Navio Negreiro
Bomani e Kwame nasceram e cresceram nas terras altas do interior de Angola. Nasceram livres e acostumados às chuvas de fim de ano, que tornavam úmidas as florestas tropicais e traziam de forma traiçoeira as doenças como varíola, febre amarela e malária. Do alto de seus dez a doze anos, haviam sobrevivido às pestes e ao convívio com crocodilos e outros animais de grande porte. Pertenciam à etnia Mbundu, povo Bantu, assim como a maioria dos angolanos. Crianças fortes que eram, acostumados a todo tipo de aventuras, destemidos...
Mas não estavam preparados para lidar com um outro tipo de fera, selvagem e impiedosa, incompreensível para a visão daquelas almas, acostumadas à negritude natural que habitava o sol tropical.
Foi então que ao entardecer de um fatídico dia acabaram por se deparar com estranhos homens, pele clara, barbudos, malcheirosos e com uma fala estranha, até meio cômica para os seus padrões. Traziam estranhas lanças brilhantes que cuspiam fogo e grandes facões na cintura; usavam canudos de pele nas pernas até os joelhos. Andavam em bandos barulhentos acompanhados de cães e cruzes. Interessante que em meio aos brancos caminhavam outros negros como eles, mas vestidos de forma estranha e parecendo amistosos com os estrangeiros.
E foi exatamente um homem dessa mesma etnia que avistou nossos pequenos aventureiros e deu o alarme. Do alto da clareira onde espiavam foram surpreendidos e rapidamente capturados. Sem entender direito e trôpegos pela violência dos imundos forasteiros, se viram presos pelos pescoços por argolas de ferro, atados por correntes a outros garotos como eles e forçados a caminhar por dias até uma região árida, onde nunca haviam estado antes. Ouviam sempre alguém gritar libambo, libambo; mas com mãos e pés machucados, fracos pela fome e maus-tratos, já não mais compreendiam nada além da dor e desespero que sentiam.
Mais alguns dias de dolorosa caminhada e foram jogados nos porões de uma construção erguida em pedras, pútrida, cheirando a dejetos humanos. Parece que estavam em Benguela, murmuravam outros cativos.
Por ali ficaram vários dias, alimentados como bichos com uma lavagem rala e sem visão da luz do dia.
Até que uma manhã trouxe a luz do sol, por entre os ferrolhos de uma grande porta de madeira que se abriu e descortinou ao longe um mar azul, como nunca haviam visto, apesar de semicegos pelos dias de privação da luminosidade.
Suas pupilas foram paulatinamente se adaptando e puderam então ver ao longe, soerguendo-se majestosa sobre a superfície das águas, uma grande embarcação, por sobre a qual se abriam grandes asas brancas de pano, estufadas pelo vento, adornadas com grandes cruzes em tom vermelho sangue.
Bomani e Kwame entreolharam-se e por um breve instante, quase se sentindo imunes à dor, renderam-se ao seu macabro destino...