Questão humanitária

- É uma questão humanitária - afirmou o advogado Yuksel ao telefone. Do outro lado da linha, o comandante do porto não pareceu sensibilizar-se.

- Não queremos nos tornar destino de refugiados - retrucou o comandante. - Essa gente vem até nós fugindo de uma guerra que não sabemos como irá acabar, e cujo governo os têm na conta de criminosos.

- Não são criminosos - argumentou Yuksel. - Eu fui a bordo, há muitas famílias, com crianças. Temos que decidir o que faremos com eles, a barcaça onde vieram não é apropriada para levar passageiros. Na verdade, era usada para transportar gado.

- Os britânicos também não os querem em seu território - prosseguiu o comandante. - Por lá já há refugiados demais. Certo é que não poderão desembarcar.

- Apelo para a sua humanidade - insistiu Yuksel. - São 800 pessoas apinhadas em condições precárias numa embarcação que não comportaria mais de 150 em condições normais.

- Uma barcaça de gado, você disse - replicou o comandante. - Se pudessem ir embora por seus próprios meios, eu os mandaria seguir viagem.

- Mas não podem - redarguiu Yuksel. - O motor está quebrado, como sabe.

Silêncio do outro lado da linha.

- Bem, vou mandar rebocá-los - afirmou finalmente o comandante.

- Desculpe, senhor... mas para onde? - Questionou Yuksel preocupado.

- Para um local onde poderão cuidar deles - garantiu o comandante de forma categórica.

A resposta era vaga, mas Yuksel a tomou como um compromisso. Após desligar, voltou ao cais onde procurou inteirar-se do novo destino da barcaça.

- De volta ao mar alto - informou o capitão do rebocador que cumpriria o trabalho.

- Mas eles acabaram de fazer a travessia para cá! - Exclamou Yuksel alarmado.

- Tenho minhas ordens; e elas são para colocar a barcaça no rumo das águas controladas pelos russos - retrucou o capitão.

E só então o advogado compreendeu que em nenhum momento o comandante do porto quisera ajudar os refugiados. A marinha russa tinha ordens para afundar embarcações não-identificadas que entrassem em suas águas territoriais.

Não teve coragem de avisar os passageiros do destino que os aguardava. Do cais do porto de Istambul, acompanhou com o coração apertado a partida da barcaça superlotada, puxada pelo rebocador que a levaria para a destruição certa no Mar Negro.

- [08-03-2020]