O familiar do príncipe
Era voz corrente entre as forças parlamentares que o príncipe Ruperto do Reno, campeão dos realistas, era protegido por feitiçaria. Mais especificamente, por um "familiar", um grande poodle branco chamado "Boye", que o acompanhava nos campos de batalha.
- Eu mesmo vi com meus olhos - assegurou-me Udric Veldon, alguém dado a certos exageros quando se tratava de descrever os combates dos quais participara. - Aquele cão do demônio cavalgava com seu dono, e nossas lanças e balas não atingiam o príncipe!
- Talvez precisemos melhorar a pontaria - retruquei. - Nada me faz crer que se trate de um animal mágico, apenas de um mascote do príncipe.
Todavia, é difícil conter certos tipos de boatos, principalmente quando o adversário se apropria do dircurso, ora para representar seus inimigos como crédulos ignorantes, ora para nos fazer crer que, sim, algo de mágico havia no tal poodle Boye.
- Imagino que esse cão de batalha precise comer, como qualquer outro ser vivo - ponderei, matutando uma solução para o problema.
- Até onde eu saiba, mesmo familiares não prescindem de alimentos - assentiu Udric Veldon. - Mas se está pensando em envenenar o cão, acredito que o príncipe deve ter tomado todos os cuidados para que tal não aconteça.
- Muito provavelmente - avaliei. - Mas não, não é minha ideia envenenar Boye; o príncipe fará isso por nós.
Udric encarou-me com os sobrolhos erguidos.
* * *
E antes da batalha de Marston Moor, confronto decisivo entre as forças parlamentares e as tropas do rei Charles, fiz com que um presente de boa sorte chegasse ao acampamento do príncipe Ruperto, supostamente enviado por seus admiradores: duas galinhas gordas, vivas. Era um presente realmente principesco, e, como era de se esperar, após mandar seu cozinheiro prepará-las, o príncipe deixou os ossos para que seu cão favorito se fartasse.
No dia seguinte, as tropas parlamentares sob o comando de Oliver Cromwell avançaram contra os realistas do príncipe Ruperto. Segundo soubemos após o confronto, Boye havia amanhecido vomitando e seu dono decidira deixá-lo preso no acampamento. Todavia, pressentindo que o príncipe precisava de sua ajuda, fosse ou não mágica, fugira e entrara no campo de batalha.
Boye foi visto pela última vez por soldados parlamentares, agonizando, sangue escorrendo do focinho. Conforme eu previra, o próprio príncipe, movido pelo seu amor pelo animal, fizera o trabalho sujo por nós.
A batalha de Marston Moor foi um duro golpe na estratégia realista, e a partir dali, as forças de Cromwell começaram a impôr-se ao inimigo. E, ao menos do ponto de vista da propaganda, isto só nos custara duas galinhas e um cão esfomeado.
- [03-03-2020]