A última viagem

E lá se vai o ônibus da comunidade. A favela tem seus mistérios...

Entram mais dois passageiros.

-Bom dia, motorista!

-Bom dia, D. "Neiva"

Como me pareço com ela, toda a favela me chama assim agora!

Alguém grita: Neiva do Céu!

E todos rimos. é assim.

Todas as vezes que temos que deixar nossas casas para trabalhar no Centro da cidade...

Eu observo o mundo pela janela.

E corro os olhos para dentro do busão...

Devagar aí, motorista!- grita o Pedro.

A favela não vai sair do lugar!- e ele ri.

A gente meio que sabe, mas finge que nada está demais - e a velocidade a mil por hora.

Essa é correria para a cidade grande.

Sabe como é...

É como dizia um grande escritor Guimarães Rosa...

Para pobre, todo lugar é longe...

E me pego longe de novo...

Longe da vida.

Longe dos sonhos.

Longe do trabalho.

Ainda bem que não preciso fazer a tal baldeação.

Coisa chata!

A viagem segue...

Faltam duas incansáveis horas...

E olha que já cochilei, acordei e cochilo mesmo...

A vida de pobre tem um pouco disso.

Uma aventura...

O ônibus para pela milésima vez...

Entram mais passageiros.

Parece um útero materno...

E não cabe mais ninguém...

É a famosa definição de "lata de sardinha"...

Mas continuo a minha jornada...

Joana me acorda...

- Tchau, amiga!

-Bom trabalho!- eu respondo!

E ela retribui com um sorriso encantador.

Menina nova!

Cheia de sonhos!

Dá para ver em seus olhos.

Eu fui assim.

Eu tinha muitos sonhos, desde meninota!

Queria tanto mudar a comunidade.

Ser uma preta de poder.

Fazer trabalhos sociais...

Mas apanhar sempre de PM?

Correr da bala perdida ou ser atingida por ela?

Tantos horrores: tráfico, falta de oportunidades, falta de humanidade e dignidade.

É na favela que vemos como o sistema nos torna um nada.

Reduz tudo.

Reduz a nossa vida.

Mas quanto à Joana...

Vai dar muito orgulho à comunidade!

É como se fosse para lá para dar vida ao local!

Ali é um dos palcos dela.

É como se alguém dissesse:

É a hora da estrela Joana...

Mas temos um coração selvagem...

Ou melhor, estamos perto do coração selvagem...

Já dizia Clarice...

Mas o coração nos dá essas alegrias.

Dá esperança.

Mas...

A vida nos rouba essas alegrias.

Ela nos afasta de sonhos e esperanças...

Na verdade, todos sabemos o perigo de escolher.

Mas é mais fácil culpá-la.

O motorista freia bruscamente, vou lá na frente e volto...

E olha que estou sentada.

Calma, motorista!- grita um passageiro novato.

Passado o susto, e todos bem, tento tirar aquele cochilo.

Dois caras entram...

Estranho...

Não os conheço...

Escondo os pertences...

Sei lá!

Esse mundo anda tão doido...

Falaram algo com o motorista e um deles puxou alguma coisa...

Não acredito...

Meu Deus!

Que susto!

É um papel...

Ônibus errado!

Descem...

E vem um senhor simpático...

E lá vamos nós...

É o tempo demora a passar...

Ainda mais qdo temos pressa.

Tumulto?!

O que está acontecendo?

Não acredito!

Velhinho sem vergonha!

Opa! (firmo os olhos)...

Não é um velhinho...

É um cidadão disfarçado!

Não creio!

Todos fomos enganados...

Como esses caras entraram?!

O velhinho é um bandido...

E agora?

Fico desesperada!

Não acredito!

Fico imóvel!

Sinto alguém me incomodando...

Que susto!

É uma arma!

Meu Deus!

Tento resistir!

Sou puxada!

Ele está me batendo!

Tento bater nele...

Sinto algo frio encostando em mim...

De repente, um barulho...

Me afasto!

As pessoas estão me olhando.

Por quê?

Será que estou diferente?

Que dor!

Isso é sangue?!

Caio!

Sem forças...

Cadê todo mundo?

Estou sem forças...

Caída...

Tudo sumiu...

E assim entro para uma triste e inevitável estatística...

Maria José Gomes

Nascimento: 30/03/1960

Óbito: 12/12/12

Causa: Violência generalizada nas favelas do RJ.

Rafael (sinuqueiro)
Enviado por Rafael (sinuqueiro) em 24/03/2020
Reeditado em 05/11/2024
Código do texto: T6896144
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