VOANDO NA AMAZÔNIA - PARTE 1

1. VOANDO NA AMAZÔNIA.

Autor: Moyses Laredo

Parte 1

Esse é um capítulo à parte, das aventuras voando na Amazônia, sim, porque muitas dessas histórias ocorreram comigo, não é só meu privilégio, todos que voam em monomotores devem ter se deparado, com problemas dessa natureza. Iniciei a voar pela Amazônia ainda como engenheiro do BNH, por volta de 1980/81, estavam na minha dieta (lista), os Estados do Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre, alguns fazia por voos comerciais, outros, por aviões de pequeno porte.

Num desses voo, com pequeno avião, creio que um Cessna 150 fabricado em 68, de 2 lugares, asa alta, me vi diante de um tenebroso e mau agourento “paço-bandeira”, ou seja, quando as hélices (na aeronáutica é feminino) ficam “embandeiradas”, isso ocorre quando o motor apaga (morre) e as pás ficam com seus bordos de ataque alinhadas com o eixo maior da aeronave, ou seja, giram 90º no seu próprio eixo, para reduzir o arrasto, essa é a pior sensação que se pode ter dentro de um monomotor, o avião até consegue planar por algum tempo, depois, é como que se o chão se aproximasse rapidamente. Quem cai, não sente o avião cair, e sim, o chão chegar.

Por volta das 16:00h estava presente num desse miúdos aparelhos rumando de Cacoal para Pimenta Bueno, interiores de Rondônia, que distam entre si, cerca de 40 Km em linha reta, o que levaria talvez uns 15 a 20 minutos de voo, a aeronave desenvolvia 222 Km/h aproximadamente, ou 120 Kn (nó) do alto, já se conseguia ver benzinho a cidade de Pimenta Bueno, essa aeronave, diga-se de passagem, foi arranjada de última hora, pois aquela em que iríamos, seguiu para a revisão. Essa dita aeronave, se parecia muito com aquela que o primo vagabundo do Pato Donald voava, o Peninha, para quem se lembra das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas. O avião dele era cheio de buracos e remendos de esparadrapos na fuselagem. Esse foi o avião que tomei, era exatamente igual, até faltava parte do piso, estava quase tomado pela ferrugem, dava pra ver o pavimento de chão batido do Aeródromo, mas era o único que restava no local, não tive escolha, ou voava naquilo ou pernoitava lá. Por fim, depois de tudo resolvido, conseguimos levantar voo. Mal alcançamos a altura de cruzeiro, o piloto recebeu uma fonia que pedia para ele confirmar visualmente a presença de uma aeronave da Taba (Transportes Aéreos da Bacia Amazônica) que passava à sua esquerda em mais baixa altitude já em procedimento de pouso, o piloto do “avião do Peninha” “quebrou a asa” i.é, fez uma curva brusca fechada para esquerda, deu um mergulho, me enterrando na cadeira, fiquei estatelado de susto com aquilo, em seguida alinhou a proa em direção ao avião da Taba, que por ali passava exatamente, segurou o manche com as duas mãos, balançou-o, fazendo-o tremer, e fez com a boca o som de uma metralhadora ponto quarenta da segunda guerra: - tá-ra-tá-tá tá-ra-tá-tá. – Isso tudo com aquela careta de piloto japonês, para em seguida responder pela fonia - “Avistado e abatido!” Confesso que não estava preparado para essa guinada brusca, também nunca tinha visto alguém brincar “lá em cima”, dessa maneira, por azar, sua brincadeira resultou logo mais, numa pequena pane, não demorou muito nosso avião começar a apresentar um descompasso no motor, rateava (falhava) com frequência, dando claros indícios de problema à vista, isso, àquela altura (altitude mesmo!), se torna agoniante, porque sei bem, o que nos protege do chão duro, é somente uma fina casca de alumínio. Diante disso, comecei a pressionar o piloto se não seria mais seguro retornar a Cacoal, mas ele insistia em seguir adiante, apontava à frente, batendo com o nó do dedo médio no para-brisa, para mostrar a proximidade com a cidade de Pimenta, - “já bem ali em cima” como dizia, argumentou que conseguiria levar o avião até lá tranquilamente, embora o motorzinho sambado estivesse dando sinais evidentes de falha, pra mim ele tossia, cada vez mais insistente, igual tosse de fumante, seca e repetitiva, o piloto disse que era a tal da mistura, (ar e combustível) que quando estava desregulada aconteciam essas falhas, mas que logo iria “passar”, começou a puxar e enfiar um botão, no painel, que tinha uma haste comprida, como se estivesse bombeando algo, o aparelho até que respondia, dava umas enguiadas (No norte, significa colocar para fora, regurgitar, vomitar) e ganhava mais rotação momentânea nas hélices com alguma propulsão, diante da insistência dele, concordei, ou bem ou mal, o aviãozinho continuava voando, na aviação tem uma máxima que diz: “se está voando, está tudo bem, deixa voar”, aquela tomada de decisão complicou, embora já estivéssemos a meio caminho, e ainda, pelo fato de não ter aonde aterrissar, e mais, que para retornar gastar-se-ia muito tempo e com um sério agravante, na curva, o avião perde mais sustentação e consequente mais altitude, portanto, querendo ou não, a melhor opção era continuar “voando”. Diante de nós o que se descortinava era um rasgo amarelado que denunciando ser a BR-364. Pedi-lhe então, apenas que seguisse por cima da estrada, para caso de emergência, (a mim pareceu claramente que já estávamos) tivéssemos a alternativa de pousar lá, ele não gostou muito da ideia, queria mesmo “atalhar” cruzando a mata, disse-me que se seguisse a BR levaríamos mais tempo, mesmo assim não permiti, dei a ordem! - Ou você segue voando por cima da BR ou pousa nela! Naquele momento a ideia de pousar na BR me era muito mais atraente diante da situação, tentava ainda me controlar, procurava dialogar com ele, sem me deixar entrar em pânico, pois tinha certeza que não ajudaria em nada a resolver o problema. A BR 364 se mostrava do alto, bem terraplanada, uma linha amarelada, não entendia o porquê da relutância do piloto. Nem acabamos de conversar quando o motor fez igual aqueles bandidos de filmes antigos de faroeste, que eu assistia no Guarany, quando o bandido, antes de cair com um tiro certeiro do artista, (onde nunca se via o sangue), fazia careta, apertava a barriga davam aquele pulinho para trás, foi isso mesmo que senti no avião, ele deu um solavanco depois uma freada brusca no ar, nesse momento as hélices EMBANDEIRARAM! Deixaram de exercer propulsão, simplesmente o motor resolveu parar e pronto, parou! Houve um silêncio assustador, só se ouvia o vento passando pelas frestas dos buracos, pensei, agora é cair e cair. Nesse exato momento o piloto estava contornando para seguir por cima da BR, antes desse engasgo definitivo, o pequeno avião ainda estava com a proa virada direto para a cidade de Pimenta Bueno, mas, quando deu o último suspiro, seguimos rapidamente em direção à mata que se interpunha ao rasgo da estrada. O piloto, numa última e desesperada tentativa, girava a chave da ignição e ficava insistindo, como eu fazia no meu fusquinha quando se recusava a pegar, isso fazia a hélice girar somente com a carga da bateria, porque o motor não dava continuidade, simplesmente conclui que acabara o combustível, nem isso o desmiolado piloto, tinha se precavido, estávamos diante da famigerada pane seca (falta de combustível) a mesma que derrubou o avião da Chapecoense em novembro de 2016, e assim, nessa luta agoniante, vendo a hora de despencarmos, conseguimos finalmente, num impulso das hélices transpor as árvores frondosas à nossa frente e ficar diante da estrada, foi um sufoco esse lapso de segundo, o tempo é relativo mesmo, como disse o falecido Einstein, depende do lado do evento em que você se encontra, ou fora ou dentro dele. Se fora, passa rápido demais, se dentro, demora uma eternidade, mas o fato é que conseguimos ultrapassar as frondosas castanheiras e vislumbrar a rodovia, já bem mais próxima, achei que tudo estaria bem depois desse desespero. Com a proa nivelada e aprumada na estrada, nem precisou dar início ao procedimento de pouso, porque o pequeno avião embiocou, precisou-se somente desviar dos caminhões atolados pelos quais passou raspando com a asa, até conseguir-se enxergar uma parte limpa da estrada para então afrouxar tudo, baixando os flapes para pousar. Na realidade a vista lisinha da BR era só das alturas, porque em baixo, era pior do que as crateras da lua, toda esburacadas e com lama até o tucupi, o que restou do avião depois do pouso, foi pouco, o trem de pouso quebrado (trem de pouso triciclo fixo, não retráteis) chamado também no meio, de “canela dura”, duas pás entortadas tipo patas de aranha, bico amassado e uma das asas com a extremidade arrancada e alguns hematomas na minha testa causado pelo impacto com o painel, no mais, todos ficaram sem ferimentos. O piloto quando desceu, chorava feito criança, seu avião tinha se lascado de vez, achei ótimo, assim o sacana não expunha mais ninguém ao risco de morte, quase pagou com as nossas vidas sua negligência e irresponsabilidade.

A noite já quase em cima, não havia sequer condições de retornar a pé para Cacoal, não se consegue andar nem 5 quilômetros por dia, que dirá o que já havíamos voado, talvez uns 20km, pegar alguma carona nem pensar, nenhum carro, ou moto passava por ali, o atoleiro impedia. À noite, se avistava à montante ou à jusante, (atrás e a frente) aquela fila interminável de caminhões atolados, parecia uma cobra grande enfeitada de luzes, igual ao dragão da cultura chinesa, todos parados esperando uma alma boa para puxá-los. Alguns moradores que possuíam um pequeno jerico (trator) faziam um servicinho aqui acolá, puxando uns e outros, mas cobrava o olho da cara, as vezes, o coitado do caminhoneiro não andava com dinheiro, usava cartão para pagar o combustível ou, tinha crédito em seus conhecidos pontos de paradas então o jeito era esperar bom tempo, sabe-se lá quanto tempo ainda passariam ali “morando”, acabando com o próprio rancho. Pois bem, esse era o quadro que se apresentava diante dos “sobreviventes” do voo, não tinha nenhuma alternativa, o sofrimento e a voracidade por sangue novo dos carapanãs, era admirável, numa questão de poucos minutos meu pescoço e braços, ficaram todos pintados, não adiantava se debater, os bichinhos voavam atrás de você em enxames. Um caminhoneiro, vendo o meu drama, (a essa altura perdi de vista o piloto), me ofereceu dormir na carroceria baú de seu caminhão frigorífico – Como? Ai dentro? - Meu amigo, eu agradeço a gentileza, mas vou morrer congelado! Ele respondeu: - “Morre nada! Não vai não, eu mesmo já passei uma noite ali dentro”. Contou que por conta de uma carona que pegou quando o seu caminhão com carga seca (com produtos não perecíveis) tombou. Ainda relutante, perguntei-lhe - E como é isso meu amigo? – É simples, você entra, se agasalha e dorme, assim você se livra dos carapanãs sanguessugas. Topei, pelos menos era uma alternativa, escrota, mas era a única. Fiz o que ele sugeriu, abri minha pequena sacola, retirei e vesti umas duas mudas de roupa depois escorei a sacola nas costas por cima de um dos sacos com frangos congelados, (era essa a sua carga) ele fechou a porta (não trancou) e eu me aconcheguei e consegui dormir, mesmo assim, com a companhia de alguns valentes carapanãs que me seguiram, o azar deles é que não sobrou nada de pele exposta para eles ferrarem. O sono foi pesado e tudo passou muito rápido, de repente, abri os olhos vi um rasgo de luz pela porta não trancada, pulei fora, já era dia claro, a movimentação estava grande no meio deles, os caminhoneiros são muitos solidários uns com os outros. Um gaúcho com um enorme bigodão, de bombacha e tudo, me esticou uma cuiada de chimarrão quentinho, aceitei, já tinha experimentado no Rio Grande e gostei, matava a fome e esquentava o corpo da noite fria do frigorífico. A situação parecia sem saída, eu acabaria como eles, ali parados no tempo e no espaço, a diferença é que eles tinham o que comer e precisavam manter guarda nos seus respectivos caminhões e eu não, então, partir para tentar sair dali. Andei em direção a um casebre do outro lado da cerca, bem lá nos fundos do terreno, pulei a dita cuja, e me aproximei, ouvi de longe uma voz vinda dos fundos, me dizendo que ali não havia sanitário, eu lhe respondi que não buscava nenhum, queria apenas saber se ele tinha como me ajudar a sair dali, ou se havia algum transporte para me levar até Cacoal que eu pagaria, com essa palavra mágica, o sujeito “se apareceu”, era alto magro de barba longa, chapéu de palha, trazia no bico um porronca, ele saiu de trás da palhoça, carregando na mão, uma doze (espingarda calibre 12) e disse que não possuía nenhum veículo, e nem adiantava ter, porque não tinha como rodar nesse atoleiro medonho, fiquei desapontado, ele era a minha única chance. Foi então que vendo o meu desespero, perguntou-me se eu “montava”, disse-lhe que sim, porque na época que andava pelo Cambixe entregando quadros para o meu pai, nas folgas, dava uma suadeira no pangaré do Tineri, isso me valeu e muito. Ele arreou dois cavalos e me ofereceu o mais magro e seco, até me deu pena montá-lo, mas, a necessidade era maior, peguei minhas tralhas e lá fomos no trote lento mais constante, que alívio sair dali, depois de três horas cavalgando cortando a mata e escolhendo caminho, em meio aos atoleiros mais medonhos, que as vezes engolia as pernas do cavalo até ao jarrete (joelho traseiro) mas, conseguimos chegar numa localidade de solo mais seco, onde havia um pequeno comércio e um ônibus velho todo lascado, do tipo que chamavam de mini saia, porque o para-choque traseiro e dianteiro foram removido e boa parte da lataria também, dando-lhe essa impressão, tudo para não se quebrar nos buracos da estrada. Já ficava no ponto com o motor ligado, porque se desligasse, não pegava mais. Esse ônibus fazia linha para Cacoal, desci do cavalo batendo a lama das calças, com a bunda em frangalhos, perguntei ao motorista se ele levava mais um passageiro, ele confirmou, voltei ao senhor dos cavalos, paguei-lhe o combinado, agradeceu e aproveitou para levar umas comprinhas no mercantil local, vi de relance, um pacotinho de fumo e outro de erva pro seu chimarrão, estava eu por perto, porque também comprei água e bolacha, era o meu café/almoço, porque já passava das 12:00 h, o velho chimarrão gaúcho que me segurou. Aguardei a partida do ônibus e consegui sair dali, para contar depois nas minhas aventuras. Nunca mais tive notícias do piloto, nem sei o que aconteceu com as “investigações do DAC” sobre queda de aeronaves, como também, não li nada a respeito, foi como se o evento nunca tivesse ocorrido, um claro indício de que aquilo em que voávamos, nunca tinha sido registrado em lugar nenhum.

Molar
Enviado por Molar em 06/05/2020
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