgoto doméstico de cor azulado, de onde exalava para o ambiente, um fétido odor, aqui conhecido como chorume. O sistema se fechava quando as saltenhas enroladas pelas hábeis mãos das ajudantes da gentil senhora, eram lançadas no tacho e ficavam a bom pipocar no meio do azeite fervendo, para minutos depois, outra ajudante, recolhia com uma escumadeira, as que já estavam prontas na cor certa de bronze e sumia com elas numa bandeja, em direção a horda faminta que as aguardavam lá fora.
Pronto estava revelado o grande segredo das famosas saltenhas, confesso que temi pela minha vida, tinha descoberto o grande segredo. Me despedi cordialmente, pé ante pé, voltei pelo mesmo lugar que entrei, ninguém me seguiu, saí de lá mais assustado, do que cachorro com os fogos de ano novo, com tudo que vira, fui direto à procura do meu amigo. Por causa da simplicidade da senhora em permitir que eu conhecesse tal segredo, resolvi não divulgar nada a ninguém. Quando o meu amigo me viu, acenou com a mão e fui ter com ele, já acomodado, mordendo a sua ainda fumegante salteña, me fez uma única perguntinha subdividida em três, “- tu fostes lá dentro? - Tu viste como são feitas as saltenhas? - Então não vais comer!!”. Pelo meu olhar baixo ele concluiu tudo isso. Moral da história ele também conhecia o sistema produtivo e resolveu, como eu, manter o silêncio, só com a diferença, ele continuava a comer as tais iguarias. É a velha máxima da goiaba: “Coma a goiaba sem olhar se tem ou não bichos, o gosto é o mesmo, se for olhar, não vai comer”, pois não é que deu certo, as bichinhas eram mesmo deliciosas. A teoria dele era bem simples, todas as bactérias, eram torradas no óleo quente e entravam também na receita delas, como especiarias, pronto!