A ilha dos Loucos

Essa história se passa com um jovem que viveu grande parte de sua vida em orfanatos que saiu para atender a um pedido de sua mãe adotiva vivendo assim, uma grande aventura.

Seu nome, Lucas, também conhecido pelos seus amigos de infância como cabeça. Isso porque era na maioria das vezes, o mentor intelectual das travessuras do grupo e por conta disso quase sempre sofria as consequências das traquinagens, sendo um dos motivos pelo qual mudava de orfanatos com frequência.

Não criava raízes e nem amigos sinceros e assim, Lucas viveu sua infância e adolescência em orfanatos. Filho de mãe solteira que não resistiu ao parto, foi muito pequeno para uma instituição de caridade sendo transferido de tempos em tempos por conta do seu comportamento inquieto e irreverente. A desculpa era a mesma. A instituição passava por dificuldades e teria que colocar alguns internos em outras instituições. Foi assim, que ele chegou a um onde ficou sob a guarda de dona Tereza ou tia Tereza como era tratada pelas maiorias dos internos. Lá, sob a tutela de tia Tereza, Cresceu em busca de sua identidade no mundo. Solitário por natureza, encontrava nos braços da tia Tereza o conforto e a paz que precisava para manter-se vivo. Dotado de grande inteligência e de uma memória invejável, quase sempre participava de eventos culturais e esportivos que o colocava em evidência e por tanto atraia tanto os louros quanto a ira dos demais concorrentes.

Era feliz do seu jeito e tinha a Tereza como uma referência. Gostava do ambiente e não se cansava de ajudar aos menores nas atividades do orfanato. Por outro lado, a Tia Tereza, senhora já dos seus sessenta anos o tinha como um filho. Atendia aos seus caprichos e escondia suas travessuras dos demais sempre justificando de alguma forma.

Seu mundo era perfeito. Tinha tudo o que precisava. Carinho, atenção e amigos.

Lutava junto com dona Tereza e dona Ana para que os menores fossem adotados. E, para isso, criava histórias, sensibilizava as pessoas que ali iam. Contava essa ou aquela situação construída pelos garotos, sempre no intuito de colocá-los na fila de adoção imediata. Ficava feliz quando ocorria. Do seu jeito, era um sonhador.... Um vencedor!! Se orgulhava disso.

Mas, naquele ano, as coisas mudaram radicalmente para o nosso jovem. Tia Tereza ficou doente e dessa doença veio a óbito. Todos sem exceção ficaram consternado com o que ocorreu. O Lucas então, inconsolável. Ficou quase mudo. Não falava com as pessoas, ficava pelos cantos pensativo e alguns momentos, ia ao cemitério próximo visitar o tumulo daquela que era sua grande amiga, sua mentora e protetora. Lembrava com saudades os momentos de conversa que tiveram. Gostava de ouvi-la falar de sua terra Natal e de suas aventuras pelo mundo até chegar ali. Se sentia parte dessas histórias e com a imaginação fértil dava asas as aventuras que ela lhe contava.

Mas agora não estava mais ali. Sentia muito sua falta. Considerava-a como mãe. Uma mãe que nunca tivera a oportunidade de conhecer....

Nesse estado pensativo não viu a aproximação de dona Ana, amiga inseparável de tia Tereza.

- Lucas, meu filho, vamos pra casa. Está ficando frio aqui fora. Tenho algo para lhe contar. Não posso guardar mais esse segredo comigo. Vamos....

Aquelas palavras despertaram curiosidade. Que segredo dona Ana queria revelar?

Olhei para aquela senhora, e vi no seu semblante a aflição de algo que a torturava. Prontamente deixei-me levar sem questionamentos...

Ao chegar nas imediações dos alojamentos do orfanato, ela virou-se para mim e disse: Olha meu filho!!! O que tenho a lhe dizer é sério!! Você precisa saber de algumas coisas que são importantes para você. Estou arrumando as coisas de tia Tereza e encontrei alguns papeis que lhe dizem respeito. Gostaria de lhes entregar. Mas, por hora você vai tomar banho como um bom menino e nos ajudar a servir as outras crianças. Lá pelas tantas da noite, antes de dormir, vou lhe chamar para irmos ao antigo quarto onde ela guardava esses documentos.

Saí calado e pensativo, atendendo a bondosa anciã a quem nutria apreço. Na minha mente não parava de tentar adivinhar o que seriam esses documentos e qual a relação que teriam comigo. Não adiantava questionar com dona Ana. Sabia disso. Na hora certa ela revelaria. Teria que aguardar, portanto o momento acordado.

Cumpri rigorosamente com o combinado e aguardei ansioso pelo seu chamado. Que não demorou muito. Assim que as atividades sessaram no orfanato ela veio me buscar. Caminhei em silencio lado a lado até nos posicionarmos em frente da porta de Tia Tereza. Estava trancada. Desde o dia em que ela foi removida para o hospital que evitava passar por ali.

Dona Ana como que compreendendo meu estado emocional, abriu a porta e me convidou gentilmente para entrar. Atendi de forma tímido...Entrei e acanhado, sentei-me próximo à mesinha que havia ao fundo. Observei as coisas. Tudo estava como antes. Os objetos, a decoração, tudinho no mesmo lugar... Era um convite a buscar recordações que pensava estarem adormecidas. As lagrimas vieram quase que involuntariamente e molharam o rosto suavemente. Dona Ana quieta em um canto observava com atenção a serena.

- Sei como você se sente meu garoto!!! Você tinha especial apreço por Tereza e cá pra nós, ela tinha e nutria muita afeição por você. Nas nossas conversas de fim de tarde ela tecia muitos planos para você. Mas sente-se aqui, na cama, ao meu lado. Vamos compartilhar algo que descobri...

Sai da apatia em que me encontrava e me sentei ao lado daquela senhora que aprendi a admirar e aguardei pacientemente.

Ela retirou de uma pequena cômoda uma pequena caixa contendo uma serie de cartas endereçadas para mim. Com um sorriso no rosto me entregou e se levantando disse. Vou para meu quarto. Quando você terminar por aqui apague a luz e feche a porta. Boa leitura meu filho. Saiu rapidamente sem olhar para trás.

Lucas ficou momentaneamente paralisado. O que poderia haver naquelas cartas que não pôde ser dito pessoalmente. Eram muitas.... pareciam estar organizadas de forma sequencial.

Procurei acomodação na cama e puxei o primeiro envelope cheio de expectativas...

‘ ... querido Lucas peço perdão a você. Quero que saiba que nutro um amor muito grande por você. Desde quando o vi chegar às portas do orfanato, fiquei consternada e , após conhecer sua pequena história de vida, muito parecida com a minha por sinal, não tive dúvidas. Iria ser sua madrinha enquanto você estivesse aqui...Assim o fiz, entre cuidados e mimos, busquei assisti-lo e protege-lo. Mesmo quando fazia suas travessuras...Eram dias felizes que acredito termos passados juntos. Você não tem ideia o quanto fez bem a essa velha chorona sua presença. Mas o que vou lhe revelar, vai deixa-lo muito zangado comigo. Levei muito tempo pensando se contava ou não esse segredo...

Só peço como último pedido, que independente dos seus sentimentos comigo, leia todas as cartas que fiz para você. Lá existem muitas informações que você precisa conhecer....

Bem, lá vai.... só para que você saiba... o que fiz foi por amor... Você teve duas possibilidades de adoção... todas as duas, escondi e não deixei que o processo se concretizasse. Não queria perde-lo, tratava-o como a um filho que nunca tive.

Não pense que não queria seu bem...Queria, mas ao mesmo tempo não queria lhe perder.... Passei minha vida inteira tendo que abdicar de sonhos e me esconder.... E você preenchia esse vazio e esse propósito de vida que passei a alimentar aqui...Muitas vezes me perguntava se era egoísmo prendê-lo ao meu lado não dando chance de escolhas. Cheguei aqui pequena. Retirada dos braços de minha mãe ao nascer. Aqui fiquei escondida, sob a tutela do nosso administrador que me deu um outro nome (esse que você conhece) e manteve sob a guarda de uma outra garotinha na época de nome Ana. Hoje uma grande amiga e irmã. Essa é outra história que você vai conhecer mais adiante.... Quando estiver pronto...Em fim, sou uma mulher de muitos segredos e nas outras cartas você vai conhecer melhor a sua Tia Tereza... beijos...”

Anestesiado, pelo pequeno relato, não sabia o que pensar.... A cabeça estava uma confusão só. Resolvi que só sairia daquele quarto quando lesse todas as cartas...e assim, levou noite a dentro mergulhado na leitura de fatos e histórias de vida...Exausto pelas leituras e emoções provocadas por elas, veio a dormir, so despertando pela mão amiga de dona Ana que o acordou bem cedinho....

- Bom dia meu menino, como foi sua noite? Dormiu bem?

- Não sei dizer... Acho que cochilei.... Que horas são?

- Já passam das cinco da manhã.... E ai? Encontrou respostas para suas inquietações?

- A senhora sabia de tudo que ela escreveu aqui?

- Sim!!! Escrevemos juntas!!! Ela era minha garotinha... Cuidei dela quando chegou ainda pequenina. Ensinei muitas coisas...

- Ela gostava muito de você... Tanto que lhe adotou sem você saber...Não podia contar para os outros sob pena de terem que ir embora. O administrador sabia de tudo e manteve sigilo até o presente momento. Você só falta mais seis meses para alcançar a maioridade e logo terá que seguir seu rumo.

Tem muito mais coisa para você. Essas cartas só contam uma parte da história dessa mulher...

Esse final de semana, fiquei de arrumar as coisas dela. Você pode me ajudar e ver outras coisas que ela tem guardado no Bau. Vai ser muito interessante.

Assim fizemos... Passamos o resto do final de semana redescobrindo Tia Tereza, ou melhor, mãe Tereza.

Nunca li tanto e nunca me espantei com as descobertas que aquela mulher nos revelou através das suas anotações.

Para começo de história ela não se chamava Tereza. Esse nome por sinal foi arranjado para esconder aquela criança que chegou a muito tempo atrás nos braços de um desconhecido, para se abrigar por ali. Nascida em uma região de clima temperado para frio, em uma ilha de propriedade privada de um produtor rural. Essa ilha abrigava um hospital para tratamento de doenças mentais. Os conflitos, os interesses políticos que permeavam a época, recortes de noticias de jornais velhos que foram cuidadosamente guardados, o grande incêndio que ocorreu na ilha. A repercussão do fato. O fechamento do hospital da ilha pelas autoridades, a busca por sobreviventes que poderiam ter escapado daquela situação.

Pelo que foi dito nas anotações, ela nasceu nesse hospital e conseguiu sair por ocasião do incêndio. Sua mãe se chamava Maria que era esposa de uma pessoa de grande influência na região. Não ficou claro o porquê dela estar por lá.

Haviam vários desenhos infantis que retratavam imagens, que pareciam ser da ilha de onde ela teria vindo. Sendo que boa parte tinha motivos aquáticos: Barcos, mar, aves um grande farol, rostos...Estava explicado um dos mistérios que tentava entender. Seu quarto era todo decorado com motivos aquáticos e ela falava do mar com uma propriedade só comparável à aqueles que nele viveu...

No meio das anotações, muitos desabafos e desejos revelados... O de voltar, o de rever o ambiente infantil que tantas lembranças marcaram aquele ser...

No meio de tantas informações, uma carta endereçada a ele... Estava ali, em preto e branco...

“meu querido, sei que muitas dúvidas lhe assaltam o ser.. Essas revelações impactam seu espirito jovem... Mas convivo com uma doença que a muito tempo me acompanha. Nos últimos anos percebo o avanço da enfermidade. Sei que o meu desejo de volta à minha terra natal não seja mais possível. Prometi a uma mulher valorosa que retornaria. Minha adorada mãe.... Mas o querer e o poder não andam de mãos dadas. Peço que se você puder dar continuidade a essa promessa, serei eternamente grata. Caso não queira, siga seu caminho com as minhas bênçãos.”

Com lagrimas nos olhos buscava o olhar sempre atento de dona Ana. Ela sempre sorridente. Compreendia o que se passava no íntimo. Cumplice dos segredos ali revelados, dona Ana ainda tinha muitas coisas por revelar. Aguardava somente o momento oportuno para isso.

Durante as semanas que se seguiram muitas foram as surpresas descobertas. A mãe Tereza, guardou uma pequena soma em dinheiro com expressa orientação para ser entregue quando da maior idade de Lucas. Tinha também um curso de náutica todo pago para que pudesse se habilitar na condução de embarcações de pequeno porte. Mas o mais interessante veio do próprio administrador...

Certa noite procurou o jovem interno e fez o convite para continuar a morar ocupando aquele aposento e continuar prestando serviços ao orfanato parte do horário, enquanto no outro, estudava na vila.

O rapaz ficou muito feliz com a proposta e de imediato aceitou. Informou apenas que ao concluir seus estudos, iria empreender viagem para saldar os últimos desejos de Mãe Tereza. Era o mínimo que poderia fazer pela aquela alma que tão gentilmente abraçou em seu seio de mãe dando um novo sentido de existência para aquele garoto.

E assim o tempo se passou... Por mais dois anos Lucas ficou e se dedicou aos estudos e a leitura de tudo que poderia ser necessário para aquela viagem. Certificou-se de documentos e de histórias da época sobre a região em que iria.

Havia um misto de emoção e medo do desconhecido. Mas acima de tudo iria cumprir o último desejo de sua mãe adotiva que secretamente lhe acolhera e ao qual conquistou seu coração de adolescente.

Aquele momento era de preparação. Cuidadosamente buscou melhor agendamento para sua despedida. Sabia que sentiria muita falta dos amigos que fizera. Adotara aquele ambiente como seu lar e desenvolvia junto aos meninos e meninas que chegavam para o orfanato, atenções de um irmão mais velho. E agora era hora de partir... Como fazer?

Nunca tivera jeito para despedidas. Era uma situação nova parta ele. Sentia como se traísse a confiança de tantas outras crianças que tinha apreço por ele. E claro, ele por elas...Pensou em sua mãe Tereza, nos momentos que ela também teve esse momento de indecisão. Quantas vezes deve ter adiado sua decisão de partir em função dos cuidados dispensados para esta ou aquela criança? Quais conflitos teria passado entre aquelas paredes?

Mas a solução veio como por mágica... Um belo dia, o administrador reuniu todos os funcionários e colaboradores da instituição informando que uma grande empresa fez doação de uma área muito maior do que a que eles tinham atualmente, com toda infraestrutura que precisavam para continuar a existir. Lá teriam atendimento médico gratuito, escola no próprio ambiente além de área de lazer maior e mais diversificada. Todos seriam acolhidos. Funcionários e residentes.

A alegria fora geral. Todos sabiam da precariedade do ambiente atual, com as construções visivelmente danificadas e sem condições de ampliação.

A notícia se espalhou com rapidez, contaminando todos os internos. Só se falava na data em que iriam de mudança...Havia alegria nos rostos dos meninos e meninas. Era contagiante! Ambiente novo, com maiores perspectivas de adoção por estar mais próximo de um grande centro, entre outras facilidades...

Estava aí a oportunidade que faltava para a partida de Lucas... Sairia no mesmo período em que fosse feita a mudança.

Dona Ana atenta a tudo, assessorava o rapaz no que podia. Compartilhava dos projetos que ele havia contado e torcia para o sucesso da empreitada.

Os dias se passaram rapidamente e na semana da mudança grande era o alvoroço do local. Todos, sem exceção, estavam alegres e ansiosos com a aproximação do momento. Alguns dias antes, caminhões vieram buscar utensílios e moveis que seriam transportados para a nova cede. Na sequência , viriam ônibus buscar os funcionários e crianças residentes do local.

Lucas por seu lado, estava se preparando para sua grande missão. Dona Ana não descuidava dos preparativos dele.

Enfim, o grande dia chegou.... Ela olhou firmemente para ele, olhar de mãe, um grande abraço foi dado, sem palavras...Um ultimo olhar carinhoso foi trocado e lagrimas vieram aos olhos, demonstrando todo o sentimento que os unia até então. Um turbilhão de sentimentos emergiu, mas era algo leve, que trazia felicidade. Nada de perdas, mas de alegria por algo que seria grandioso. O amor maternal daquela senhora era tão grande que sentia um calor aconchegante e reconfortante sem igual. Desperto pela buzina de um dos carros que se aproximava, Lucas pegou suas coisas e seguiu de carona para o seu novo e grande destino.... Na boleia ia pensativo... Atrás, na portaria do orfanato, uma pequena senhora balançava lentamente os braços desejando sorte e proteção...

Alguns dias haviam se passado desde a saída do orfanato. Estava já no ultimo trecho da viagem com destino a o vilarejo que dava acesso a ilha de Mendonça ou também conhecida como ilha dos loucos. Seu coração batia acelerado. Segundo o motorista, chegariam no final da tarde. Região montanhosa, banhada pelo mar, tinha paisagem formada por antigos vulcões que em épocas remotas existiram na região. Hoje, adormecidos, fazem parte da beleza rustica do local.

Mas, os pensamentos de Lucas viajavam muito além daquelas paragens. Se concentrava em um pequeno ponto no mar, onde sua mãe disse ter nascido. E era para lá que ele iria. Como? Ainda não sabia....

O pequeno vilarejo chegou e ele quase não percebeu. A pequena praça onde o ônibus fez a parada para que os poucos passageiros saltassem era muito simples. De forma circular com alguns bancos em seu entorno e um grande chafariz no centro, rodeado de flores da região.

Desceu do ônibus e buscou localizar uma das pousadas que fez contato por telefone a alguns dias atrás. Não foi difícil encontrar...Ficava muito próximo do cais onde iria buscar informações de como chegar a ilha. Tudo ate o momento estava indo bem...

Fez o registro e durante o preenchimento do formulário, o senhor da pousada intrigado e curioso foi logo dizendo:

- Rapaz!!! O que traz você por essas paragens? Estamos nos preparando para o inverno e aqui é típica área de pescadores e de alguns pesquisadores aventureiros. Mas, o movimento é no verão e não no inverno...

- Sei disso senhor!! Tenho algumas pesquisas para fazer na cidade e numa ilha de nome ilha de Mendonça. O Senhor pode me ajudar....É muito importante!!!

- Rapaz período ruim para pesquisa de campo... A ilha dos loucos fica praticamente inacessível nesse período. O local é muito perigoso por conta do labirinto de recifes que existem no entorno da ilha. Com a maré e as correntes que temos, vira aventura muito perigosa. Se encontrar algum marinheiro louco o bastante para se aventurar por lá tem ainda que passar pelo dono da ilha, Dom Carlos, Ele não vai deixar o senhor ir até lá. Mas, nessa época do ano, la no cais, muitos pescadores e velhos marinheiros se acotovelam para ouvir e contar histórias... Você encontrará respostas para muitas questões...Só não acredite em tudo que lhe dizem...

- Seu quarto é o número seis, fim do corredor. Lá ninguém lhe perturbará. A janta aqui começa as 18:00hs e vai ate as 21:00hs. Fechamos as 22:00Hs.

- La na praça, seguindo em direção ao cais, você encontrará o bar de Martim Pescador. É o único e velho reduto dos marinheiros daqui. La você encontrará muitas pessoas que conhecem a história da região e podem lhe dar informações que possam ser uteis. Só não acredite em tudo. Eles têm uma imaginação muito fértil.

Lucas agradeceu a informação e seguiu para o quarto afim de tomar um banho e colocar as ideias em ordem. Alguns imprevistos foram verificados e ele tinha que ver de que forma contornaria os obstáculos. Esse Dom Pablo, não estava nos planos buscar autorização. O melhor é descansar um pouco e mais tarde dar um pulo nesse bar que o dono da pousada falou. Veria como era o ambiente.... Estava sem fome. A viagem deixara meio enjoado. Muitos buracos e curvas nas estradas. Pensando assim, abriu o quarto e após banho deitou-se. O sono veio quase que imediatamente...

Acordou meio assustado, por volta das 19:30hs. Se arrumou e desceu em direção ao saguão da pousada. Foi cumprimentado pelo dono que veio ao seu encontro.

- E ai? Vai experimentar alguma especialidade da terra? Ou vai lá no bar?

- Se for, procure este marinheiro de nome Jonas. Ele é uma espécie de historiador local. Conhece muitas histórias da região. Diga que lhe mandei e ele vai adorar sentar e conversar com o senhor. A bebida preferida dele é o Rum. Boa sorte!!

Sai agradecido pela gentileza do velho senhor.

A noite era calma, um vento frio soprava prenunciando a chegada do inverno. Rua deserta. Dava para ouvir a própria respiração e o som dos passos nas pedras do calçamento.

De longe, dava para ver luz saindo de uma construção. Ruído vinha de pessoas conversando no entorno da construção. Não havia dúvidas, só poderia ser o Martim Pescador...

Antes de me aproximar do bar, vi ao longe, o cais onde uma infinidade de barcos, perfilados, faziam sua dança suave ao som e ritmo das águas do mar. Muitos marinheiros tinham no barco seu instrumento de trabalho e casa.

O cais era formado de madeira se projetando para dentro das águas. Formava uma enorme fila de barcos atracados lado a lado. Logo no início, grande arco também de madeira demarcava o seu começo. Um silencio reinava no local. Vez por outra , em uma ou outra embarcação, se acendiam luzes no interior.

Andei uma boa parte do cais ate ser interpelado por alguém que saia de uma embarcação...

- Filho esta procurando algo?

Parei um momento pois não esperava naquele momento, ser interpelado por alguém.

- Não senhor. Apenas vim olhar a estrutura que tem por aqui.É muito grande. Não tenho visto algo com essa dimensão...

- Realmente é de se admirar. Foi feito pelos próprios pescadores da região. Recentemente passou por reformas, mas o tamanho original foi mantido. Mas, você não é daqui. O que traz para essa região? Principalmente agora que estamos para entrar no inverno?

Essa pergunta feita tinha que ter cuidado ao responder. Não poderia entregar seus planos de bandeja a um estranho da região que nem se quer conhecia.

Alimentei a curiosidade do homem com as mesmas informações dadas na pousada.

- Tenho uma pesquisa para iniciar sobre a região e estou aproveitando esse período de inicio de inverno para coletar informações dos pescadores. No verão eles estão em movimento e fica mais difícil.

A informação parece ter sido bem aceita pelo pescador que deu um sorriso e balançou a cabeça dizendo:

- Com certeza você vai encontrar muitos lobos do mar por essa ocasião, mas as histórias que você vai coletar pode não ser de boa qualidade. Nós temos muita imaginação... Melhor lugar é no bar no inicio do cais. Lá é onde nos reunimos para aquecer nossas noites. Se você me der um tempinho levo você lá e apresento ao pessoal.

Balancei com a cabeça afirmativamente e fiquei esperando o velho marujo

Concluir suas tarefas do dia.

Enquanto esperava Lucas pensou de que forma se apresentaria ao grupo de pescadores. Teria que ser convincente e traçar um roteiro para não se perder e nem revelar sua verdadeira intenção: A de ir na ilha dos loucos...

Não demorou muito e o marujo saiu todo agasalhado, chamando-o..

- Rapaz meu nome é Domingos! Vivo aqui desde que nasci. Meus pais foram pescadores e meus avós também. Qualquer coisa que precise pode ser que eu saiba lhe informar. Não que a gente saiba tudo, mas como não tem muita coisa para fazer nessas paragens, o vilarejo é pequeno, as pessoas em sua maioria se conhecem e, portanto, agente fica sabendo de tudo ou pelo menos quase tudo.

Lucas e o velho pescador saíram em direção ao Martim Pescador conversando.

Falou que estava para fazer uma pesquisa com base histórica do vilarejo e das ilhas que faziam parte da região. Tinha um especial interesse pela ilha de Mendonça...

Realmente o bar era tudo o que diziam dele. Local bastante frequentado por pescadores e marujos da região. As conversar que se ouviam era de mar ou ligadas a ele. Uma ou outra, de pessoas distantes, mas que invariavelmente terminavam com o mar.

Lucas foi apresentado ao dono do Martim Pescador e na sequência a alguns pescadores mais antigos que faziam dali ponto de reunião. Entre eles havia o Jonas, tido como pescador mais antigo da região e por conta dos seus feitos, detinha um respeito de todos. Quando falava, todos paravam para ouvir...

O papo era animado entre eles e cada um tratava de contar uma situação mais absurda do que o outro. Lucas ficou calado quase que toda noite só ouvindo, até que o dono do bar anunciou que iria fechar. Sob protestos dos pescadores um a um foi sendo enxotado para fora do recinto. Em seus pensamentos havia um pouco de frustração porque não conseguiu estabelecer nenhuma conversa sobre o tema que queria. Nesse estado de desanimo, se despediu do grupo e tratou de retornar para a pousada. Não havia mais nada a fazer.

Decidira que no dia seguinte iria buscar informações com o próprio dona da pousada e o do Martim Pescador. Seria um começo...

O Dono da pousada o aguardava sentado na varanda que servia de área de convivência dos hospedes.

- E ai meu jovem foi proveitosa a sua ida ao Martim?

- Conheci alguns dos velhos marujos que frequentam ali mas não conversei com nenhum deles. Não houve condições....

- O senhor falou do pescador Jonas. Encontrei por la, fui apresentado pelo marujo Domingos.

- Sei quem são. Não poderia estar em melhores mãos!! Sua jornada então foi boa. Não fique chateado. Você teve sorte de principiante. Em um primeiro contato já conheceu duas grandes personalidades da região. Agora é hora de dormir e refazer as energias. Amanha é um outro dia!!! Vamos entrar...

- Mas eles não me deram atenção!!! Só fiquei ouvindo o grupo falar de suas aventuras...

- Meu jovem!!! Você é que pensa que eles não prestaram atenção em você... Aguarde e verá com seus olhos o que te digo. Vamos dormir. A noite está fria e não quero pegar resfriado!!!

Ambos entraram e cada um foi para suas acomodações. Lucas não demorou muito a dormir. Sono agitado e cheio de sonhos...Recordações, lembranças, saltavam-lhe da memória. Lembrava das noites no orfanato, das histórias contadas por tia Tereza sobre a região e das histórias que havia acabado de conhecer pelos pescadores locais.

Acordou com um barulho na porta do seu quarto. Aguem estava chamando por ele. Levantou ainda sonolento e foi atender. Era o dono da pousada que me chamava.

- Olha garoto, desculpe por lhe acordar tão cedo, mas tem uns amigos seus ai fora querendo falar com você... Insistiram que tinha que ser agora...

- Amigos meus? A essa hora? Não sabia precisar que horas eram, mas com certeza deveria ser muito cedo. Meio confuso e sonolento, voltei ao quarto na busca de um agasalho para descer e ver quem se apresentava dizendo ser meu amigo....

Ao chegar no saguão da pousada deparei-me com os dois recém conhecidos “amigos” da noite anterior: Jonas e o pescador Domingos. Ambos estavam conversando animadamente juntamente com uma das cozinheiras da pousada.

Ao me verem, vieram ao encontro sorridentes... Ainda estava sonolento e sem entender direito a visita, mas lembrava muito bem de ter se despedido sem ter firmado compromisso nos primeiros momentos do dia com eles.

- Ai está você meu jovem, disse o Domingos animadamente... Bota um agasalho, que vamos lhe levar para conhecer um espetáculo antes de clarear. Você vai gostar...

Olhei para o dono da pousada que se encontrava por perto e recebi dele uma espécie de aprovação, como que me dizendo: “vai com eles garoto”.

Coloquei o casaco que havia deixado na parte inferior do estabelecimento e os acompanhei para a porta. Não estava entendendo nada, mas aceitei a situação sem questionamentos.

- Você vai conhecer um lugar muito especial hoje, garoto!!! Falou Domingos. Vamos rápido para não perder o momento....

Iniciamos então uma corrida louca em busca de um local o qual deveríamos estar antes do amanhecer ou pelo menos antes do sol alcançar determinado ponto. Como não conhecia nada, e não enxergava muita coisa por conta da penumbra que nos envolvia, seguia sôfrego pelo esforço empreendido. Um dado momento, nos deparamos com uma espécie de escada de marinheiro no meio do mato. A subida exigiu esforço extra para mim. Não tinha o habito de fazer esse tipo de atividade. Alguns minutos depois estávamos em uma plataforma que nos dava uma visão privilegiada da vila e boa parte da baia com seus contornos e construções.

Levei um bom tempo para recuperar o folego. Os dois pescadores estavam encostados no parapeito do mirante como se não houvessem feito a escalada, tamanha a tranquilidade dos dois.

Ao longe via-se o despertar da vila. Algumas pessoas e suas atividades rotineiras.

O sol ia lentamente aparecendo, marcando o solo e se projetando baia a dentro. Um espetáculo indescritível. Os meus novos amigos tudo viam em silencio.

Acompanhei o despertar da manha observando cada detalhe revelado pela incidência dos raios de sol. Em dado momento fiquei paralisado pela exuberância apresentada pela Natureza e por reconhecer um recorte da baia. Essa imagem já havia visto em desenhos feito por tia Tereza. Tinha até um igual bordado na minha mochila. Presenteado por ela nos seus últimos dias de vida.

Fiquei por muitos minutos entre recordações do passado e a vista da baia... só voltei a realidade ao perceber os dois pescadores me olhando entre risos de cumplicidade.... Jonas foi o primeiro a falar...

- Linda a vista, não? Isso deve trazer doces recordações... O que você acha Domingos?

- Tenho lindas recordações desse lugar.... A nossa infância, as brincadeiras com os amigos, entre outras recordações.... É inevitável....

-Lembra Jonas de nossa infância? Quando o velho faroleiro ainda era vivo? Quantas vezes o Mendonça pegava o barco e ia tira-lo do alto do farol quando ele ficava encharcado de bebida? Agente ficava aqui assistindo ao espetáculo...

-Era digno de nota. Ressaltou o amigo.... Ele lá no topo do farol com aquela lamparina a balançar que nem um João bobo para o mar....Lembro-me que Mendonça chegou a fazer ate um desenho para registrar a visão que tínhamos da situação....

- E você meu jovem? Que tipo de recordações lhe despertaram? Estamos curiosos.... Certamente deve haver histórias muito bonitas que vieram a lembrança... Poderia nos contar algumas..... Somos bons de ouvir histórias.....

Realmente a visão da baia era impressionante. Os raios de sol a colorir de dourado o contorno até o farol que se via ao longe. O contraste com o verde azul do mar e as espumas brancas que voavam ao tocar nos rochedos ao longe.... Tudo isso com os pequenos pontos representado pelos barcos que iam e vinham na enseada....

- E ai jovem? Perdeu a língua? Repetiu Jonas... Não tem nada a nos dizer? Por certo lhe vem alguma depois dessa experiencia..... A não ser que já tenha visto isso antes....

No primeiro momento não entendia o que eles queriam dizer, voltei a olhar a paisagem longamente.... Parecia familiar, algo que já havia visto na minha infância...O que via, fazia-me recordar as histórias de tia Tereza sobre o mar.... Mas algo dentro de mim, dizia que já havia visto aquela paisagem antes.... Mas como seria possível? Nunca estivera ali... Aquele mar, os rochedos ao longe o farol.... tudo novo..... Mas, porque a sensação de já ter visto aquela paisagem? Onde?.... Vasculhava a memória numa tentativa frenética de recordar algo que deixava escapar..... O farol e o faroleiro... De repente veio à memória..... Já havia visto aquela paisagem sim. Num quadro dentro do quarto de tia Tereza.... Ela contava histórias de mar e numa delas falou dessa baia e do comportamento do velho faroleiro e apontou para o quadro que havia no seu quarto. Estava ali ilustrado numa gravura a situação que os pescadores acabaram de falar.....

Voltei os olhos espantadiços para eles e via nitidamente que eles não falaram por acaso... Sabiam de algo e nitidamente, sabiam que eu conhecia aquilo.... Mas com? Em nenhum momento havia comentado sobre isso. Alias, desde ontem fui mais ouvinte do que falei...E o pouco que falei não revelei nada sobre as minhas verdadeiras intenções....

Eles se divertiam com o meu espanto... Sabiam que havia pego algo e queriam explicações.... Aguardavam pacientemente que me pusesse a explicar....

como que adivinhando meus pensamentos...falaram quase que simultaneamente.

- Jovem vamos facilitar sua vida.... Essa paisagem que lhe falamos foi desenhada pelo nosso amigo Mendonça e na mochila que você carregava ontem, tem um desenho exatamente igual.... Queremos saber como você conseguiu esse desenho....É simples!!! Vamos... Somos todos ouvidos....

Aquela revelação fez com que meus joelhos fraquejassem. Não tinha muito o que fazer... Bom investigador estava me tornando... No segundo dia de visita a cidade já tinha sido descoberto coisas que guardava a sete chaves.... Olhando para os rostos daqueles homens, não havia como engana-los.... Era melhor dizer a verdade e acreditar que eles seriam éticos e não interfeririam nos meus objetivos....

- Bom meus amigos.... Eu na verdade não vim aqui para pesquisar sobre a região. Vim atender um desejo de uma pessoa muito especial... É bom vocês sentarem porque a história é longa... Contei toda a História do dia que foi admitido no orfanato ate quando descobriu ter sido adotado pela Tia Tereza.... Contou de suas histórias e dos desejos que ela revelou nas cartas após sua morte. Contei as peripécias feitas até chegar ali..

Os pescadores tudo ouviam em silencio, quebrado apenas por troca de olhares entre os dois amigos...

- É isso!!! Vim realizar o desejo dessa mulher que me adotou e cuidou como filho.

- Preciso ir na ilha onde ela disse ter nascido.... Preciso estar lá....

Após o relato, percebi que o rosto estava molhado de lagrimas... fique envergonhado e em silencio.... Aguardava agora os próximos passos dos meus ouvintes.... Nunca havia sentido tamanha perturbação...Estava leve como se tivesse tirado do peito um peso enorme...

Minutos se passaram que mais pareciam horas... Apenas o silencio do local se ouvia... Todos absortos em seus pensamentos....

Domingos foi o primeiro a acordar e quebrar o silencio reinante por ali...

- Ora, ora, ora... O nosso amigo Mendonça, sempre aprontando em Jonas?

- Essa sua história meu jovem, pode vir a elucidar uma serie de mistérios que aconteceram por aqui no passado... O que você acha Jonas?

- E eu que pensei ter visto de tudo nessa vida.... É amigo!!! Hora de buscar a verdade!!!! Mas, para isso, esse jovem precisa saber de alguns acontecimentos que ocorreram por aqui... Vamos juntar nossos pedacinhos de memorias e dar sentido ao mistério que cerca a ilha dos loucos... Garoto!!! vai precisar falar com o “Velho” e com certeza, ele não vai acreditar em nada que você diga. Por isso , o nosso conselho é que mantenha suas reais intenções escondidas... É para sua própria segurança...

A nossa história começa há muito tempo atrás. Nós éramos crianças e aqui não passava de um amontoado de pequenas casas. Havia na cidade duas grandes familias. Uma dominava as áreas de produção de vinhos e de frutas e as atividades pesqueiras. A outra de extração de minérios... O poder era revezado entre as duas familias...Mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo.

A família dos Mendonça era composta de um velho fidalgo Espanhol, Don Diego, que trouxera a tiracolo um irmão, sua mulher e dois filhos ainda pequenos. Aqui se instalaram e construíram esse império da indústria do vinho e pesqueira. Do outro lado, outra família também se instalou na região e foi afortunado com a descoberta de prata em suas terras. Também construiu um império onde tinha esposa e duas filhas. Uma ainda bebe... A doce e meiga Ana Maria.

Os dois patriarcas não se entendiam e viviam em contendas por qualquer motivo....

Dona Donana Mendonça vivia aflita com as contendas e se preocupava com a saúde do marido e dos filhos. Não concordava com o que ocorria e vivia pedindo ao marido para dar fim as divergências entre as duas familias.

Ate um belo dia de inverno, após uma briga entre os trabalhadores da vinícola e das minas que resultou na morte de alguns trabalhadores de ambos os lados, a paciência de dona Donana chegou ao fim. Mulher determinada, pegou a charrete e foi à casa do senhor Monzon disposta a dar um fim as disputas entre seu marido e ele. La chegando encontrou dona Mariá e suas duas filhas que também estava aflita com os acontecimentos. Conversaram muito sobre os ocorridos e firmaram um pacto de acabar com a rixa entre os dois. Na saída, de volta para casa, Donana perde o controle da charrete que veio a cair na ribanceira. Foi uma consternação geral. Vários dias ela lutou entre a vida e a morte.Don Diego não saia do seu lado. Amava sua esposa e custava a acreditar no que havia ocorrido. Durante esses dias de convalescência, Dona Mariá visitou-a e prometeu que iria se esforçar para acabar com as rixas dos maridos.

Alguns dias depois Donana veio a óbito. Foi uma tristeza geral. O pequeno Mendonça foi o que mais sofreu com a morte da mãe. O pequeno Carlos ainda era pequeno demais para entender o que ocorrera. Mas o Mendonça já tinha esse entendimento e era muito apegado. Essa perda foi um dos motivos que levou ele a se lançar nos mares ainda adolescente passando às vezes muitos dias sem ir em casa. Quando voltava trazia sempre uma lembrança para o pequeno Carlos...Jonas fez pequena pausa como que buscando detalhes na memória... Domingos então começou a narrar.

- Dizem as más línguas que antes de morrer, a velha matriarca pediu ao marido que acabasse com as diferenças com o senhor Monzon. O que foi atendido prontamente após um período de luto.

Os anos se passaram e os meninos foram estudar na capital. Cresceram divididos entre as idas e vindas entre a capital e o vilarejo. Só Mendonça se mantia firme na arte de velejar. O pai, Don Diego, respeitava sua decisão.

Do lado da família do senhor Monzon ia tudo bem até um acidente, em uma das galerias da mina ter tirado a vida do velho. Dona Mariá ficou sem sustentação. Se não fosse Don Diego a socorre-la ela não teria sobrevivido....Nessa ocasião as filhas voltaram para casa. A mais velha, ajudava a mãe nos negócios da família. Tinha o temperamento do pai. Já a doce Ana vivia no mundo da lua...

Do outro lado, os meninos estavam integrados à rotina do velho Diego. O Carlos ajudava-o na administração dos negócios enquanto o Mendonça vivia envolvido nas aventuras pelo mar. Um de seus grandes feitos foi a trilha que fez para chegar a ilha dos loucos. Essa ilha é cercada por pedras que ficam parcialmente encoberta pelo mar e só em determinadas condições se consegue chegar à praia. Devemos a Mendonça o roteiro seguro para chegar até a ilha.

A história da ilha ser utilizada como um campo de tratamento psiquiátrico se deu por conta das enfermidades contraídas pelos mineiros. Muitos deles adquiriram uma doença conhecida como síndrome de pânico. E não tínhamos lugar para colocá-los. Foi aí que veio a ideia de usar a ilha como refúgio para tratamentos dessas pessoas.

Assim, tanto a família Monzon quanto a família Mendonça construíram na ilha um refúgio para essas pessoas que estavam sofrendo com o mal do pânico.

A construção levou três anos para ficar pronta. Construíram também um farol para auxiliar na navegação.

Lembro ate hoje que saiam daqui os internos com destino a ilha. Era uma tarefa perigosa em função das correntes e das pedras em torno da ilha. Tinha que serem observadas o dia e a hora da mare. Se não, as embarcações não passavam no emaranhado de pedras que se projetavam das águas. Um verdadeiro labirinto.... Eu mesmo afundei uma embarcação na minha juventude. Dias difíceis aqueles...

As coisas começaram a se ajeitar. Vinham médicos contratados pelo Dom Diego e Dona Mariá que passavam pelo menos trinta dias na ilha em regime de revezamento. A cada quinze dias saiam suprimentos para abastecer e suprir o local. Cansamos de fazer essa rota levando pessoas e mantimentos...Tudo ia bem até que um acidente vitimou dona Mariá. Ela voltava para a sede da fazenda após um dia de trabalho na mina. Naquela tarde-noite chovia muito. A trilha estava muito encharcada. Conta-se que uma arvore veio abaixo sobre a charrete em que ela se encontrava.

Foi um fato lamentável. Chocou a todos. As meninas tiveram que ser medicadas.

Dom Diego abrigou-as em sua propriedade. Tratava-as como se fossem filhas.

Elas por sua vez, se recusavam a retornar à fazenda. Passaram a viver sob o mesmo teto de Dom Diego que de certa forma adotou-as. Os meses se passaram e a rotina retornou ao vilarejo. A mais velha, voltou a administrar os negócios de minério da família enquanto que a mais nova vivia absorvida com as atividades da ilha dos loucos. O velho, Dom Diego, acompanhava tudo e incentivava a garota. Era constante suas idas para a ilha. O Mendonça era encarregado de leva-la. Andavam para cima e para baixo tão unidos que mais pareciam um casal de namorados. Isso não demorou a ser percebido. Dom Diego, via ali uma possibilidade de união definitiva entre as duas familias. Trabalhava para isso secretamente.... De um lado envolvia mais novo nos negócios com a Catharina, a mais velha das filhas de dona Mariá e deixava o Mendonça e a Doce Ana nas atribuições da ilha. A desculpa era que estava ficando velho e precisava que os meninos assumissem os negócios da família.

As coisas estavam indo bem. De um lado Mendonça e Ana. Do outro lado Catharina e Carlos formavam o outro par. Só que o destino reservou uma outra combinação que ninguém até então tinha pensado...

Os dias se passaram e na cabeça do Patriarca da família era a nítida a situação que imaginava. Casar o Carlos com a Catharina. Nesse intuito fez todos os preparativos. Sempre articulava situações envolvendo os dois. Acreditava com isso estar colaborando para a união entre eles.

Mas o desarranjo veio na forma de um jantar. Sob o pretexto de comemorar o aniversário, reuniu os filhos e anunciou em plena mesa o noivado dos dois. Foi um alvoroço. Tanto para os presentes convidados quanto para o casal. Ninguém até aquele momento supunha a situação. Catharina foi a primeira a se recompor do susto. Foi como se fosse ontem... Eu estava lá.....

- O Senhor está de brincadeira Dom Diego... Que ideia é essa. Eu e o Carlos... Era só o que me faltava... E olhando para o Carlos. Isso é ideia sua?

- Não. Nem imaginava. Pai, que ideia é essa? Não é assim que as coisas ocorrem. Vivemos em uma outra época...

Sob forte revolta a Catharina saiu para o quarto seguida de sua irmã Ana. Nem quis ouvir as explicações do patriarca.

Na sala, muitos convidados entre risos e ar de aprovação observavam o desfecho da inusitada situação. Seria um espetáculo cômico se não fosse real.

Dom Diego sereno, se levantou e mais uma vez ratificou em alto e bom som. Esses meninos vão se casar, nem que seja a ultima coisa que faço nessa vida. Também se retirou para os aposentos visivelmente contrariado. Não esperava a reação dos dois, não entendia o que estava errado.

Os dois irmãos ficaram ali ainda entre o assedio dos convidados e a preocupação com o acontecimento.

Após a retirada das pessoas, na sala, Mendonça virou-se para o Carlos e buscando compreender a situação.

- Não me olhe assim!! Não tenho nada com isso. Nunca passou pela minha cabeça unir-me com a Catharina. Admiro, respeito, mas não temos afinidades para vivermos juntos. Não sei de onde meu pai tirou essa ideia... E o pior é que essa menina tem o sangue quente que nem o pai dela. Vai terminar fazendo uma besteira...

- Mano velho! Você está encrencado...Quero ver como você se sai dessa. Vou sair com os meus amigos.... Boa noite irmãozinho.

O que aconteceu depois foi contado pelos que lá trabalhavam. Dizem que o velho Dom Diego foi conversar com Catharina e após discussão Dom Diego passou mal e foi se deitar.

Catharina por sua vez arrumou as malas naquela mesma noite e junto com Ana foram para a antiga casa. Carlos a todo custo tentou persuadir uma e outra sem sucesso. Acabou por ficar no meio da sala sozinho onde adormeceu.

No dia seguinte, Dom Diego não levantou e um dos empregados, foi verificar o motivo. Ao entrar no aposento, encontro-o morto no leito.

Os dias que se seguiram foram duros principalmente para o Carlos que teve que tomar a frente das coisas sozinho uma vez que, naquela mesma noite, Mendonça saíra com o barco voltando uma semana depois.

A relação entre os dois irmãos teve nesse evento forte impacto. Carlos não admitia o fato de Mendonça ter deixado o ambiente sem nenhuma comunicação previa. Não perdia a oportunidade de cobrar dele maior responsabilidade e não perdoava a Catharina pelo que ocorreu com o pai. Deixou-a de ajudar nos negócios da mina ficando as meninas entregue à própria sorte.

Com o tempo as coisas foram retornando lentamente à normalidade. Os irmãos voltaram às boas desenvolvendo cada um suas tarefas diárias e as duas mulheres por sua vez lutando sozinhas para gerir os negócios da família.

Um ano mais tarde, na festa da padroeira lá na vila, as famílias se reencontraram. Depois da morte de Dom Diego, foi a primeira vez que ficavam juntos em um ambiente.

Foi uma sena cômica. Na hora de segurar o andor da santa, o Carlos visivelmente contrariado por ter a Catharina ao lado dele e pelo lado da moça o mesmo comportamento se notava. Já o Mendonça e a Ana interagiam alegremente se divertindo da situação.

Ao fim da cerimonia o velho padre Lorenzo que conhecia bem as famílias, pegou os dois pelos braços e teve uma conversa demorada dentro da sacristia. Quem sabe mais dessa história é o velho do farol. Precisamos ir lá fazer uma visitinha.

Domingos olhou para Jonas como se arquitetassem um plano. Após algum silencio, Jonas apontou para o Farol à distância e disse claro e em bom tom.

- Temos que ir lá. Vamos ver o velho do farol agora!!

Descemos todos em silencio. Domingos, Jonas e por ultimo eu. Não sabia o que pensar. A ida para aquela vila era apenas para atender a um pedido de uma senhora que no seu leito de morte pediu. Imaginava como um pedido simples e bobo. Mas à medida que conhecia a história do lugar, crescia dentro de mim o desejo de ir ate o fim daquela aventura.

Retornamos a vila em silencio. Cada um envolto em seus próprios pensamentos.

Os raios de sol já aqueciam o local e prenunciava mais um dia de muito calor. Crianças corriam aproveitando os últimos dias de verão. Sabiam que o período de inverno não ofertaria aquelas condições e que ficariam boa parte dos meses reclusos em casa.

Chegamos a pousada onde fomos recebidos com um belo café da manhã. E, claro, muitas perguntas.

- Acharam o que procuravam?

Domingos foi o primeiro a responder... – É possível que tenhamos novidades.

Precisamos ir no velho farol assim que tomarmos esse esplêndido café. Lá provavelmente teremos respostas para algumas questões...

O dono olhou para mim satisfeito. Logo, logo teria histórias para entreter seus hospedes e aguçar a curiosidade dos moradores que frequentavam sua pousada. Ele sabia que boas histórias atraiam freguesia. Principalmente no inverno que pouca ou quase nada tinha de se fazer.

Uma hora depois estávamos indo em direção ao velho farol. A trilha era muito acidentada e as pedras ainda se encontravam escorregadias. Vez por outra me desequilibrava. Jonas e Domingos iam à frente tranquilos como se os obstáculos do caminho não existissem. Era difícil acompanha-los. Caminhamos por volta de duas horas ate vislumbrar a trilha estreita que dava para a entrada do farol.

Enquanto andava imaginava que novas revelações ocorreriam ali, naquele lugar. Isso de certa forma estimulava minha imaginação. Aguardava o desfecho com muita ansiedade.

Ao transpor o portão que isolava a trilha da entrada da construção, fomos recepcionados por uma senhora de meia idade que acolheu bem os dois marujos. Aguardei o momento de ser apresentado a essa senhora.

Jonas foi que fez às honras. – Este aqui é um pesquisador que veio coletar dados da nossa região dona Graça. Gostaríamos de falar com seu avô.

Ela olhou-me curiosa, sorriu gentilmente e voltou-se partindo para dentro da construção seguida por nós três.

A estrutura do farol era muito simples. Um amplo salão que compartilhava o espaço com a cozinha ao fundo. Uma escada que dava acesso ao andar de cima da torre e do lado direito, um pequeno corredor que dava para os quartos e banheiro. Do lado de fora ficava a área de serviços.

Ela pediu que esperasse na sala enquanto entrava corredor adentro... Alguns minutos se passaram até ela voltar.

- Meu avô disse que vocês aguardem um pouco que ele vai se arrumar e vem atendê-los. Querem um café? um chá?

- Um chá por favor, disse o Jonas...E voltando-se para mim. Deixe que agente fale primeiro com ele... Depois você se apresenta quando ele esboçar curiosidade na sua pessoa. Seja gentil e sincero com ele. Agora, aproveite, conheça o farol. Pode ir lá em cima ver a vista. Depois, lá no fundo tem um grande mirante. Vá ver. Agente te chama quando ele vier.

Atendi sem maiores questionamentos. Estava realmente muito curioso em conhecer o farol. Nunca havia entrado em um antes e tinha muita curiosidade.

Subi como se fosse um adolescente em busca de um prêmio. O Esforço da subida rápida me deixou ofegante, mas a paisagem era de tirar o fôlego.

Impressionante a visão que se tinha daquele ponto. De onde estava, podia ver toda a baia, um recorte do cais onde os pescadores colocavam seus barcos, algumas casas da vila, todo o relevo montanhoso que envolvia a baia e à frente, um mar espetacular, com seus reflexos entre o azul e o verde, oscilando conforme a incidência de luz. Experimentava ali, uma paz indescritível. À frente grandes barreiras de pedras sobressaiam das águas formando uma espécie de corredor onde provavelmente servia de guia para os marinheiros experientes da região. Gaivotas em profusão e alguns animais marinhos que não pude identificar, devido a distância em que me encontrava.

Uma pintura para os olhos e um balsamo para o espírito. Fiquei um tempo a repassar na mente tudo que já me ocorrera ate o presente momento. Revisava cada momento vivido com o máximo de cuidado para não esquecer nada.

Lá em baixo, o Jonas e o Domingos acabavam de receber o velho faroleiro que bem-humorado foi logo dizendo...

- Velhos lobos do mar, que prazer em revê-los... Tem pelo menos um ano que não nos vemos. Vocês devem estar aprontando algo para vir os dois juntos...

- Velho amigo! Falou Domingos se aproximando e abraçando-o carinhosamente como que prestando homenagens a um pai. Temos muito que conversar... Estamos trazendo algumas novidades para a sua coleção de histórias não é mesmo Jonas?

- É meu velhinho, você vai gostar... Vamos para um lugar tranquilo e confortável porque a nossa conversa é longa....

O velho faroleiro que a tudo ouvia, brilhou os olhos vivos e com uma expressão de satisfação, apontou para o mirante, pedindo antes à neta, que organizasse o local para eles. Nesse momento, o chá foi servido com uns biscoitos feitos na cozinha do farol...

Após o lanche revigorante, foram todos para a área do mirante que estava preparada para recebe-los. Em baixo de uma grande arvore, protegidos dos raios de sol que naquele momento era muito forte, sentaram e experimentaram a brisa suave vinda do mar a bater suas faces.

Breve silencio foi estabelecido pelos presentes como se obedecessem a algum ritual sagrado. Cada um em suas meditações intimas.

- Desembucha meninos!!! O que vocês trazem para mim? Disse o velho curioso e sorridente...

Os dois marujos não se fizeram de rogado. Iniciaram a contar toda a história construída, ate o momento, com a vinda do garoto. As velhas recordações, os casos antigos, enfim, tudo que foi despertado com a visita. O velho, por sua vez, ouvia tudo atento a cada detalhe...Ao final dos relatos, olhou pro mar e após breve momento de meditação, voltou-se para os marujos...

-Onde estar esse jovem misterioso que veio abrir as portas do passado?

Ambos simultaneamente apontaram para o topo do farol. Movimento acompanhado pelo olhar do ancião.

- Pois bem, vamos conhece-lo... Aguem pode busca-lo?

O próprio Jonas já havia se levantado e ia em direção às escadas de acesso ao topo do farol. Alguns minutos depois retornou acompanhado.

Me sentia como se estivesse em uma vitrine. Sendo analisado e exposto à curiosidade alheia.

Observei o senhor que estava à minha frente, sorridente, amável e com uma vivacidade fora do comum...

Fui apresentado pelo Jonas e convidado a sentar próximo. Ele me olhava com uma expressão de curiosidade como se buscasse nas lembranças algo que justificasse minha presença. Foram momentos meio que constrangedor... Ninguém falava, ninguém se movia. Parecia que o tempo havia parado...

De repente o velho quebrou o silencio de forma direta. – Que é você meu jovem?

Me conte sua história... Sou todos ouvidos...e, sorrindo estendeu sua mão num aperto forte para a idade que tinha...

Optei por contar minha história desde o momento em que cheguei ao orfanato até aquele momento. Busquei não omitir nenhum detalhe. Foi longa... Não sei quanto tempo se passou...Mas me senti leve e disposto como a muito não me sentia quando conclui meu relato...

Todos estavam em silencio. Cada um procurava em suas recordações, elementos que se identificassem com o que havia sido revelado... Todos, uníssono, olhando para a baia absortos em pensamentos...

De repente uma grande gargalhada se fez ouvir, nos tirando desse estado de contemplação profundo. O velho do farol, rindo e balançando a cabeça, finalmente falou.

- Meu jovem! Temos muito a conversar... Suas revelações acenderam uma luzinha aqui dentro. Apontou para a própria cabeça. – Mas, primeiro vamos comer algo. Estou com fome! Conversar me da fome. Disse sorrindo...

- Jonas veja se minha neta pode nos trazer algo para comer. Um homem tem que se alimentar de vez em quando...

E voltando-se para Domingos... – Esse rapaz pode ter trazido as peças que faltavam no nosso quebra-cabeças... Ele já falou com o velho Dom Carlos?

- Ainda não. Preferimos primeiro que viesse aqui para falar com você...

Em silencio, observava o diálogo entre os dois sem ter ideia do que eles estavam falando... Restava-me apenas esperar os próximos passos... Fiquei lá olhando o mar e observando a conversa dos dois que se entretiam com trivialidades do dia a dia deles. Era com se eu não existisse ou não estivesse ali... Enfim era o jeito deles... Só me restava aguardar...

Foi-nos servido um verdadeiro banquete à base de frutos do mar... Uma verdadeira delícia!! Não havia provado nada que se comparasse àquela iguaria...

Após o banquete fomos convidados a dormir por lá...

- Meu jovem!! Nossa conversa vai ser longa... Vamos descansar, e mais tarde conversaremos...vou me retirar por uns instantes. Preciso de um cochilo. Vejo vocês no final da tarde...

- Minha neta vai organizar o local que vocês irão pernoitar... Aproveitem bem o restante do dia para descansar... A nossa noite vai ser longa...É bom estarem de casaco. Hoje é noite clara e vai fazer frio... Até mais...

Sem questionamentos... vimos aquele homem se retirar lentamente com altivez.

Cada um de nós se acomodou como lhe convinha. A mim, tive um pequeno quarto na área externa com uma rede. Bastante simples, mas eficiente no que se propunha. Deitei-me e logo peguei no sono. Acordei horas mais tarde. Estava refeito. Experimentava uma leveza e uma tranquilidade que não sentia a muito tempo. Ouvi vozes vindo do lado de fora. Levantei-me e fui em direção às vozes.

La estavam meus amigos. Conversavam alegremente. Sorriam e contavam histórias de suas experiencias. Fiquei um momento parado apreciando a cena...

Não havia sido notado ainda. Até que....

- Se aproxime meu jovem... Nos acompanhe. Falou o velho do farol.

Sentei-me ao seu lado e procurei participar daquele papo alegre que estava ocorrendo entre os velhos amigos...Tomamos chá, falamos trivialidades e por fim, de forma solene, o velho passou a narrativa que tanto esperávamos....

Não sei precisar em que ano cheguei na propriedade do senhor Monzon. Meu primeiro contato foi terrível. Estava assustado com fome e frio. Fazia parte de um grupo de maltrapilhos agricultores que tinha perdido tudo nas últimas enchentes pela região. Meus pais tinham sucumbido ao grande vendaval que derrubou as nossas casas como se elas fossem feitas de papel... Estava ali, órfão, com frio e fome. Não me lembro de como cheguei... Andei, andei muitos dias e noites. Cheguei na casa do senhor Monzon à noite, atraído por um doce cheiro de bolo recém assado no forno. Olhei, olhei e não enxergava o objeto que o meu olfato denunciava. Continuei andando até que vi, sobre uma mesa na varanda. Estava ali à minha frente. Não havia ninguém. Eu estava com fome, com frio. Não resisti e peguei com a mão sem me preocupar se estavam limpas ou sujas. Devorei boa parte do bolo com sofreguidão. Tremia não de frio mas pelo ato em si. O alimento revigorou minhas forças. Fiz então uma pequena pausa para olhar melhor o ambiente em que estava. Foi ai que vi um senhor sentado ao canto, me olhando atentamente. Gelei!!! Não havia percebido sua presença... Fiquei sem reação. Também não tive coragem de me mover...O tempo parecia ter parado... Não sei quanto tempo se passou... O Fato é que ele se levantou e veio ao meu encontro. Estava estático e apavorado. Ele se posicionou na minha frente. Depois ocorreu algo que nunca imaginei poder acontecer. Esse senhor, que mais tarde vim a conhecer como Monzon, sentou ao meu lado e sorrindo me perguntou não quer beber algo.

Olhei espantado e assustado. Não acreditava no que estava ocorrendo. Ele me viu furtando a comida e ainda me oferecia algo para beber. Balancei institivamente com a cabeça dizendo que sim.

Bebi sofregamente todo líquido que foi ofertado. Depois com mais calma, agradeci com minha voz em sussurro. Ele voltou a sorrir e desta vez mais forte.

Chamou alguém de dentro da cozinha. Dona preta (como era chamada) saiu da cozinha e se espantou com a minha presença.

- Dona Preta, temos hospede hoje!! Prepara um banho para o garoto e umas roupas secas. Depois leva ele la na sala. Estarei lá aguardando... Dizendo isso, se levantou e saiu entrando na grande casa pela cozinha.

Naquele momento pensei... Tá ai uma pessoa que seguiria de olhos fechados.

Atendi ao chamado de mãe Preta, como chamaria dali por diante, e fui me lavar...

A parti dali não sai mais do convívio daquela família. A sinhá Mariá era uma pessoa muito humana e adorava plantas. Sempre buscava agradá-la cuidando e ofertando flores para ela.

O casal tinha uma filha pequena e outra de colo. Algumas vezes ficava auxiliando nos cuidados das meninas.

Foi assim que cresci e vi aquelas meninas se desenvolverem. Me sentia como parte da família e era tratado também como se fosse.

O Senhor Monzon tinha total confiança na minha pessoa e delegava atividades de importância. Coisas que atendia sem perda de tempo e questionamentos.

As minas demandavam muitas horas de trabalho. Quase sempre saia ao raiar do dia só voltando ao escurecer.

Tratava com gente muito rude e tinha que ser firme e autoritário no ambiente do trabalho. Às vezes levava esse proceder para dentro de casa. Dona Mariá que entendia, sorria e buscava amenizar as zangas do marido com mimos.

Mas, a alegria eram aquelas duas meninas. Alegres, inquietas e muito carinhosas. A Catharina, que era a mais velha tinha o perfil do pai. Temperamento forte, durona nos sentimentos. Não se deixava abater facilmente diante das dificuldades. Já a mais nova, era muito meiga. Se assemelha à mãe. Comportamento amoroso e alegre, vivia de forma despreocupada e alheia as questões serias que permeavam suas vidas. Parecia que nada a abalava. Para tudo tinha uma solução e adorava o contato com a natureza.

Era uma família feliz!!! Já haviam contornadas as divergências com outra família existente na região, Família Mendonça cujo patriarca era um senhor chamado Dom Diego e dividia com eles a hegemonia política e econômica do vilarejo em que viviam.

Aí, veio o primeiro revés. Era um dia de muita chuva. Alias, havia chovido bastante durante a semana. Alguns pontos de alagamentos, um mar agitado impedia as atividades pesqueiras e um solo escorregadio e encharcado.

Na mina, estava lá como sempre para acompanhar o seu Monzon de retorno para casa. Dona Mariá tinha insistido que ele não fosse à mina naquele dia. Velho teimoso, sorriu e disse que voltaria cedo. Dona Mariá contrariada então pediu que eu fosse junto para lembrar ele da promessa de retornar cedo. Assim o fiz. Acompanhei ele até a mina.

Já havia se passado algumas horas da estada dele nas minas. Acompanhava atentamente os trabalhos de contenção feita pelo pessoal, para escorar com firmeza as paredes molhadas da mina. Os mineiros estavam tendo dificuldades em uma das galerias. O Encarregado pedia que fosse avaliar a situação para poder decidir se fecharia aquela galeria ate que as chuvas passassem.

Seu Monzon havia vestido seu macacão e se deslocava para o ponto solicitado.

Acompanhava-o de perto não me importando com as chuvas que caiam. Ele entrou naquela galeria e algo no meu íntimo dizia para impedi-lo. Não fiz!! Afastei de minha mente aquele pensamento ruim.

Após minutos lá dentro ele retornou com o encarregado, pedindo providencias para lacrar temporariamente aquela entrada. Mandou que evacuassem o recinto ate que as condições do tempo melhorassem. Acompanhou os trabalhos de retirada e de lacre da passagem. Tudo certo!! Porem, antes de sair por definitivo, resolveu dar uma última olhada nos trabalhos feitos pelos garimpeiros e foi ai que ocorreu o desabamento. No primeiro momento um barulho muito forte foi ouvido. Na sequência tudo veio abaixo.

De onde me encontrava vi parte do paredão se deslocando sobre o senhor Monzon. Não deu tempo gritar alertando-o. Tarde demais. Corri quase que institivamente e com as mãos comecei a retirar as pedras e lama dos escombros.

Outras pessoas também correram para auxiliar. Retiramos ele dos escombros ainda com vida. Bastante ferido e com múltiplas fraturas. Ainda me lembro de suas palavras.” Me perdoe Mariá, me perdoe....” e olhando para mim, disse. -Cuide de minhas meninas, prometa! Com lagrimas nos olhos, só assenti. Foram as últimas coisas que ele disse.

Naquele dia faltou-me coragem para olhar nos olhos dos membros daquela família. Passamos muitos momentos alegres e naquele momento sentia uma dor profunda no peito que a muito tempo não sentia. Corri para o mato e lá desabei a chorar ate não poder mais. Não sei quanto tempo se passou, mas fui encontrado por mãe Preta que veio em meu socorro. Fiquei ali encolhido nos seus braços a soluçar...

A comoção foi geral. Passamos dias quase que paralisados pela perda ate que uma bela manhã, Dom Diego e seus filhos apareceram no local para visitar dona Mariá. Lá, ele se comprometeu a auxiliar a família nos negócios da mina. Depois soube que havia sido um pedido de ajuda feita por dona Mariá.

As coisas foram se ajeitando conforme o tempo passava. As rotinas voltaram à sua normalidade, as meninas com muitas obrigações de estudos e com a mãe na vila e os entretenimentos com os jovens da família de Dom Diego o Carlos e o Mendonça, o mais velho.

Eu, continuava a servir a dona Mariá e não perdia de vista as meninas. Era um compromisso assumido a um homem na beira da morte. Não podia falhar....

Dom Diego, era justo e a tudo explicava. Orientava tanto a dona Mariá quanto a sua filha mais velha Catharina, nos procedimentos a serem tocados. Informava também que a mina já dava sinais de perdas. Que muito provavelmente alguns anos teriam que mudar de ramo. Um outro problema que estava ocorrendo era uma doença que começou a aparecer e atacava os trabalhadores das minas. Eles perdiam a noção de si e em alguns casos ficavam apáticos ou agressivos. Essa doença inicialmente foi ignorada por todos nós. Achávamos que a situação era por conta da possibilidade de fechamento das minas. Mas quando os casos começaram a aumentar, houve deslocamento de médicos para a região. Um desses médicos diagnosticou a doença baseado em fatos ocorridos com trabalhadores em outros países. O tratamento era o afastamento das funções com tratamento a base de medicações e nos mais extremos, isolamento e controle via medicação. Não havia onde colocar os trabalhadores afetados pela síndrome de pânico, nome dado pelo médico que identificou o problema. Os locais onde eram colocados, não ofereciam nem segurança e nem conforto para um tratamento a longo prazo. Foi ai que surgiu a possibilidade de se construir um hospital na ilha vulcânica próxima da costa. Essa ilha era pequena e pertencia ao Dom Diego por herança de família.

Ele mesmo fez questão de incentivar a construção. Bancou boa parte com recursos próprios. Era uma ilha de difícil acesso, cercada por um mar de corais que impossibilitava a navegação. Era um verdadeiro labirinto de pedras onde apenas uma entrada era possível e assim mesmo em determinadas condições da mare. O jovem Mendonça foi o desbravador da rota segura e desde então ficou responsável pelo transporte e manutenção do pequeno farol instalado la para orientar a navegação.

Assim que o hospital foi concluído, todos os doentes foram transferidos para lá. Havia suporte médico na ilha que se revezava periodicamente. Eu mesmo cheguei a ir algumas vezes acompanhando a jovem Ana que gostava muito da paisagem existente lá. Levávamos mantimentos para o faroleiro local além de peças para manutenção. Toda oportunidade de visita, lá se ia dona Ana acompanhando o jovem Mendonça.

As coisas voltaram a uma certa normalidade. Dom Diego auxiliando dona Mariá nas atividades da mina e tudo parecia estar se ajustando ate outra situação abater sobre as familias.

Em um fim de tarde, voltávamos para casa. As meninas estavam aguardando o nosso retorno. Eu, dirigia a charrete onde dona Mariá se encontrava. Chovia muito e ela não queria ficar fora de casa. Mais uma vez o destino me pregou uma peça. Estávamos andando lentamente por conta do charco que se formou pela estrada quando um raio atingiu uma arvore ao lado da charrete. Com o estrondo fui lançado longe da boleia. A mesma sorte não houve para dona Mariá. A Arvore veio a cair sobre a charrete danificando-a. Fiquei momentaneamente atordoado olhando a cena de longe. Difícil de descrever... Também não sei onde reuni forças para abrir o que restou da charrete e puxar para fora o corpo já sem vida da matriarca daquela família. Ali fiquei ao relento, guardando-a até que trabalhadores nos encontraram...Foi uma noite de muita dor e sofrimento para aquelas meninas...às vezes, em noites de chuvas como aquela, vem na lembrança os momentos de desespero em que passei lá. Difícil de descrever...

Novamente a generosidade dos irmãos e do senhor Diego se fez presente. Ele acolheu as duas garotas como a um pai. Deu toda a assistência que poderia dar. Os negócios da mina, deixou o Carlos dedicado na administração enquanto as meninas se recuperavam emocionalmente. Apenas a Catharina era que se mostrava arredia e explosiva. Atribuíamos às preocupações que viviam e ao próprio temperamento dela, muito parecido com o do pai.

Em pouco tempo, a rotina se fez presente novamente. Eu ficava dividido entre tomar conta da casa da família e atender as obrigações que me impunha de cuidar das meninas à distância.

A Catharina Assumir de forma mais integral os negócios da mina com o apoio do Carlos e a Ana ficou com o Mendonça dando assistências ao Hospital na ilha onde ela não se cansava de ir.

Já sabíamos que as minas não tinham mais condições de extração e por isso seriam lacradas. Boa parte do pessoal que trabalhava por lá foi absorvida como trabalhadores do Dom Diego e aos que não quiseram, foram regiamente remunerados com valores que davam condições iniciarem novas vida em outras localidades.

Carlos iniciou um empreendimento com Catharina na fábrica de vinhos. Montaram nova vinícola.

Nesse período, o antigo faroleiro veio a óbito e não tinha ninguém que assumisse o posto. Foi ai que me candidatei e ocupei a posição deixada. Casei-me com uma filha de pescador da vila a qual faleceu ao dar a luz a minha netinha que vocês já conhece. Batizei com o mesmo nome da mãe. Constance. Uma singela homenagem. Aqui vivo e vivi momentos de intensa alegria.

O convívio entre os quatro irmãos era muito bom. A única que destonava era a Catharina que pelo temperamento forte não admitia maiores aproximações afetivas mesmo com a irmã Ana. Vivia mergulhada nas atividades laborais e raramente saia com os meninos. Pouco conversava e quando fazia era para tratar questões de trabalho. A única pessoa com quem ela mais dialogava era com o velho Dom Diego. Ate aquela noite do aniversario dele. Onde anunciou noivado dela com o filho Carlos. Claro que ninguém esperava isso. Pegou todos de surpresa. Mendonça após a surpresa desatou a rir. Carlos parecia que tinha tomado um soco na cara. De boca aberta não sabia onde enfiar a cara. Ana por sua vez corou e empalideceu, mas manteve-se reservada. A única que reagiu com indignação foi a Catharina. Levantou disse um monte de impropérios e se retirou da sala. Dai para frente foi um zum, zum, zum dos diabos. Todos sem entender direito o que se passara. Nem os empregados. Daí para frente vocês conhecem a história. Acabou ali a festa. Cada grupo foi para seu canto. Vocês dois ficaram com o Mendonça na bebedeira e logo saíram. Eu fiquei atento a Ana que parecia não estar bem. Atendi e ajudei a se recolher no quarto. Lagrimas desciam do seu rosto e por mais que eu tentasse amenizar não entendia o porquê.

Catharina já estava no quarto. Desci e ajudei o pessoal a pôr ordem na casa. Mais tarde nos recolhemos cansados e cheios de perguntas sem respostas.

Não sei precisar em que momento, mas acordei com os gritos de Catharina com o Dom Diego. Estavam discutindo no andar de cima. A discussão culminou com a saída apressada das meninas da casa em direção à casa delas. Esforcei-me para ajudá-las e levei-as então deixando para trás o velho Dom Diego que acompanhava tudo olhando pela varanda do andar de cima.

No dia seguinte acordei tarde pensando no que havia ocorrido noite anterior. E aí veio a segunda notícia. O velho Dom Diego havia morrido durante a noite. Se as coisas estavam ruins e confusas, agora a coisa ficava pior.

A notícia caiu como uma bomba na família. Eu mesmo ainda não compreendia o que havia ocorrido na noite anterior e agora mais essa situação.

A Ana chorava baixinho em um canto e a Catharina estava pálida e tremula. Imóvel, ficou por um bom tempo à mesa sem esboçar reação. Ela primeira vez vi a Ana tomar as decisões da casa. Rapidamente ela delegou algumas providencias a serem tomadas e subiu para o quarto se arrumar. Levou a Catharina que obedeceu de forma autônoma. Pediu que preparasse o transporte para levá-las até a casa de Dom Diego.

Chegamos

No meio da manhã e a casa estava um pandemônio. Muitas pessoas entrando e saindo, muita conversa pelos cantos. Carlos tomando as providencias nem reparou na chegada das meninas. Ana se apresentou à sua frente em um abraço fraternal. Já Catharina nem se aproximou. De longe ficou a acompanhar a movimentação e a preparação para o velório. Estava em um comportamento bastante estranho para a personalidade que tinha. Isso me preocupou. Fiquei então a observá-la. Onde quer que ia, acompanhava com o olhar aguardando qualquer situação que exigisse intervenção. Teve um momento em que ela subiu ao andar superior e adentrou no quarto de Dom Diego. Permaneceu por lá muito tempo e quando saiu me pareceu estar levando algo em suas mãos que não dava para ver direito. Novamente estranhei o comportamento da garota.

Duas ou três vezes Carlos e Ela se viram. Ambos se olharam e ficou nítido que o Carlos estava muito zangado com ela pelo que ocorreu. Mas se comportou com um cavalheiro. A noite transcorreu sem maiores problemas, entre entrada e saída de pessoas próximas a família e de curiosos, não se via o irmão Mendonça. Parecia que tinha sido engolido pela terra.

La pelas tantas da noite, a Catharina e o Carlos estiveram frente a frente em uma conversa discreta. Acredito que ele deva ter perguntado a ela o motivo da discussão tinha sido exclusivamente o anúncio do noivado deles dois ou se havia algo mais. Foi uma conversa longa e tensa. De onde estava não dava para ver ou entender o que diziam. Mas, muitas coisas ali foram reveladas e ficaram com os dois. Depois se separaram e no dia seguinte ao enterro, cada qual foi para o seu lado e não se falaram mais. Os assuntos que tinham juntos eram tratados através de intermediários das duas empresas. E assim os meses se passaram ate que na festa da padroeira da cidade o padre local conseguiu reuni-los novamente. Como ele conseguiu? Só ele para contar....Mais segredos....

O retorno das meninas para a casa dos pais me deu a oportunidade de conhecer aquela com quem posteriormente me casei e com a qual me presenteou com essa família linda que tenho hoje.

Morei por um ano ainda com as meninas cuidando e auxiliando nas atividades da casa. Após esse período, quando conheci a Das Dores minha esposa, aceitei vir morar no farol já que o antigo tinha morrido e não tinha família. Passei a cuidar das meninas de longe. Principalmente a mais nova, que costumava ir com frequência para a ilha dos loucos acompanhar as atividades por lá...

Seguiu-se longo período de silencio onde se ouvia apenas o barulho das ondas a bater nas pedras e o vento... Já estava bastante frio apesar da noite estar clara devido a lua cheia.

- Vamos dormir!!! Disse o velho do farol. Já está na hora de descansarmos. Já tivemos muitas revelações por hoje. Acredito que é hora de buscar outras informações em outras fontes.

Todos nós concordamos e em silencio nos deslocamos para os nossos cômodos. Foi um dia de muitas descobertas. Processar todas as informações ali reveladas seria uma outra ginastica. Requeria recolhimento e silencio.

No dia seguinte acordamos tarde. O sol já ia alto e o tempo estava convidativo a um banho de mar. Mendonça já ia na frente incentivando a todos para esse momento. Desceu a pequena trilha que levava a uma pequena faixa de área protegida pelas pedras e se atirou na água. Não me fiz de rogado, também segui os seus passos. Lá já se encontravam o velho faroleiro, Jonas e algumas pessoas da região. Fizemos uma festa. Há muito tempo não me divertia assim. Lembrou-me tempo de infância quando íamos à praia em alguns finais de semana lá no orfanato.

Por volta do meio dia, almoçamos e nos despedimos do pessoal. Tínhamos um longo caminho a trilhar ate a vila. Ate aquele momento não havíamos tocado no assunto que nos levou para lá e nem especulado quais seriam os próximos passos. Foi Jonas que puxou o assunto enquanto retornávamos pela trilha.

- Devíamos ir ver o padre Rocco. Ele auxiliava o antigo padre da nossa igrejinha. Talvez ele tenha informações que não saibamos. E hoje é um bom dia!!! Ele costuma sair para ir ao retiro.

- Retiro ? Que retiro? Perguntei....

- É como a gente chama a pequena propriedade da igreja onde os padres vivem. Uma espécie de balneário utilizado para repouso e também planejamento dos eventos da nossa padroeira. Um lugar muito bonito. Muito verde e uma visão maravilhosa da baia. Não custa nada tentar. O que você acha Domingos?

- É por ai. Acho que a próxima ponta dessa história pode ser esclarecida por lá.

Não demoramos muito a alcançar o lugar conhecido como retiro. E como haviam dito: La estava o padre Rocco. Chinelos, chapéu para proteger a pele do sol embaixo de arvores observando o mar.

Ele nos viu e esboçou um largo sorriso quando reconheceu os dois pescadores.

-Hora, hora, hora... Que é vivo sempre aparece....

- Que devo a honra dessa visita senhores? Sentem-se...

-Padre Rocco disse Jonas: Estamos aqui em uma missão muito especial e o senhor pode nos ajudar... Queríamos lhe apresentar um jovem que conhecemos recentemente e que traz informações muito preciosas. Peço que o escute e depois nos diga se tínhamos ou não razão de tê-lo trazido aqui para falar com o senhor.

O padre Rocco olhou para mim e com um sorriso nos lábios, me convidou a sentar ao seu lado.

- Sente-se meu filho!!! Gosto muito de histórias. Mas aviso. De histórias alegres... Falou com bom humor característico.

Mais uma vez me apresentei e fiz uma retrospectiva de tudo que sabia e os motivos que me levaram até ali.

O padre ouvia e de tempos em tempos fazia pequenas perguntas e depois se calava como se refletisse sobre o que estava sendo informado.

Após o relato. Aguardei ansiosamente seu pronunciamento o que não demorou muito...

- Meu jovem! Sua história é incrível. E, me preocupa! Você falou com muita gente? Isso mexe com gente poderosa da vila. Temos que ter muita cautela ... Não se anda espalhando essas coisas por aí aos quatro ventos. Quem mais sabe?

- Nós, o velho do farol e o dono da pousada onde se instalou acho. Falou Domingos.

- Não é nada bom! Mexer com o passado que está enterrado... Foram muitas feridas que podem estar abertas em algumas pessoas...

- E o que vocês pretendem fazer... Vão ao dom Carlos e dizer isso? Acha que ele vai acreditar assim? Sem uma prova mais convincente? É capaz dele escorraçar vocês de lá a balas.

- Nós queremos mais informações sobre alguns pontos que estão obscuros padre. Falou Jonas... E o senhor pode nos ajudar a elucidar alguns deles. O senhor estava lá. Era auxiliar do antigo padre da vila.

- Meus filhos, existem coisas que não podem circular como vocês pensam! Ainda mais quando são feitas no confessionário!

O que ouvi aqui é significativo e pode vir a desvendar outros mistérios nas vidas de duas familias e na comunidade local. Mas, ainda assim é insuficiente e não apresenta proposito maiores do que satisfazer a van curiosidade. Sinto muito, mas não terão de mim relato algum.

- Padre Rocco!! Por amor a Deus!! O rapaz veio buscar a verdade e cumprir uma missão!!! Em nome de nossa velha amizade! Reconsidere! Já pensou na hipótese de repararmos equívocos que foram feitos? Falou Jonas.

- Penso nisso todos os dias!!! A vida de apostolado não é fácil! Principalmente quando há um envolvimento emocional tão grande com os protagonistas dessas histórias!!

- Por hora as informações trazidas aqui são importantes, mas não são suficientes para remexer um leito de rio que adormece....

- Bom padre, falei quase em um sussurro. Poderia pelo menos ler algumas cartas escritas pela minha mãe adotiva e que trago comigo. Há muitas coisas lá que diz respeito ao que ocorreu por aqui e que ainda não compreendo. Após lê-las, o senhor decide se vai nos ajudar ou não. Pode ser assim?

Fitando-me com ar severo, após alguns instantes de meditação, balançou com a cabeça positivamente.

- Lerei suas cartas. Mas independente das informações contidas nelas, poderei não querer colaborar com vocês e gostaria de que fosse respeitado isso. Combinado? Deixem o material aqui e voltem amanha depois das quatro horas. Estarei exatamente aqui.

Lentamente retirei da mochila uma pequena caixa envolta em um plástico. Ali dentro haviam cartas guardadas pela minha mãe adotiva e as quais guardava como um tesouro.

Advinhando o que pensava, o padre Rocco pegou cuidadosamente o pequeno embrulho e falou..

- Não se preocupe meu filho! É da sua mão para minha. Sei muito bem o significado disso. Agora vão! Deixa um velho aproveitar o finalzinho do dia de folga.

Saímos todos ainda mergulhados nas impressões colhidas pelo encontro. Não sabíamos o que esperar. Restava então aguardar o dia seguinte. Particularmente, estava cansado!! As revelações e os dias agitados e cheios descobertas de certa forma minou minha resistência. Precisava, sim, estar sozinho, descansar e pensar...

Domingos que observava tudo atentamente, foi o primeiro a quebrar o silencio.

- Tivemos dias cheio de novidades. Merecemos descansar e recuperar as forças.

- Garoto! Se quiser passar a noite no meu barco, esteja à vontade. Lá você terá ambiente para refletir sobre tudo isso. Deixa que falo com o nosso amigo da hospedaria onde você esteve. Ele compreenderá. Também não se preocupe! Essa história ficará conosco. Agora eu e o Jonas vamos celebrar esses momentos lá no bar. Nos veremos pela manhã.

Falamos sobre trivialidades durante o caminho até alcançarmos o cais. De lá fui para o barco do velho marujo enquanto eles tomavam o caminho do bar. Estava muito cansado. Emocionalmente abalado com todas as revelações levantadas até aquele momento.

Não foi difícil encontrar o barco. Estava no mesmo lugar... Só que sem outros ao seu lado...Entrei e fui para a cabine. Lá havia um puxadinho improvisado onde o velho marujo dormia. O final de tarde estava chegando rápido e uma brisa suave, vinda do mar, alcançava o local tornando agradável aquele momento. Deitei-me e logo adormeci. O balanço das ondas ritmadas, a brisa fresca e o silencio embalaram o meu sono.

Despertei durante a madrugada, observando o céu coalhado de estrelas. Um espetáculo digno de ser visto. Busquei então nas minhas memórias recordar tudo o que ocorreu comigo, desde a saída do orfanato até aquele momento. Agora entendia por que as visitas eram implacavelmente entrevistadas quando apareciam em busca de informações sobre os internos. Naquela época achava um excesso dos administradores. Um verdadeiro abuso. Mas agora percebo que o intuito era de proteger alguém que se encontrava por ali e não podia ser revelado. Muitas coisas que ocorrera ali agora fazia mais sentido. Permaneci ainda um tempo acordado admirando as estrelas até cair em sono profundo.

Foi um despertar suave. Um amanhecer como nunca tinha experimentado. Sentia-me refeito do cansaço e com uma tranquilidade que há muito não sentia.

As últimas horas tinham sido de muitas emoções e revelações. Pude vivenciar e compartilhar histórias com pessoas incríveis. Quando aceitei cumprir o último desejo de minha mãe adotiva, não esperava que mergulhasse em algo tão fantástico e maravilhoso. Mais do que nunca iria ate o fim. Aquela missão deu-me novo significado à vida. Virou um proposito.

Olhei para o tempo e novamente os céus foram generosos com um lindo dia de sol. Me arrumaria e desceria para um café matinal.

Aguardaria lá embaixo, os marujos chegarem, para poder voltar a conversar com o padre Rocco. Tinha a esperança de que poderia conseguir mais alguma informação que melhor enquadrasse o imenso quebra cabeças que estava sendo montado...

Alguns minutos estava à mesa com uma imensa xícara de café às mãos. Apesar de estar com sol fazia frio.

- Bom dia meu rapaz! Falou nosso amigo dono da pousada. Posso sentar-me? E antes de responder, colocou uma segunda cadeira e se sentou sem cerimonias.

- Vejo que os seus novos amigos lhe levaram para alguma aventura. Estou certo? Coisa boa deve vir por aí. Sorrindo aguardava que lhe desse alguma pista.

- Sim, teremos muitas coisas a conversar. Mas no momento precisamos reunir mais algumas informações para não sermos levianos. Estou aguardando-os para uma nova excursão em busca dessas informações. Mas não se preocupe! O senhor terá um relato fiel e em primeira mão. Conversamos sobre outras particularidades da região enquanto aguardávamos o Jonas e Domingos.

Domingos chegou no exato momento em que termina de tomar café. Sempre alegre e brincalhão saudou-nos e pediu uma xicara de café.

- Filho! disse ele, vamos para o cais e de lá iremos no barco de Jonas ate o retiro onde o padre se encontra. Vamos ver o que ele tem a dizer hoje. Se arrume e pegue roupas extras. Poderemos sair de lá muito tarde.

Subi ate o quarto e peguei algo que pudesse usar para proteger do frio caso houvesse necessidade. Na sequência fomos até o barco de Jonas que nos esperava. Nos cumprimentou e com a ajuda do Domingos fez os procedimentos paras colocar a embarcação a caminho do retiro.

O trajeto foi curto, com pouco mais de trinta minutos dava para visualizar a pequena praia onde ficava a bela construção dos padres. Todo o caminho foi feito em silencio. Aproveitava cada minuto para admirar a beleza reinante daquele lugar.

Ao chegar no pequeno ancoradouro existente fomos recepcionados por um jovem que nos auxiliou e nos e acompanhou ate onde o padre Rocco se encontrava. Com o semblante visivelmente reflexivo, aguardou que nos acomodássemos ao seu lado e que o jovem se retirasse para outros afazeres.

- Ontem vocês vieram aqui com uma história fantástica! Deixaram dúvidas e questionamentos. Deixaram também esperanças que avivaram velhas brasas que tinha em meu íntimo adormecidas. Li as cartas fornecidas pelo jovem e são reveladoras... A propósito, estão ali em cima separadas em dois montes distintos. Não as junte! Explicarei o porquê. Guarde-as como estão arrumadas.

O que iremos conversar não pode em hipótese nenhuma sair daqui desse ambiente e ganhar o mundo dos curiosos. Algumas revelações ficarão por aqui mesmo. Esse é o nosso compromisso. Se concordarem, buscaremos ambiente mais reservado para conversarmos sobre.

Todos ali concordaram e silenciosamente acompanharam o padre a um outro ambiente que se encontrava no andar de cima da construção. Após a acomodação de todos no recinto, veio a sentar-se próximo de mim.

- você me disse que aquelas cartas eram de sua mãe adotiva. Estou correto?

- Sim, padre! Assim foi me dito.

- Não são... Há cartas ali que são de uma outra pessoa...da Ana.

Domingos e Jonas se olharam como se houvesse sido revelado o mapa de um grande tesouro. Puxaram suas cadeiras para mais próximo dos dois como se temessem perder mais alguma informação.

- Vamos aos fatos, falou o padre Rocco. As letras são bem parecidas, mas o contexto do que elas descrevem dão a pista de que são duas pessoas diferentes que escreveram. Agora, a revelação foi um trecho de uma das cartas que está aqui comigo. Essa em especial, traz informações de um garoto que apareceu por aqui, sem família e foi adotado pelo antigo padre da paroquia. Esse garoto foi educado nesse lugar que estamos e mantido longe dos curiosos e, em dado momento de sua vida, levado a estudar como seminarista retornando para cá e se integrando ao cotidiano da pequena vila como auxiliar do padre que aqui havia. Posteriormente assumiu a paróquia como padre substituto. Pois é meus amigos. Estamos falando de minha pessoa. Pouquíssimos conhecem essa história. Conta-se nos dedos. Temos aí eu e o meu benfeitor, o velho Dom Diego, Mendonça e Ana. Por isso afirmo sem medo de errar. Essas cartas que se encontram ali separadas, foram escritas pela Ana e de alguma forma foi parar nas mãos de sua mãe adotiva ou filha dela. E aí começa o mistério. Essa menininha nasceu lá na ilha e sua existência só foi revelada após alguns anos, por ocasião do incêndio que ocorreu por lá. Outra história com muitas pontas soltas a serem atadas. Mas vamos à parte que trouxeram vocês aqui.

Aquela noite, onde ocorreu o aniversário de Dom Diego, Foi o início de muitas revelações que ficaram encobertas a sete chaves. Uma parte dela trataremos agora.

Dom Diego era um religioso fervoroso e quando vinha na vila visitava com frequência a nossa paroquia. Ali conversava e buscava conselhos com o velho padre. Uma das questões que preocupava o velho era a situação dos filhos que não se movimentavam em busca de uma consorte para desposar. Estava com receio de não viver para ver seus filhos casados e com netos. Isso o incomodava principalmente por conta dos seus últimos exames feitos na capital quando descobriu que estava com um tipo de doença degenerativa no fígado e que poderia levá-lo à morte. Escondeu isso dos seus filhos mesmo com a insistência do velho padre que fosse revelado a situação. Ele era uma pessoa muito dócil mas teimoso. Por mais que o padre quisesse persuadi-lo a contar aos filhos ele se mantia irredutível. Dia após dia os dois lá na paroquia conversavam sobre essa situação. Até que em um belo dia, ele entrou radiante e falou conosco. Achei a solução. Vamos aproximar os meninos das meninas Ana e Catharina. Por certo haverá de termos bons frutos. Ainda me lembro a cara de espanto do meu velho amigo e tutor fez com essa revelação do Dom Diego. Tentou persuadir, mas o velho era teimoso. Disse que se não ajudássemos que ele faria tudo sozinho. Naquela tarde vi preocupação nos olhos do meu tutor. Sabia que dali não haveria coisa boa a sair. Despachou o Velho Dom Diego porta a fora da sacristia e se recolheu em orações o resto da tarde.

O velho pai dos meninos então iniciou seu grande plano. Desenvolveu atividades sempre colocando os casais juntos à frente dos negócios das duas familias com a desculpa de que eles tinham que trabalhar em equipe.

Bem antes do aniversario ele colocou seus planos em ação não considerando os protestos do meu tutor. Acreditava que dessa forma rapidamente criariam afeição que culminaria com os enlaces matrimoniais tanto esperado. Só na cabeça dele a coisa estava certa. Mas a natureza tem seus próprios caminhos de mostrar que não somos cupidos e nem agentes matrimoniais. A coisa estava caminhando para um desastre e o bom padre que a tudo assistia estava aflito tentando persuadir o velho patriarca sem obter êxito. Inúmeras vezes me mandou buscá-lo para conversas reservadas quando ele mesmo não podia ir ao encontro. Sempre irredutível e cada vez mais animado, o velho Dom Diego especulava como as coisas seriam.

Por outro lado, a forma despreocupada dos meninos demonstrava claramente a ineficácia das ações do velho. Para o nosso bom padre isso estava muito claro. Ele acompanhou o crescimento dos quatro e tinha muito nítido as características de cada um.

Mendonca tinha o espírito aventureiro. Sempre gostou do mar. Era solitário e gostava da sensação de liberdade que tinha com a prática náutica. Era responsável e gostava de desafios. Buscava sempre coisas novas. Não ficava parado. No dia que ficava dois dias em terra era porque estava doente.

Carlos era muito parecido fisicamente com o pai. Só que tinha o temperamento da mãe. Tímido e calado não externava suas emoções muito facilmente. Sua mãe em certa vez disse que se a moça que ele nutrisse afeição não percebesse e não fosse até ele, não ocorreria nada. Por ele, ficaria no sofrimento sem revelar seu amor. Foi assim com ela.

Do lado das meninas tínhamos a Catharina que era ágil e altiva. Durona nas horas necessárias, mas justa. Tinha o temperamento do pai. O que tinha a dizer dizia sem maiores rodeios. Já a Ana vivia num mundo de brincadeiras e inocência. Bastante amorosa e prestativa. Gostava de estar subindo e descendo pela vila em busca de auxiliar alguém em dificuldades.

Agora prestem a atenção. Se vocês querem revelações ouçam com atenção. Estou nesse momento quebrando um juramento que fiz ao meu tutor. O que falarei não será divulgado em hipótese nenhuma.

O fato era que em confidencia, a Ana revelou que nutria amor pelo Carlos e buscava atividades longe dele para que não percebesse. O Mendonça já sabia e colaborava com a traquinagem da garota. Por sua vez o Carlos também tinha uma queda pela garota. Mas acreditava que ela gostava do Mendonça. Agora o que vocês não imaginavam era que a Catharina nutria um amor secreto pelo Dom Diego (revelado depois da morte do velho fidalgo ao padre). Portanto percebam a confusão que foi naquela noite onde o velho fez o pronunciamento?

Estávamos todos calados e atentos as revelações do padre Rocco.O que ele nos trouce ate aquele momento, fazia com que algumas pontas dos quebra cabeças focem colocadas. Após pequena pausa feita, o nosso amigo voltou a dar continuidade ao relato. Novas surpresas estavam por vir.

- Vocês estavam na festa presenciaram o que ocorreu por lá. Apenas não entendiam as reações que ocorreram. A morte de Dom Diego no dia seguinte foi um choque para todos. Mas, naquela madrugada ele havia escrito carta ao velho padre e pediu que fosse entregue ainda naquela noite. Chamou um dos empregados que fez a entrega da referida carta sem questionamentos atendendo a um pedido do patriarca.

Era por volta de três da amanhã. Estávamos recolhidos aqui mesmo. Fomos despertos pelo barulho feito na porta de entrada. Fui eu mesmo que desci e atendi ao empregado. Perguntei do que se tratava e ele insistiu em falar com o padre. Disse que não seria possível àquela hora e que voltasse pela manhã. Ele disse que não sairia dali ate cumpri o que havia prometido ao patrão. Tive então que chamar o meu velho amigo e tutor. Ele desceu e recebeu das mãos do rapaz a carta escrita por Dom Diego. Assim que entregou virou-se e foi embora com a mesma pressa que chegara. O padre olhou a carta e olhando para mim pediu que fosse preparado um café para despertar. Subiu para este aposento, exatamente ai onde o Jonas está sentado e ficou aguardando a minha chegada com o café

Não demorei muito com o café. Servi e também me sentei ao seu lado aguardando os próximos passos. A carta continuava na mesinha à sua frente. Não fora aberta ainda. Após alguns minutos ele virou para mim e me pediu que a lesse.

- Rocco leia para mim. Estou com um pressentimento não muito bom.

Assim o fiz. Peguei o envelope e abri cuidadosamente para não rasgar nada que pudesse ser relevante. Lembro-me de cada palavra escrita lá como se fosse ontem. “prezado amigo, como fui louco em não lhe dar ouvidos. Mais uma vez sua perspicácia e conhecimento da natureza humana se mostrou extraordinário. E mais uma vez percebo como sou aprendiz no que diz respeito as relações humanas. Escrevo essas linhas para contar-lhe o que vinha ocorrendo comigo já algum tempo. Sei que não deve ter passado despercebido mas preciso elucidar alguns fatos. Duas semanas para ser mais exato. Venho suportando dores incomensuráveis. Tenho vivido os últimos dias a base de forte medicação analgésica. Não sei se chegarei ate o fim de ano. Às vezes o Carlos me olha como se adivinhasse o que ocorre comigo. Procuro despistá-lo. Mas seu olhar é de uma profundidade igual aos da mãe. Tenho certeza que já desconfia de algo. Acredito que deva estar aguardando o irmão retornar da viagem que foi fazer a negócios para se mover. Não tenho dúvidas que vai colocar-me na parede e ai extrair essa terrível verdade. Estou doente! E sinto ser uma ida sem volta. Rezo a Deus para dar-me forças para realizar esse último e grandioso plano. Vê-los casados. E por conta disso outra grande surpresa... Depois que anunciei o noivado da Catharina com o Carlos e suportar a ira da moça, eis que ela me aparece e, em conversa reservada, diz estar apaixonada por mim. Entrei em choque!!! Busquei apoio e parecia não ter chão. Precisei me amparar em peça próxima do mobiliário. Não acreditava no que ouvia. Ela com aquele jeito despachado que a caracterizava, repetia e repetia a declaração de amor a minha pessoa... Em outros momentos já havia percebido a afeição que ela demonstrava para comigo. Porem sempre imaginei ser por gratidão ou filial. Nunca me passou pela cabeça essa situação. Entre raiva e choro ela disse tudo o que queria e depois se voltou e foi embora. Fiquei ali parado, Atônito. Não sabia o que fazer.

Estava envergonhado. Sentei-me na cama tentando organizar meus pensamentos. A dor que sentia nos últimos dias em nada se comparava à ferida que se abriu em meu peito por conta da revelação...

Lentamente fui me acalmando e um pensamento forte tomou conta. Já havia vivido bastante! Estava na hora de sair de cena. Não é egoísmo, é uma certeza cada vez mais crescente de que o meu tempo por aqui estava terminando. E essa dor confirmava isso!

Não sou de fugir aos problemas e não considero o que ocorreu hoje como problema. Considero sim, como uma grande dádiva ter ouvido essa declaração de alguém que tem o meu respeito e afeição. Considero as duas meninas como filhas.

Tenho também sonhado com a falecida. Sempre sorrindo e me estendendo a mão como que convidando a acompanhá-la. Acho que vou aceitar...Tenho muitas saudades dela.

Aos meus filhos nada tenho a dizer a não ser do privilégio de ser o pai deles. Gosto dos dois. Cada um com suas características marcantes. Meu menino Mendonça com seu espírito aventureiro e seu caráter solidário, realiza os meus sonhos mais escondidos. Ouço suas histórias extasiado! Fico torcendo pelos retornos de cada viagem para ouvi-las. O Carlos é tímido como eu, mas tem um coração enorme!!! Ser Humano igual a ele não vi ainda. Muito competente e empreendedor. Nas suas mãos os negócios prosperam como nunca. Ele tem o que chamamos na área como o Dedo de Midas. Tudo que toca vai pra frente. Vejo na sua face a imagem de sua mãe. Por isso procuro aproveitar ao máximo sua presença.

Já sou um velho cansado de guerra e acredito ter cumprido a minha missão. A hora de partir chegou meu amigo. Agradeço imensamente pelos seus conselhos e acolhida à nossa família. Preciso descansar agora. Nos veremos quem sabe do outro lado.

Transmita meu apreço a todos os meus amigos e funcionários. No cofre do escritório tem orientações para todos. Para cada um deles escrevi algo. Foi de coração! Peça para o Carlos conduzir as minhas últimas vontades.

Me despeço mais uma vez com o coração livre de remorsos. Adeus.....”

Após longa pausa, padre Rocco continuou. - Naquela noite madrugada Dom Diego tomou alta dosagem de medicamentos e veio a óbito. Mantivemos a carta guardada por um bom tempo. Não revelamos a ninguém. O meu protetor me fez jurar, de joelhos no altar, que não contaria nada do que tínhamos lido ali. Esse segredo perdurou por um bom tempo. Ate no dia da festa da padroeira no ano seguinte. Quando o padre resolveu chamar o Carlos e a Catharina em uma conversa reservada e apresentou a ambos o teor da carta. Vocês não imaginam como foram as reações dos dois. Ficaram cada um profundamente afetados com as revelações. Até hoje apenas nós quatro tínhamos conhecimento disso. Agora vocês... Por isso deve permanecer aqui. A carta foi entregue ao Carlos e acredito que se não a destruiu, tem guardado até então.

Passados os momentos de impacto, as descobertas serviram para aproximar novamente as famílias. Acredito que também por conta disso o Carlos declarou amor a Ana o que foi prontamente correspondido pela moça.

Casaram-se um ano depois e tive o privilégio de realizar a cerimônia. Nesse período já estava atuando como padre da paroquia e o velho padre, meu amigo e protetor, em repouso por conta da idade avançada. Aqui ficou até a sua morte.

Está enterrado aí no fundo. Próximo ao pomar e aos jardins que tanto presava.

O padre Rocco depois de pequena pausa. Olhou-nos e disse: - Estão ai as respostas que vieram buscar!

Qualquer outra coisa vocês devem ir ao pequeno sítio do Miguel. Miguel foi o prestimoso servidor de Dom Diego e que ainda está Vivo. Vivendo na propriedade que lhe foi dada após a morte do velho fidalgo.

Miguel pode ter outras informações pois continuou a servir o Carlos mesmo depois de ter recebido o sítio. Ele acompanhou o período de namoro e casamento de Ana e Carlos e ficou com eles ate o desaparecimento da esposa.

Ainda sob o efeito das revelações do padre, concordei com ele. Jonas por outro lado não escondia uma pequena lagrima que teimava por escorrer pela face acostumada com os rigores do tempo. Já Domingos envolto em pensamentos parecia estar revivendo algo no passado. Visivelmente emocionado não expressava reação. Ficamos assim por um bom tempo como a degustar um momento que nos despertava tantas emoções.

Mais uma vez o padre Rocco nos chamou a atenção!!

- Vamos garotos! Hora de tomarmos um café. Já está na hora de nos despedirmos e nada melhor do que um bom café.

Acompanhamos ele ate o andar de baixo onde um grande bule de café com alguns biscoitos estava sendo ofertado para todos. Com alegria, aceitei o líquido quente que nos revigorou. Agradecemos a atenção do padre Rocco e nos dirigimos para o barco.

Jonas foi o primeiro a falar.

- Rapaz que história fantástica. Jamais imaginei que teríamos a elucidação do que ocorreu naquela noite. Quantas vezes nos sentamos a especular as possibilidades do que ocorrera naquela noite. Lembra-se Domingos? Ate mesmo com o Mendonça. Noites e noites buscando respostas. E elas o tempo todo ao nosso lado.

- Pois é velho amigo! Mais do que nunca vamos ter com o Miguel. Espero que ele nos relate algo do período seguinte à morte de Dom Diego. Principalmente do sumiço de Ana e da morte de Catharina. Quem sabe a gente descobre o que ocorreu verdadeiramente com o Mendonça? Tenho a nítida impressão que tudo que sabemos não condiz em nada com a realidade ocorrida naqueles dias. Agora é uma questão de honra passar a limpo toda essa história.

- O sítio dado ao Miguel fica próximo das minas abandonadas. Vamos ter que deixar o barco no antigo cais das vinícolas. Espero que o pessoal de lá deixem agente passar. Vamos tentar.

Assim o fizemos, cerca de duas horas mais tarde estávamos entrando no antigo cais das vinícolas. Fomos logo interpelados pelos seguranças do local. Domingos tomou à frente e foi logo dizendo. Rapaz estamos com uma emergência. O barco está precisando de reparos se não afunda e temos que levar esse jovem ainda hoje lá para a casa de nhô Miguel e a única rota rápida é por aqui. Podemos deixar a embarcação aqui e pegá-la amanhã bem cedo?

Um dos vigilantes consultou o encarregado que por sua vez conhecendo os velhos pescadores autorizou que deixassem ancorado e que no mais tardar no dia seguinte retirassem sem falta.

Saímos às pressas para aproveitar ainda o dia. Andamos por cerca de uma hora por trilhas entre as fazendas de uvas. Por fim, chegamos ao portão da velha casa.

Fomos recepcionados pelos latidos de cães que se aproximaram. Atrás deles um rapaz que parecia ser da família. Chamou-os e foi prontamente atendidos.

Jonas e Domingos se identificaram e pediram para ver o velho Miguel.

- Esperem aqui. Vou ver se o vovô está em condições de receber visitas.

Ficamos aguardando o retorno do jovem rapaz que não demorou muito.

Fomos convidados a ir ate uma das laterais da casa onde encontramos o velho Miguel sentado e todo agasalhado. Sorridente reconheceu os dois marujos e convidou-os para sentarem-se próximo.

- Garotos! Que bom vê-los. Estão ótimos! Vieram visitar este velho? Que bom que se lembraram. Há muito tempo que não recebo visitas! E olhando para mim com curiosidade perguntou. É filho de quem? Não conheço o rapaz. Se aproxime meu jovem e sente-se ao nosso lado.

- Nhô Miguel falou Domingos. Viemos aqui em busca de elucidar alguns pontos de algo que ocorreu por aqui a muitos anos. Esse rapaz se chama Lucas e ele vai contar uma história que talvez você conheça melhor do que nós. E já vou avisando. A história é longa.

Miguel olhou para mim e sorrindo disse. – Ótimo! Gosto de histórias e as longas são as minhas preferidas. Presumo que vocês irão dormir por aqui. Vou mandar preparar os alojamentos para os senhores, tudo bem?

Assentimos positivamente e aguardamos que ele nos desse a chance de começar a contar todo o motivo que nos levou a estar por ali.

Após as providencias o nhô Miguel voltou os olhos vivos para mim e convidou a iniciar o relato. Mais uma vez comecei a contar desde o momento que entrei no orfanato, da convivência com a minha mãe adotiva e do que me levou a estar ali. Falei de tudo que havia descoberto, apenas omitindo a questão da carta do padre Rocco e o que ele tinha nos revelado. O velho Miguel ouvia tudo calado. Em alguns momentos parecia que iria interromper, mas deixava que a narrativa continuasse. Seus olhos brilhavam ora de curiosidade ora de viva emoção. Por fim conclui e fiquei aguardando sua reação.

- Você tem consciência de que pode ser um neto de uma filha que o dom Carlos nunca viu? Vocês já estiveram com ele? Disse nhô Miguel.

- Não estivemos ainda. Estamos apurando os fatos aqui e ali. Juntando peças de um quebra-cabeças. Por certo iremos ter com ele, mas não agora. Disse Jonas. O que você acha dessa história toda? O que você sabe que pode acrescentar ao que já temos?

O Velho Miguel estava com os olhos preso no passado. Revivendo talvez fatos ocorridos e que pudessem ser acrescentados ao relato recente dando novas pistas para elucidar outras interrogações não desvendadas.

- Meus amigos podemos conversar sobre essas familias. Porem os fatos aqui revelados não podem ser utilizados de forma leviana. Estamos mexendo com vidas de seres humanos. Gente que tenho o maior apreço e que devo muito.

- Não se preocupe! O nosso intuito é justamente entender o que ocorreu e ajudar na elucidação de coisas que ficaram sem respostas. Apenas nós três, o velho do farol, o padre Rocco e agora você sabe da história.

- Vamos então deixar para depois do jantar. Vão tomar um banho e comer algo. Após o jantar acenderemos uma fogueira como nos velhos tempos e falaremos um pouco mais disso.

Todos concordamos sem hesitação. Seria mais uma noite de muitas revelações.

O jantar transcorreu com muita alegria e descontração. Os velhos amigos se recordando das travessuras que fizeram por aqueles tempos de juventude. Foi momentos muito agradáveis. Levantou o humor e a alegria do local. Saímos da mesa e fomos nos sentar à frente da casa, numa varanda onde possibilitávamos ver o céu estrelado e uma lua brilhante e cheia. Noite clara e propício para o momento que estava prestes a começar.

Nhô Miguel após um momento de silencio, iniciou sua história.

- Bem meus amigos. Vamos ao que interessa... Uma semana antes da festa de aniversario acompanhava o patrão nos preparativos para o aniversário. Ele estava muito agitado. Tinham voltado as crises de dor e sangramentos que ele habilmente escondia dos seus filhos. Os remédios que tomava não faziam mais efeito. As dores eram maiores e difícil de esconder. Acompanhava aquele homem em todos os lugares guardando aquele segredo terrível. Isso me doía na alma. Sabia que seu tempo estava chegando e acompanhava seu sofrimento como se fosse meu. Vencemos a semana com muita dificuldade. Finalmente chegou o grande dia. Seria a celebração de um sonho que ele alimentava. Ver pelo menos um de seus filhos comprometido com alguém que ele tinha um apreço inestimável que era a senhora Catharina. Naquela noite, durante o jantar, tinha tido mais uma crise de dor o que obrigou a tomar uma dose maior do que o prescrito pelo médico. Insisti em que ele não descesse e deixasse que os filhos fizessem as honras com os convidados. Mas ele não me ouviu e foi ao salão. Sentou-se e buscou logo iniciar sua participação no evento para se retirar na sequência. Quando ele anunciou aquele noivado e viu a reação da menina Catharina foi como uma bomba para ele. Na cabeça dele tudo se encaixava. Ele ficou sem reação por um momento e depois quando se refez, procurou a garota para se desculpar. Ela havia se levantado e saído para um outro pavimento indignada. Naquele momento havia um burburinho geral. Todos falavam quase que ao mesmo tempo. Nesse momento ele sinalizou para mim, pedindo que o acompanhasse ao quarto. A dor tinha voltado. Assim o fiz, levei-o ate seus aposentos e lá procurei dar um pouco de conforto para aquele homem. Algumas pessoas o procuravam, mas eu não deixei que entrassem nos aposentos e vissem o que se passava. Ele me pediu que não deixasse que a menina Catharina saísse sem falar com ele. Devia-lhe desculpas e queria desfazer o equívoco cometido. Pedi então para uma das criadas que localizasse a Catharina e pedisse para ir ao encontro dele. As coisas lá embaixo já estavam mais calmas. Alguns convidados haviam se retirado e outros se concentravam na sala de estar inferior. Os meninos estavam também no andar de baixo tentando organizar o que podiam.

Quando a Menina Catharina subiu o Dom Diego se arrumou e foi ter com ela no saguão. Já havia se recuperado um pouco da crise e se sentia bem de novo para conversar. Pediu que ficasse por perto para uma necessidade ou outra. Os dois conversaram por alguns instantes. O meu senhor, tratou de se desculpar com a garota. Tentou explicar os motivos nobres que o levara a tomar aquela posição. Mas Catharina logo o interrompeu e disse sem rodeios que o amava. Seguiu-se um silencio interminável. De onde estava vi o semblante de Dom Diego pálido e tremulo. Não havia chão para ele naquele momento. Ela disse que o amava e desceu em disparada rumo à porta da casa. Ele por sua vez ficou ali encostado em uma cômoda como que paralisado. Nem percebeu quando cheguei ao seu lado e o ajudei a retornar ao quarto. Nada me disse. Ficamos assim um bom tempo calados. Busquei retirar suas roupas para que ele ficasse mais confortável. Quando estava para sair do quarto ele me fez um pedido!

- Miguel traga aqui meus medicamentos. Os novos que comprei recentemente, aqueles que você colocou na gaveta da cômoda de baixo. Peguei a caixa e comecei a abrir. Fiquei tremulo ao ver o teor da caixa. Lá não havia remédios, mas uma pequena ampola de veneno. Olhei para o patrão balançando a cabeça negativamente.

- Pelo amor de Deus patrão não faça isso!!!

- Já vivi muito! Meus filhos estão crescidos e logo, logo irei também. Que mal há em aliviar essa dor insuportável ao qual sinto?

- Não patrão isso é coisa séria. Vai de encontro aos nossos ancestrais. Não faça isso!!

Com muito custo convenci ele a não praticar aquele ato. Ele então pediu uma caneta e papel e disse que iria escrever uma carta ao padre da vila, seu grande amigo w confessor. Ao terminar de escrever pediu que levasse e só entregasse nas mãos dele. Fui correndo até onde o padre estava e entreguei o envelope. Depois corri de volta ao casarão. Tinha me esquecido de pegar a ampola com o veneno. Nem esperei resposta do padre. Cheguei por trás da construção sem que ninguém me visse e fui ate o quarto de Dom Diego. Abri o quarto, pois tinha a chave e encontrei-o deitado com os olhos fechados. Me aproximei da caixa e não encontrei a ampola. Procurei em todos os lugares e não vi. Novamente olhei para ele e me aproximei. Não respirava. Coloquei a mão em seu peito lentamente com medo de acordá-lo, mas sabia o que tinha ocorrido. Chorei, ali ao lado daquele homem que aprendi a amar e respeitar. Fiquei ali muito tempo parado.

Não sabia o que fazer. Tomei então a decisão de arrumá-lo melhor. Coloquei sua roupa de dormir. Avisaria aos seus filhos pela manhã do ocorrido. Arrumei as coisas, peguei os remédios e escondi para depois dar um fim. Ninguém saberia o que ocorrera verdadeiramente naquela noite. Assim deixei o quarto e fui ficar acordado no meu esperando a manha chegar. Pedi então que uma das meninas da cozinha levasse o café para ele. Instrui para bater na porta e anunciar que o café estava pronto. Obedeci a rotina de todo santo dia do Dom Diego. Não demorou muito tempo e ela retornou que não obteve resposta do patrão. Subi com ela atrás de mim e pedi que esperasse do lado de fora. Bati à porta algumas vezes e falei em voz alta como se ele pudesse me ouvir.

- Patrão! Já raiou o dia. O café está pronto!! Acorda. Olha! Vou entrar!! De licença por favor. Abrir a porta do quarto lentamente e entrei suavemente. Lá estava ele como deixara horas antes. Sentei-me ao seu lado passei a mão em sua testa e comecei a chorar copiosamente. A menina entrou ao ouvir o barulho e sem entender, olhou para mim e para o patrão deitado compreendendo a situação. Foi ela que saiu do quarto aos gritos dizendo que o patrão tinha morrido.

Fiquei ali sentado ate os outros virem ao meu encontro. O Carlos entrou e tentou reanimar o pai sem acreditar no que via. Depois se sentou ao seu lado e chorou como criança. Pedi aos demais que deixassem ele sozinho e que procurassem avisar aos amigos e pessoas mais próximas do ocorrido. Fiquei aquele início de manha ali com o Carlos entre contar a verdade e deixar como estava. Não sabia o que fazer. Por várias vezes me aproximei, mas não conclui o intento. Por fim, recolhi-me e aguardei por decisões dele.

Alguns minutos mais tarde o Carlos me pediu para procura o Mendonça lá na vila. Baixei a cabeça e fui cumprir a missão envergonhado pela minha covardia.

Voltei mais tarde com a informação que Mendonça tinha saído sedo com o barco sem saber que rumo tinha tomado.

Acompanhei o resto dia o patrãozinho Carlos nas providencias do velório. Vi quando as meninas chegaram. Estava preocupado com a reação do menino Carlos. Sorte que ele estava ainda digerindo a situação e havia a presença dos padres que vieram auxiliar nos preparativos. Fiquei então de olho nas meninas. A Ana ficou próxima acompanhando a movimentação do menino Carlos. A Catharina se aproximou do corpo do Dom Diego e ficou parada em silencio. Ela estava realmente muito comovida. Percebia seu estado emocional. Pálida e com o semblante muito carregado não tirava os olhos do falecido. Talvez prestando uma última homenagem ou se despedindo.

Enfim as coisas foram acontecendo, o enterro ocorreu e as duas familias não se encontraram mais. Os negócios eram tocados à distancia cada um na sua área de atuação. Mendonça apareceu depois de uma semana, ficou em casa por uns dias curando-se da ressaca. Ainda estava abatido com o ocorrido e não se perdoava por ter se ausentado. O que mais doía nele era o irmão que o tratava com indiferença. Sabia o quanto tinha sido leviano, mas amava o irmão e pretendia recupera sua confiança. Para isso contava com a minha ajuda que era seu confidente. Na verdade confidente dos dois. Me propus a ficar mediano as relações entre os dois numa tentativa de reaproximação. Era o que podia fazer depois de tantos anos de dedicação ao Dom Diego.

Essa tarefa não foi difícil pois os dois irmãos nutriam afeição mútua e se entenderam rapidamente. Lembro-me que naquele dia em que se acertaram o Mendonça prometeu estar sempre ao lado do Carlos e de ajudá-lo no que fosse possível para vê-lo sorrir de novo. Não era uma promessa era um pacto que se firmava ali. Fiquei muito feliz por eles.

O tempo passou e caímos na rotina. Já tinha recebido esse cantinho aqui do velho Dom Diego que me deixou em uma espécie de testamento, mas insistia em ficar servindo ao Carlos. Hora porque ainda estava com a consciência pesada por conta do ocorrido com o pai. Não me perdoava ter deixado ele naquela noite sozinho e nem ter retirado de lá a ampola de veneno que ele encomendara. Era um segredo que carregaria comigo para o tumulo. Não queria dizer aos meninos o que ocorrera de verdade.

Quase um ano havia se passado e os negócios andavam bem, mas a situação pelo lado das minas não estava boas. Havia a necessidade de fechá-las. Não estava mais sendo extraídos minérios e as galerias foram comprometidas por infiltrações e deslizamentos. Havia também os mineiros que tinham se acidentado e cujas familias reclamavam assistência das donas das minas. A Catharina e a Ana se desdobravam entre atender aos familiares e buscar alternativas para os velhos mineiros desempregados e suas familias. Sem falar que alguns surtaram pela doença misteriosa e eram encaminhados para a ilha. As despesas com o pessoal lá também não estavam baixas. Somente as vinícolas estavam indo de vento em poupa.

Tanto o Mendonça quanto o Carlos ajudavam no que podiam mesmo sem a aproximação que tinham antes da morte do pai.

As coisas só vieram a melhorar por ocasião da festa da padroeira com a intervenção do nosso padre que chamou o Carlos e a Catharina em reservado e revelou o teor da carta feita pelo Dom Diego naquela fatídica noite. Lá foram esclarecidas dúvidas que carregavam no peito. Pediu que houvesse reconciliação para o bem de todos e da comunidade que dependia das atividades desenvolvidas pelas duas familias na região. Firmaram um pacto de mútua ajuda e de cooperação em prol da vila e da memória dos familiares que deram a vida pelo desenvolvimento da região.

Daí para frente as familias voltaram a se falar e frequentar os ambientes juntos. O Carlos ajudou a Catharina na liquidação de dívidas contraídas pelo fechamento das minas e a incrementar os negócios da vinícola que eles tinham em conjunto. Os ex mineiros foram capacitados a desenvolverem atividade na área pesqueira e nas fazendas de uvas. Os que contraíram a doença do pânico, foram deslocados para a ilha e passaram por tratamento especializado. Periodicamente Mendonça buscava equipes de médicos e remédios para suprir a ilha das condições necessárias visando atender aos internos de lá.

As coisas estavam indo bem. A Ana estava desenvolvendo as atividades assistenciais com o Mendonça na ilha e no resto do tempo ficava dando apoio na administração das coisas da vila e de casa. Essa aproximação foi muito positiva pois fez com que ela e o Carlos desenvolvesse mútua afeição que culminou com a união deles no final daquele mesmo ano. Foi uma notícia que agradou a todos que viviam por ali.

O Casamento dos dois ocorreu lá na nossa matriz e contou com a presença de muitos convidados. Foi uma festança. Levou pelo menos uma semana de comemorações. O padre Rocco foi que conduziu a cerimônia. Nos dois meses seguintes ainda se falava do evento.

Pelo menos dois anos se passaram sem maiores novidades. A vila estava com suas atividades normais de pesca e de atividades nas vinícolas, os aventureiros que apareciam por conta das minas desapareceram depois delas terem sido lacradas, os internos da ilha, alguns voltaram do tratamento e se reintegraram também à rotina e outros, junto com suas familias, optaram para ir em busca de novas oportunidades em outros centros.

Eu mesmo, já me encontrava por estas terras com minha família. Continuava a trabalhar para o Carlos atendendo como podia.

Mas nesse período de dois anos ninguém prestou a atenção no comportamento de Catharina. Ela se mantinha cada vez mais reservada. Falava pouco e saia pouco também. Em algumas oportunidades presenciei o modo como tratava os funcionários das fazendas de uvas. De forma grosseira e quase tirânica exigia de todos os seus comandados não tolerando faltas ou falhas. O patrãozinho Carlos já havia notado também e tentava remediar as situações de desconforto que ocorriam. Conversava com ela sempre pedindo que fosse mais paciente para com os funcionários entre outras coisas.

Ela havia mudado. Aquela jovem de antes, justa e altiva agora se transformara em uma tirana. E as coisas pioraram quando a Ana anunciou que estava gravida.

No primeiro momento foi uma alegria geral. Todos ali gostavam do casal e tinham por eles maior apreço. O Mendonça não parava de trazer presentes para o futuro rebento da família. Brincavam e sorriam. Era uma maravilha ver como eles celebravam a vida. Mas Catharina, por outro lado, sempre recolhida e reservada parecia não compartilhar com a felicidade do casal e continuava a fazer das suas no ambiente de trabalho e também em casa. Via-se claramente a infelicidade que se abateu em seu semblante. Até as roupas que usava demonstrava seu estado de humor. Espera o casal sair para aprontar com os funcionários. Principalmente os mais próximos de Ana, sua irmã, e Carlos. A coisa estava se tornando seria que em dado momento o próprio Mendonça foi conversar com ela e ambos discutiram de uma forma que assustou a todos. Nunca havíamos visto Mendonça tão contrariado. Me lembro como se fosse hoje. O Carlos e a Ana haviam saído cedinho para a missa das 07:00 na vila e iam ficar por lá. O Mendonça ficou provavelmente para conversar com a Catharina que adquiriu o hábito de levantar aos finais de semana sempre mais tarde. Eu voltaria para casa mas naquele dia algo me fez ficar. Pressentia que teríamos um dia difícil. Aguardei torcendo para que fosse só impressão de um velho.

Pois bem. A moça acordou e como de costume pediu que o café fosse servido no quarto o que foi atendido prontamente. Depois ela desceu e viu o Mendonça na sala. Não deu a devida atenção para ele. Era como se não estivesse ali. Estava realmente mudada. Não era a mesma pessoa que conheci e que conviveu conosco tanto tempo por ocasião de Dom Diego. Definitivamente ela estava doente. Não sabia de que, mas não estava da posse de suas faculdades.

Isso ficou evidente com o embate que se seguiu entre ela e Mendonça. O Menino pela primeira vez, abandonou sua postura apaziguadora e fez uma série de inferências ao comportamento inadequado dela. Pontuou condutas, cobrou dela mais respeito para com os subordinados entre outras coisas. A discussão foi braba. Teve um momento de exaltação que pensei que terminaria em mútua agressão. Mas felizmente o Mendonça não tinha esse perfil. Saiu e foi-se embora. O resto do dia tivemos que aturar o mau humor da menina. As coisas só melhoravam quando o Carlos e a Ana chegavam. Com a presença deles a Catharina se transformava. De tirana à moça doce e compreensiva.

As coisas começaram a ficar mais complicadas quando o Carlos precisou vir a capital para assinar contratos com novos fornecedores.

Nesse dia o Mendonça tinha saído para a ilha, como sempre fazia, levar os víveres e pessoal médico para lá. Deveria ficar por uns dois dias. Carlos por sua vez ficaria quase a semana toda fora. Ficaríamos sozinhos com a Ana e a Catharina.

O primeiro dia foi tudo bem. A Ana estava em casa e sua irmã passou o dia fora. Ninguém soube onde fora. À noite, chegou em casa na maior felicidade. Fato que estranhou a todos. Isso foi motivo inclusive de comentários por parte de todos naquela casa.

No dia seguinte um grande mistério iria começar. A Ana se preparou para ir a vila. Ate me ofereci para levá-la, mas ela pediu que ficasse e cuidasse das coisas. Disse que iria aguardar o Mendonça que chegaria por volta do meio da manhã. Iriam preparar uma surpresa para o marido Carlos. Avizinhava a data de aniversario dele e ela queria preparar uma surpresa para ele junto com o irmão.

Assim, mesmo relutante, deixei que se fosse. O dia estava claro e a estrada tranquila. Nada poderia ocorrer.

Seguimos com os afazeres normais da casa. Dona Catharina acordou como de costume no meio da manha e pediu o café em baixo na cozinha. Fato que causou estranheza a todos. Não era o costume dela. Desceu e se sentou. Pediu flores e ficou cantarolando músicas enquanto tomava o café. Diga-se de passagem, bastante incomum o comportamento da menina. O resto da manha passou sem maiores problemas.

As coisas se complicaram quando no início da tarde o Mendonça chegou sem a Ana. Informei que ela havia saído cedo para esperá-lo na vila. Ele confirmou que tinha feito esse acerto, mas que ela não estava lá. Pensou que havia esquecido ou coisa parecida. Aguardou o quanto pode.

Foi uma correria geral naquela casa. Todos com exceção da irmã Catharina se mobilizaram para tentar localizar a Ana.

Saímos para todas as direções possíveis. Do velho farol às vinícolas. Até nas minas fomos verificar. No final da tarde a vila inteira já sabia do desaparecimento misterioso da esposa de Dom Carlos. Todos em busca de alguma pista. Pescadores, trabalhadores do campo até o padre Rocco. Nada. Parecia que a terra tinha se aberto e engolido a moça.

A noite havia caído e a vigília se mantinha naquela casa. Fazíamos uma revisão mental para ver se existia algum lugar que não houvesse ainda sido pensado ou procurado.

Todos mobilizados. Grupos de buscas chegavam e saiam a toda hora da propriedade. Um dos últimos grupos de busca a chegar foram os trabalhadores das vinícolas que vasculharam pela região e não encontraram nada. A Catharina chegou tarde da noite, com alguns trabalhadores, relatando o fracasso nas buscas. Tinha ido na antiga casa que se encontrava desabitada na tentativa de achar alguma pista. Desanimada subiu para o quarto e lá ficou o resto da noite.

A noite foi longa. Mendonça a todo momento se movimentava na tentativa de encontrar uma ideia ainda não tentada. O Pessoal já tinha ido dormir. Poucos ficaram acordados na esperança de ver a garota entrar pela aquela casa. Assim a noite deu lugar ao dia. Estávamos abatidos. Mais uma vez reorganizamos buscas. Desta vez as procuras seriam feitas com o uso de alguns cães farejadores. Utensílios usados pela Ana foram colocados para que os cães sentissem o cheiro e pudessem encontrar alguma pista. Animo recuperado foram formados três grupos de buscas. Mendonça pessoalmente ficou à frente de um deles. Os outros dois ficaram com pessoal da vila. A Catharina que havia levantado ficou de ir à vinícola pois tinha assuntos a tratar antes que o Carlos chegasse e pediu que a avisassem caso encontrasse algum sinal da irmã. Todos nós nos indignamos com o comportamento da menina.

As buscas levaram o dia todo e nada foi encontrado. A última equipe a chegar foi a de Mendonça. Estava arrasado. Tinha ido em muitos lugares em que costumava levá-la e nada. Cansado e profundamente frustrado também não estava de bom humor. Ela primeira vez vi o Mendonça sem um sorriso e acabrunhado pelo insucesso. Pensativo se trancou no escritório do irmão e lá ficou por algumas horas. Não queria ser incomodado.

À noite ainda tinha o vai e vem de pessoas em busca de notícias e se oferecendo para participar das buscas. A própria Catharina desenvolvia rotas de buscas junto ao pessoal da vila para serem cumpridas no dia seguinte. Ela mesma dizia que se a irmã estivesse viva que haveria de encontrá-la. Assim se passou a noite e no dia seguinte sempre sem achar nada que indicasse o paradeiro da garota.

O Mendonça quase que não dormia e agora nem se alimentava direito. O irmão chegaria no dia seguinte e não tinha ideia de como contar o ocorrido. Não sabia o que fazer e nem onde procurar.

A Catharina por sua vez se desdobrava entre as atividades das vinícolas e a busca da irmã. Quase que não ficava em casa. Ate na ilha dos loucos ela esteve.

A notícia do desaparecimento de Ana chegou aos ouvidos de Carlos que chegou naquela mesma noite. Foi direto para o escritório onde o Mendonça usava como dormitório. Lá conversaram e em dado momento, dava para ouvi o choro do patrãozinho. Era coisa de dá dó...

Profundamente abatido com o acontecimento passou a ficar em casa. Não saia para nada.

Os dias foram se passando e nenhum fato novo era apresentado. Aos poucos as pessoas que haviam ido para ajudar nas buscas foram retornando às atividades normais do dia a dia. O Mendonça passou a ficar mais com o irmão e dividia as atividades da família com a Catharina que passou a ir regularmente para a ilha dos loucos no lugar do Mendonça levando os víveres e os profissionais que trabalhavam lá com os internos. Chegou até a construir uma ala nova onde podia ficar alguns dias e administrar as atividades do local.

Parecia que tudo ia caindo no esquecimento. Não se falava mais do sumiço da moça. Somente o Carlos e o irmão continuavam as buscas pela região. Haviam contratado pessoas da capital para encontrar pistas que levassem a elucidar a situação. A Catharina cada vez mais permanecia na ilha. Pouco ficava na vila. O Mendonça por sua vez absorvido entre os afazeres das vinícolas e a atenção ao irmão quase que não tinha tempo para as aventuras que empreendia pelo mar.

Os meses se passaram tão rapidamente como as horas do dia. Acompanhava esses momentos de angústia e sofrimento dos dois meninos.

Passaram a estabelecer rotina entre eles. De manha cedo iam à vila e ficavam lá no alto, no mirante, olhando o mar e a baia a sua frente. Depois iam juntos a cede das empresas e no final da tarde saiam pela região andando por entre os bosques. Só chegavam em casa ao anoitecer. Sabia dessa rotina porque era o responsável pelo transporte dos dois e ficava aguardando todos os dias o retorno deles.

Mais aí houve um fato novo que ocorreu nessas idas e vindas dos dois pelo campo.

Saíram como de costume da vinícola e foram para o campo andar. O tempo anunciava chuvas que eram comuns naquela época do ano. Mesmo assim foram e fiquei com eles para caso houvesse chuva podermos voltar em tempo. Nesse dia andamos lá pelas bandas da antiga casa dos Monzon. As chuvas chegaram rápidas e fortes e não deu muitas opções a não ser tentar chegar à velha mansão. Alcançamos com dificuldades. Era final de tarde e o tempo fechado fez com que a luminosidade caísse dificultando a visão. Chegamos todos ao velho casarão ensopados. La procuramos acender a velha lareira que ainda havia na sala para nos aquecer. Cada um buscando algo que ajudasse a nos mantermos aquecidos e secos. Fui pegar na parte da cozinha alguns pedaços de lenha do antigo fogão a lenha e Carlos subiu no andar de cima para pegar alguns cobertores ou algo que ainda pudesse ser usado para secar-nos.

O Mendonça desceu para o galpão anexo onde foram guardados alguns moveis da casa. A esperança era encontrar alguma roupa mesmo velha que pudesse servir de vestuário no lugar das roupas molhadas.

Todos Estavam atarefados. Já estava montando a pequena fogueira na lareira e Carlos com algumas toalhas velhas e cortinas usadas estava separando para usarmos para nos secar. Era período de frio. O inverno estava por chegar e as chuvas costumavam ser intensas e acompanhada de muito ventos.

Acendi o fogo e o Patrãozinho Carlos cortava as cortinas transformando-as em toalhas. Já estávamos nos enxugando quando o Mendonça entrou lívido. Parecia uma estatua de cera. Olhei para ele e me aproximei para entregar um dos pedaços de cortina. Ele nem deu bola. Foi ao encontro do irmão que ao ve-lo foi logo perguntando.

- O que é que houve? Está se sentindo bem?

Ele sem dizer uma palavra abriu a mão e entregou ao irmão uma correntinha com uma santa como pingente. O Carlos olhava para a corrente e olhava para ele repetidas vezes. Compreendi de imediato o que se passava. Era uma joia que o Carlos deu de presente a Ana quando se casaram. Ela nunca tirou do pescoço.

Estava ali, naquele lugar. Mas, como? Os irmãos se abraçaram por um momento. Não pude evitar que lagrimas escorressem dos olhos. Era uma cena comovente. Depois de um dado momento o Mendonça falou.

- Encontrei lá no galpão. Embaixo de um monte de coisas que deixaram por lá. Não dá para ver detalhes. Vamos improvisar algumas tochas e verificar melhor.

Assim fizemos. Confeccionamos algumas tochas e nos deslocamos para o local indicado. Começamos febrilmente a retirar as peças, moveis antigos e coisas que se encontravam amontoadas. Tudo com muito cuidado. Não sentíamos mais frio. As coisas foram sendo afastadas e em dado momento pudemos vislumbrar a carroça que havia desaparecido com a Ana. O Carlos ficou momentaneamente parado olhando-a se se mexer. Temia se aproximar e olhar seu interior. Percebi que naquele momento minhas mãos tremiam. Não de frio, mas pelo que se apresentava à nossa frente.

O Mendonça foi lentamente se aproximando para verificar o interior. Colocou a tocha e observou cuidadosamente o interior. Voltou-se para o irmão que o observava atentamente.

- Não está aqui!!! Ela não está aqui!!

Brotou quase que imediatamente nos olhos de Carlos lagrimas em abundância. Um choro que foi libertado e traduzia todo o sentimento aprisionado por ele desde o dia que recebeu a notícia do desaparecimento da esposa. Ficamos ali parados por um bom tempo.

O Carlos foi o primeiro a se mexer. Se aproximou da carroça e começou a retirar as peças que a impediam de se deslocar do lugar em que se encontrava. Fomos em seu auxílio. O Trabalho foi exaustivo e levou muito tempo. Não saberia precisar quanto tempo se passou. Enfim pudemos deslocá-la para um lugar em que poderíamos verificar melhor. Foi difícil retirar de onde se encontrava. Tivemos que utilizar de cordas improvisadas para puxá-la do local onde se encontrava.

Ao final da tarefa estávamos exaustos. O Carlos todo suado olhava cuidadosamente cada pedaço da carroça tentando adivinhar o que ocorrera por ali.

Depois de muito olhar, optamos por esperar amanhecer e buscar ajuda na vila. Ficamos sentados ao redor da carroça temendo não a encontrar no dia seguinte.

O sono veio que nem senti. Acordei com o Mendonça me pedindo para ir a vila e trazer o pessoal de confiança para ajudar nas buscas.

Assim fiz. Fui e chamei algumas pessoas de confiança Da família e informei na casa onde estávamos. Não disse o motivo. Segui as orientações expressas do Mendonça.

Retornei com a força tarefa solicitada. La encontramos os dois rapazes verificando tudo ao redor do galpão. Eles haviam marcado o espaço em áreas e pediu que dividíssemos a equipe em cada um daqueles espaços marcados. Assim o fizemos. Por volta do meio dia paramos para comer algo. Os irmãos sempre reservados conversavam entre si a cada verificação feita.

Estava claro para mim que eles haviam descoberto algo e mantinham entre eles essa descoberta.

Não sabia o que eles haviam descoberto, mas o que pude observar era que muito provavelmente a patroa Ana foi vítima de sequestro. Amarrada e levada até ali. Em dado momento lutou com seus algozes. As marcas no interior evidenciavam isso. Outra observação que pude fazer: No chão havia marcas antigas de pelo menos duas outras carroças. Não houve a princípio ferimentos porque não havia marcas de sangue. Ela foi dominada e provavelmente deslocada para uma das carroças que ali se encontrava e levada para um outro lugar. Podem inclusive ter dopado com algum entorpecente. No interior da carroça havia pequeno lenço que provavelmente fora usado na tarefa.

O restante da tarde transcorreu sem maiores novidades. Toda e qualquer peça encontrada era antes de ser mexida, comunicada aos irmãos que iam juntos observar de tecer comentários.

Algo novo se revelou ali e que os irmãos entenderam. Via claramente na troca de olhares entre eles. Havia uma espécie de cumplicidade e de uma alegria que saltavam dos olhos deles. Um brilho que a muito tempo não via.

Ao final da tarde o Carlos designou dois trabalhadores de confiança a montarem guarda no local com recomendações de não deixar ninguém se aproximar a não ser ele e o irmão.

Fomos para casa. Estávamos esgotados, mas relutava em deixá-los sozinhos.

Sabia que havia elementos que poderiam elucidar as questões que foram levantadas no dia do sumiço da Senhora Ana.

Chegamos em casa. Era grande o alvoroço dos funcionários. Queriam saber o que ocorrera com os garotos. Boa parte dos trabalhadores da casa tinham apreço pelos garotos. Tratavam como filhos pois viram crescer e se desenvolverem junto com seus filhos. Tinha uma ligação mais familiar e se preocupavam com eles.

Foi o Mendonça que falou para todos ali presente. Lembro como se fosse hoje.

- Calma pessoal!! Estamos bem. É que ontem descobrimos algo novo que pode elucidar o desaparecimento de dona Ana. O Miguel que estava conosco vai fazer um relato para vocês. Eu e o Carlos vamos tomar um bom banho. Poderiam preparar algo para nós comermos? Deixem no escritório. Grato a todos pelas preocupações. Dito isso subiram para os quartos.

Não pude acompanhá-los como desejava porque todos voltaram as atenções para mim exigindo explicações. Contei o que vi e o que entendi da situação. Mas omitir as considerações que havia tecido ao longo das horas em que fiquei observando os dois irmãos.

Também precisava descansar e comer algo. Me sentia exausto. Aproveitei uma oportunidade em que trocavam informações entre si e fui para o quarto que usava. Lá tomei um banho e desci para a cozinha na busca de algo quente para comer. Consegui um bom caldo e um grande pedaço de cordeiro assado com pão e café. Aquilo parecia ter sido feito por fadas. Estava perfeito! Uma delícia.

O pessoal quando me descobriu na cozinha se concentraram lá em busca de outras informações. Ficamos nessa confusão ate que os dois irmãos apareceram na cozinha.

Carlos pediu que fosse servido algo para ele e o irmão comerem lá no escritório. Ficariam lá e pediu que não incomodassem eles. A não ser que fosse algo sério.

E antes de sair, virou-se para mim, e pediu que fosse ter com eles lá no escritório após a refeição. Assenti em silencio e tratei de terminar minha janta sem mais demora. Estava curioso para saber o que eles queriam conversar comigo. Os demais apenas ficaram me olhando sem nada dizerem.

Alguns minutos depois de ter feito a refeição fui ter com os patrões. Eles estavam ainda jantando e fiquei ali em pé, aguardando que dissessem alguma coisa.

O Mendonça se virou para mim e pediu que me acomodasse na poltrona perto da lareira. Obedeci e lá fiquei a olhar uns quadros do antigo e bom patrão Dom Diego com sua esposa e os dois meninos ainda pequenos. Bons tempos eram aqueles. Recordava com saudades. Não sei quanto tempo fique divagando com as lembranças do passado. Fui chamado de volta ao presente pelos meninos que já se encontravam ao meu lado.

O Carlos foi o primeiro a falar.

- Mestre Miguel! Não sei se percebeu a importância do que fizemos de ontem para hoje. A descoberta da charrete que levava a senhora Ana no dia do seu desaparecimento foi fundamental para elucidar algumas questões pendentes desde aquela época. Iremos fazer algumas perguntas e gostaríamos que o senhor respondesse sem pressa e ao sair, não comente com os demais. Faremos o mesmo com todos que estavam aqui por ocasião do desaparecimento de minha esposa. Pode ser? Podemos começar?

Assenti levemente com a cabeça.

- Naquele dia o senhor poderia descrever tudo o que fez, viu e ouviu? Alguma situação anormal ou pessoas estranhas rondando a propriedade?

Não tenha pressa para responder. Pense bem. Não deixe nada escapar de sua memória. Qualquer coisa dita pode ser importante agora.

Fiquei um momento pensando por onde começaria. Resolvi contar tudo que fiz desde o momento em que acordei no alojamento dos empregados.

Fiz um relato bastante minucioso de tudo que fiz, vi ou ouvi naquele dia. Sabia que era importante para eles e procurei não deixar nada de lado. Durante a minha narrativa o Mendonça fazia anotações e vez por outra os irmãos perguntavam algum detalhe. Busquei ser o mais fiel possível com a minha narrativa e lembranças daquele dia. Neste dia também fiz uma descoberta que me tirou um peso que carregava a um bom tempo.

Quanto eu terminei de narrar aquele dia, os irmãos pediram para não comentar sobre nada que foi dito ali. Eles me pediram sugestões de pessoas que estavam na casa naquele dia. Queriam ouvir outras pessoas. Dei as informações das pessoas que estavam lá naquele dia e pedi licença para falar de algo que carregava comigo desde a morte do pai deles.

- Patrão Carlos e Mendonça. Gostaria de revelar um segredo que carrego comigo. Trata-se da noite em que seu pai morreu. Os irmãos se entreolharam e assentiram afirmativamente.

- Seu pai estava muito doente. Estava com os dias contados. Já algumas semanas antes, sofria de dores muito fortes. Na própria noite de aniversário ele teve que tomar fortes medicamentos para poder estar lá com vocês. Houve aquele desentendimento e ele retornou para o quarto. Não por conta do desentendimento com a menina Catharina, mas por conta das dores que haviam retornado. Lá ele me mostrou algo que havia encomendado de um farmacêutico amigo seu. Era veneno na forma de capsula. Ele disse que não aguentava mais as dores e que daria cabo da vida dele. Tentei persuadir, achei até que tinha conseguido. Porque na sequência ele lembrou das dificuldades que já haviam passado até aquele momento, falou de vocês, das meninas e aí, voltou aquela altivez que sempre mantinha no semblante. Deixou inclusive a caixa na cabeceira da cama. Tinha me pedido papel e tinta. Iria escrever um bilhete para o velho padre amigo seu. Busquei o material pedido e fiquei à distância aguardando que concluísse. Ele olhou a carta com calma e depois dobrou-a colocando em um envelope. Lacrou e me pediu que fosse sem demora entregar ao amigo. Recomendou não deixar ninguém pegar. Só o padre. Sai para atender o seu pedido. Deixei a carta na mão do santo padre e voltei às pressas para ficar com ele. Entrei no quarto e o vi imóvel. Chamei pelo seu nome baixinho. Me aproximei e vi o que tinha ocorrido. Na caixa não se encontrava mais a droga que ele havia encomendado. Ele tinha tomado o veneno. Fiquei momentaneamente em desespero. Depois fui me acalmando e decidi não contar nada a ninguém. Arrumei seu velho pai como se estivesse dormindo, dei fim nas caixas de remédio que ele tinha, inclusive a do veneno e fui para o meu quarto.

Pela manha chamei como de costume uma das meninas para levar o café dele e simulei surpresa ao encontrar ele morto. Resto os senhores sabem. Me desculpem por não ter dito isso ainda. Mas não queria que vocês soubessem que ele tinha se suicidado. Carregava esse peso de consciência até hoje. Não queria morrer levando isso comigo. Fiquei cabisbaixo aguardando a reação dos irmãos.

O que me surpreendeu foi a atitude dos dois. O Mendonça veio ao meu encontro e me deu um grande abraço. Fiquei ali sem saber o que fazer. O Carlos foi na gaveta da mesa e tirou de lá um frasquinho. Pediu para que eu olhasse. Quando vi, fiquei em estado de choque. Não acreditei no que via. O Próprio Carlos foi quem falou.

- Naquela manhã quando fui ver meu pai, que vocês me deixaram a sos com ele, percebi que segurava algo em uma das mãos. Era isso! Depois localizei algumas pessoas que me informaram tratar-se de veneno. Guardei esse tempo todo pensando no que ocorrera naquela madrugada. Busquei contato com o amigo dele farmacêutico que reconheceu a capsula e disse se tratar de uma encomenda dele. Mas o fato é que meu pai não se suicidou. Todos pensaram isso e deixamos que assim ficasse. Mas tanto eu quanto o Mendonça descobrimos a doença que ele carregava e que levou-o à morte naquela noite. Meu amigo, o seu patrão Dom Diego não se suicidou. Ele veio a óbito por causa da doença. Forte hemorragia interna foi o que deu cabo a vida dele.

Aquela revelação foi de extrema importância para mim. Tirou um peso de uma culpa que carregava desde aquela época. Não me conformava ter deixado ele sozinho com o veneno ao lado. Isso acabava com meus sonhos. Toda noite me culpava por isso. Naquela noite chorei nos braços dos meninos. Foi um desabafo.

Sai da sala de alma leve e alegre pela revelação. Havia tirado um peso enorme sobre os ombros.

Atendendo ao pedido dos meninos chamei outro empregado que estava naquele dia do sumiço da dona Ana e fui para o meu quarto deitar. Estava muito cansado e não queria conversar com ninguém naquele momento.

Quando acordei soube que as entrevistas ocorreram ate altas horas. Depois todos foram para seus quartos dormir. Apenas os dois irmãos permaneceram no escritório.

Perguntei se já haviam acordado e a resposta dada foi que tinha ido cedo para a vinícola. Retornariam para a o almoço.

Nesse dia também chegaria a dona Catharina que retornava da ilha e por certo ainda não tinha sido informada dos novos fatos. Os irmãos recomendaram não revelar nada para ela. Deixassem que eles mesmos iriam dar a notícia. Assim foi feito por todos.

Naqueles dias que se seguiram, sai daquela casa e vim para meu cantinho aqui.

Continuei a trabalhar para o Carlos, mas morando aqui.

Se vocês querem mais alguma informação é hora de conversar com o velho Dom Carlos.Com certeza ele tem mais informações que vão dar sentido aos fatos que ocorreram na sequência. De mina parte não tenho mais nada a declarar que vocês não já sabem.

Estou sentindo frio. Hora desse velho ir para a cama. Boa noite meus amigos. E voltando-se para mim disse: Sucesso meu jovem! Espero que cumpra sua missão!

Fiquei ainda com o Jonas e o Domingos digerindo, cada um à sua maneira, as informações que nos foram dadas.

Por fim o Domingos foi o que se pronunciou.

- Temos que agendar uma visita ao senhor Carlos. Vai ser difícil!! Ele é durão e muito reservado. Se a gente consegui pelo menos que ele nos escute já vai ser muito...

- Podemos pedir ao padre Rocco que nos ajude nesse encontro. O que vocês acham? A gente o atualiza do que sabemos e pedimos que ele interceda por nós junto ao velho Carlos. Ele tem acesso livre lá na casa.

Era a opção mais viável. Sem a interferência do padre, muito provavelmente não chegaríamos nem à porta da casa, quanto mais falar com ele.

Atualmente ele vivia recluso em sua propriedade e raramente saia. Poucos eram o que tinham acesso e conversavam com ele. Um deles, obvio, era o padre Rocco.

No dia seguinte levantamos bem cedo e fomo novamente de barco ao mosteiro onde o padre se encontrava.

Novamente nos reunimos na mesma sala em que estivemos no dia anterior.

Conversamos com ele que nos ouvia com atenção. Após colocarmos a par de tudo, revelamos a nossa intenção e pedimos a ajuda para o encontro com o Dom Carlos.

- Já conversei com ele meus jovens. Ontem mesmo. Disse o padre. Sabia que no final haveria de se ter esse encontro.

- Tive muita dificuldade de convencê-lo a ouvi-los. Ele que falar com o garoto. Apenas ele terá acesso a casa. Está marcada para amanhã pela manhã. Aconselho a levar tudo que você tem. Cartas, fotos, documentos, tudo que você trouxe meu jovem.

- Seja sincero e não espere com isso ter uma devolutiva calorosa por parte de Dom Carlos. São velhas feridas onde vocês estão mexendo. No início da manhã virá uma pessoa a mando dele lhe pegar e você ficará hospedado temporariamente por lá. Quando terminar ou independente do resultado que houver, você virá para cá. Entendeu meu jovem? lhe aguardaremos. Por hora, tenho atividades a cumprir. Fiquem à vontade.

Dizendo isso o padre Rocco nos deixou a sós com muitas espectativas e perguntas por responder...

Olhei para o Jonas e para o Domingos que sorriam como criança. Sabiam que tinha sido uma vitória conquistada o fato de ter sido convidado para esse encontro. Restava agora me preparar com tudo que porventura tivesse trazido: Documentos, imagens ou mesmo histórias contadas pelas pessoas. A forma como essas informações fossem dadas aliado com o material que levava, é que poderia garantir a continuidade das descobertas que até então ocorreram e desvendar de uma vez por todas os mistérios que cercavam as vidas daquelas pessoas.

Auxiliado pelos dois marujos, organizei de forma logica todo o material que tinha comigo. Não parei de ouvir as recomendações dos dois e do padre Rocco que de tempos em tempos vinha verificar como estavam às coisas. Pôr fim, tudo pronto, fui dormir carregando grandes espectativas para o dia seguinte.

Na manha seguinte, acordei cedo. Na verdade, não havia dormido bem. O estado emocional em que me encontrava não permitiu um sono tranquilo.

Desci para a área de convivência e lá encontrei os meus amigos a tomarem uma espécie de chá feito com ervas da região. Me juntei a eles e ali fiquei a ouvi-los sem emitir opiniões. Estava ainda anestesiado pelos últimos acontecimentos e pensando como seria o encontro com o último remanescente daquela família que desbravou a região e ajudou no seu desenvolvimento.

Um rapaz, ainda jovem, veio ate a sala e anunciou que o meu transporte havia chegado. Aquilo gelou minha alma. Era chegada a hora. Sai do estado de torpor em que me encontrava e passei a suar como se estivesse acabado de fazer uma corrida. Tremia, não de frio, mas de intensa emoção pela perspectiva do encontro e seus possíveis desdobramento.

Levantei-me vagarosamente e fui pegar a mochila. Olhei para os demais que acompanhavam tudo em silencio. O padre Rocco foi o primeiro a quebrar o silencio.

- Vamos meu jovem, eis a sua chance!!! Que Deus lhe acompanhe e Maria Santíssima lhe de discernimento para que as palavras possam ser bem proferidas. Estaremos aqui. Dizendo isso veio ao meu encontro e me abraçou fraternalmente. Os demais vieram na sequência dando tapinhas de animo os quais respondia com um sorriso amarelo.

Sai do recinto acompanhando o rapaz ate o local onde se encontrava o transporte que me levaria ate a casa do Dom Carlos. Assim que entrei e me ajeitei no interior do veículo da melhor forma possível pois, o mesmo saiu em disparada como que estivesse em uma pista de corrida. Fiquei encolhido no banco de trás aguardando chegar ao destino tão esperado.

Depois de quase duas horas aguentando os solavancos provocados pela forma despreocupada em que o motorista dirigia pelas aquelas trilhas, chegamos em uma grande construção. Fiquei maravilhado com a vista do solar. Muito bonito e bem cuidado. O Veículo parou na frente dos jardins onde havia uma grande fonte jorrando água. Fui convidado a sair do veículo. Ao lado da entrada principal da casa havia uma outra pessoa a me esperar. Sinalizava insistentemente para que me aproximasse.

Olhava aquele ambiente e parecia ter sido deslocado ao passado. Tudo que ali se encontrava, ainda permanecia como dito nas várias histórias contadas sobre o local. Tirando o carro que já se ia longe as outras coisas mantinham uma sintonia com o passado.

Subi os degraus ainda admirando todo o conjunto arquitetônico e a harmonia existente por ali. Uma sensação de paz e bem-estar invadiu meu ser. Não estava mais nervoso e nem agitado. Acompanhei a pessoa que me levou por entre vários ambientes ate uma pequena sala mais reservada com uma lareira e um monte de retratos pendurados na parede. Me pediu educadamente para aguardar por ali e se retirou.

Fiquei absorto olhando o ambiente e verificando os quadros que ali se encontravam.

Acima da lareira tinha um que mostrava a família toda. Provavelmente Dom Diego, a esposa e os dois filhos ainda pequenos.

Na parede do lado esquerdo vários quadros que acho ser da família da esposa do Carlos Dona Ana. Havia o quadro do casal com as filhas ainda pequenas. Depois as meninas já crescidas depois uma com cada uma em separado.

Do outro lado numa mesma sequência, a foto dos meninos ainda pequenos, depois os dois já adultos.

As feições do Mendonça eram muito mais semelhantes a da mãe, enquanto que a do Carlos se parecia com o velho pai.

Mais ao fundo outros quadros mostravam o casal Carlos e a Ana em vários momentos. Um especial havia em uma espécie de andor. Era o de Ana sozinha olhando ao longe para o mar como que a procurar por algo. Abaixo do quadro muitas flores se faziam presentes ornamentando o local. Parei um bom tempo a admirar a beleza da imagem. Ela me trazia uma familiaridade que não sabia de onde. Fui desperto pelo pigarro do senhor Carlos que se encontrava a uma certa distância me observando. Tomei um susto. Não tinha percebido a sua presença.

Meio que constrangido por não ter percebido a presença fiquei sem saber o que dizer e nem o que fazer.

O velho Carlos por sua vez apontou para uma poltrona próxima a onde se encontrava. Lentamente fui sentar-me procurando não provocar nenhum ruído.

Ficamos assim um bom tempo. Só o silencio entre nós. Ele me observava atentamente e eu não consegui fita-lo.

- Bem meu jovem, Lucas não é mesmo? O que lhe devo a honra dessa visita?

O que de tão importante você veio buscar aqui? Conte-me! Sou todos ouvidos...

- Bem senhor... eh, Dom Carlos. Eu estou aqui para cumprir uma promessa a minha mãe adotiva... Contei em breves minutos toda a minha peregrinação que fez com que estivesse ali. Durante toda a minha explanação o velho ficou a me olhar atentamente como que a avaliar o que dizia. Vez por outra voltava os olhos para as gravuras que ficaram atrás de mim. Terminei o relato. Seguiu-se longo silencio quebrado so pela respiração anasalada do antigo fidalgo.

- Senhor Lucas! Percebe a situação de momento? A sua presença despertou a curiosidade de muitas pessoas em torno de fatos já a muito esquecidos. O senhor sabe das consequências que isso pode trazer? Tem ideia?

- Essa senhora que se diz sua mãe e que foi dessa comunidade? Quem é ela realmente?

- Senhor, com todo respeito! Ela morreu e eu vim apenas para cumprir um último desejo. Não sei mais do que os que aqui vivem. Na verdade, não sei que foi essa minha mãe adotiva. Sei apenas daquilo que ela me falou e das histórias que aqui me contaram. Trago aqui alguns registros dela e gostaria que o senhor pudesse vê-los. Quem sabe há neles algo que revele a identidade dela?

- Não tenho interesse algum a não ser cumprir o prometido.

O velho fidalgo olhava a tudo atentamente. Sem pressa parecia refletir sobre o que iria dizer.

- Garoto você deixará esses registros sobre essa bancada aí próxima e ficará hospedado na ala de visitantes. Aguardará lá nosso próximo encontro. Dizendo isso chamou um dos empregados que se encontravam do lado de fora do recinto que me acompanhou em direção a área que me foi ofertada. Do mesmo jeito que entrou saiu por uma porta lateral sem dizer mais nada.

Lentamente deixei-me conduzir pelo senhor ate o local o qual iria ficar. Pensativo não sabia se tinha sido bem recebido ou não. Torcia para que no material que deixei, pudesse haver algo que chamasse a atenção do senhor Carlos.

Estava exausto pela expectativa que causou o encontro. Apesar de idoso mantinha no semblante uma altivez impressionante.

Passei o resto do dia na área a qual fui convidado a ficar. Não tive mais contato com o anfitrião a não ser por pequenas conversas que percebia ocorrerem entre os funcionários que ali estavam. Segundo eles foram instruídos a estarem ali para qualquer necessidade que houvesse de minha parte.

Não me sentia prisioneiro principalmente por conta do ambiente em que me encontrava. Estava em um quarto bastante amplo que dava para uma varanda ornamentada por flores naturais e que permitia uma vista fantástica da propriedade. Da varanda tinha acesso a uma outra parte da casa que me levava ao andar de baixo, onde existia uma sala com utensílios da época em que aquelas paragens eram apenas campos intocáveis pelo homem. Havia um chafariz do lado de fora, na lateral da sala, com agua esguichando de cântaros que anjos seguravam acima das cabeças e um pequeno lago que se formava pela queda das águas completavam o ambiente em que me encontrava. O silencio interno contrastava com o ruído normal do vai e vem das pessoas do lado de fora.

Fiquei hospede do Dom Carlos por três dias. Se ele não me chamasse não ficaria triste em continuar por ali. O ambiente era muito acolhedor e trazia uma paz de espírito que a muito não sentia.

No meio da manha do terceiro dia, fui chamado a comparecer novamente à sala dos retratos onde teria novo encontro com o Dom Carlos.

A mesma pessoa que me levou aos aposentos três dias atrás, veio em minha busca. Acompanhei até a referida sala onde já se encontrava o patriarca.

Me acomodei e aguardei pacientemente as suas palavras.

- Olhei seu material principalmente as cartas que você trouxe... Nelas encontrei pequenas centelhas de luz para as lacunas que carrego em meu ser... Isso me encheu de alegrias e ao mesmo tempo de dúvidas... Será que depois de tanto tempo tenho o direito de reabrir velhas feridas? Não sei se temos o direito de revolver esse lodaçal que no momento se encontra em estado de repouso. Não tenho mais forças físicas para mexer nesse caldo grosso que você me trás e talvez sofrer novas desilusões. Sem falar nos que estão ao meu entorno e que de uma forma ou outra podem estar interligados aos fatos ocorridos por aqui.

- Vou lhe contar uma parte dessa história e vamos por um fim a isto. Você volta para seu reduto e considere cumprida a sua promessa para essa senhora que lhe acolheu por caridade.

Ouvia a tudo calado. Suas palavras denotavam sabedoria e tranquilidade. Seguir seus conselhos talvez fosse a melhor coisa a fazer. Mesmo com toda a curiosidade a qual me estimulou a prosseguir, mas estava realmente abrindo velhas feridas... Enfim, aguardei o prosseguir do senhor Dom Carlos.

- Na noite em que eu e meu irmão Mendonça encontramos o pequeno pingente que havia dado a minha amada esposa Ana, tive a certeza de que ela não havia me abandonado como me fizeram acreditar tempos depois de seu desaparecimento.

Movi recursos para poder encontrar qualquer pista por menor que fosse do seu paradeiro. Entrevistei junto com meu irmão, todos os funcionários que tínhamos. Fizemos isso ate a exaustão. Buscamos fora, longe de nossas terras o inimigo oculto que nos desferiu tamanho crime. Mas, ele estava tão perto, tão perto. Não enxergávamos. Mas, como tudo na vida não fica por muito tempo mau feito, eis que veio a verdade.

Após ter feito toda a entrevista passamos a vasculhar furtivamente nos pertences dos mais próximos a nós algo que sugerisse ligação com o desaparecimento de Ana. E eis que encontramos. No quarto de Catharina, em uma caixa muito bem guardada, havia um pequeno mimo que dei a Ana e apenas nós dois sabíamos de sua existência. Antes da minha viagem, naquela fatídica semana, fiz a surpresa ornando seus cabelos de pequeno broche com as nossas iniciais. Não havia lembrado dele porque fora tão recente o presente que não dei falta. Apenas naquela revista o achado se apresentou. Fiquei em estado de choque com a revelação. Mendonça por sua vez, já tinha em momento anterior levantado suspeitas sobre ela. Sabíamos agora quem poderia ter sido o mentor do desaparecimento. Não entendíamos o porquê. Quais os motivos levaram a Catharina de sequestrar a irmã. Precisávamos ser cuidadosos para levar as investigações sem que ela percebesse. Sabíamos que provavelmente existissem pessoas na casa que estavam sob a sua guarda. Ela estava já há pelo menos dois meses na ilha e se aproximava a data do seu retorno.

Não dava para acusá-la pura e simplesmente sem maiores provas. Teríamos que vasculhar todas as coisas em que ela desenvolvia principalmente naquela época e as pessoas que eram de sua confiança. Buscar a localização. Arquitetamos um plano para elucidar o paradeiro da Ana.

Uma semana depois do achado na velha propriedade, o barco trouxe a Catharina da ilha como de costume. A charrete foi buscá-la sem maiores percalços. Havíamos contratado pessoas de fora para ficar de observação. Mantivemos a muito custo as aparências para não levantar surpresas. Sabíamos que ela quando soubesse do achado viria nos procurar, sondar algo.

Estávamos no escritório quando ela chegou agitada. Buscou inicialmente conversar com um de nossos empregados da limpeza e depois se dirigiu para o escritório.

Estávamos a debater o que poderia ter ocorrido. Ela entrou e já foi logo dizendo. Lembro-me como se fosse hoje...

- Meu Deus, fiquei sabendo que vocês acharam a charrete de Ana. Me contém onde, como? Tem alguma pista nova?

- Aguardamos ela sentar e colocamos nosso plano em ação naquele momento. Precisávamos ser convincentes para não despertar surpresas.

Contamos toda a historia de como encontramos a charrete, das entrevistas que fizemos com os funcionários. Evidentemente alguns pontos chaves não informamos.

A parte mais difícil foi a de ter de abraçá-la de maneira fraternal sem transmitir pelo sentimento o que sentia verdadeiramente. Mas na hora do abraço o Mendonça a pegou pelo braço e disse que queria falar com ela em particular. Saíram juntos para o pátio e eu fiquei me recuperando daquele momento.

Os dias foram se passando e ela nos preparativos para o retorno a ilha. Sempre alegando que tinha responsabilidades por lá. Que não queria ficar por aqui por conta das lembranças e tudo mais.

Por outro lado, começaram a surgir informes do pessoal que contratamos sobre as ligações que a Catharina fez no período do desaparecimento de Ana.

Ela tinha contratado um grupo da capital para levar uma encomenda para a ilha.

O engraçado era que ela utilizou um dos pescadores para guiar por entre as rochas e logo depois esse pescador sumiu. Na época não demos muita atenção por se tratar de um jovem que tinha o hábito de beber muito e se lançar ao mar bêbado. Atribuímos que havia ocorrido algo semelhante com ele. Pois esse rapaz, um dia antes guiou essa misteriosa expedição comandada pela Catharina em uma tarde noite saindo do cais da vinícola. Não havia nada a ser entregue partindo de lá. As cargas de produto já tinham ido em carregamento anterior feita pelo próprio Mendonça.

Estávamos então começando a juntar o quebra cabeça. Já tínhamos mais certeza do envolvimento dela, mas não sabíamos os motivos.

O próprio Mendonça decidiu que iria com ela para a ilha numa tentativa de se mostrar solicito e preocupado com as atividades por lá. Ela retrucou, mas depois de algum tempo aceitou. Acertaram então para no dia seguinte saírem todos no mesmo horário.

O engraçado é que no dia seguinte, bem cedinho, o pessoal da vila veio avisar que a embarcação dele estava com muita agua. Havia um furo no casco.

Ele teria que deslocar o barco para uma enseada próxima onde o pessoal faria os reparos.

Resultado. Mendonça teve que ficar para acompanhar os reparos e com esse evento ela foi sozinha para a ilha.

Dois dias depois veio notícia que nos deu a certeza final de que Catharina havia mesmo planejado tudo.

Carta de um médico que trabalhou na ilha para ela. Na carta, ele cobrava um valor que lhe era devido por serviços prestados na ocasião da sua estada na ilha.

Isso levantou o véu de uma conexão que poderia trazer mais elementos que elucidassem o paradeiro da Ana e comprometessem a Catharina definitivamente.

O Mendonça a pretexto de ir reparar o barco em outro porto, decidiu ir atrás do médico.

Eu, ficaria a conduzir as coisas na vila torcendo por novas notícias.

Só que o danado do meu irmão foi direto para a ilha. Ele entrou por outro ponto que havia descoberto e que não revelara a ninguém. Teve acesso a ilha pela parte mais escarpada chegando ao conjunto de habitações que tão bem conhecia.

Buscou não ser visto e ficou a observar as duas construções. A do hospital e a do farol. Ambos tinham movimento intenso de pessoas. O farol possui vários quartos onde a equipe médica repousava após o trabalho. No hospital ficavam os funcionários de plantão na ala mais externa e na parte interna os enfermos em tratamento.

Mais afastada da ala dos internos ficava uma construção presa na estrutura de uma grande rocha, onde a Catharina ficava. Por ser alta ela via quem se aproximasse sem maiores problemas. A entrada era independente das demais o que fazia com que saísse ou entrasse sem precisar passar por todo o hospital.

Conhecedora da engenharia de cavernas já que trabalhou muito nas minas com o pai, montou um ponto de excelência, aproveitando toda a parte rochosa do paredão que existia. De lá tinha visão privilegiada de toda a parte habitada da ilha.

Mendonça aguardou na escuridão da noite melhor momento para se aproximar.

Escalou com maestria a parte inclinada da rocha buscando se aproximar da entrada sem ser visto. No momento que buscava melhor posição para alcançar uma espécie de parapeito, um ruído fez com que ele se retraísse. Havia passos se aproximando. Teria que ficar ali encolhido ate o momento de se esconder atrás do rochedo.

- Dona Catharina, sou eu Pepe. A senhora mandou me chamar? Dona Catharina, oh, dona Catharina.

- Quieto rapaz! Quer acordar todo mundo? Mandei sim. Preciso que amanha pela manhã mande sua mãe vir aqui limpar a cela. O bebê não está bem e esta sujando tudo. Entendeu? Agora vá. O garoto voltou como uma flecha para dar o recado.

Aquelas palavras foram como flechadas em Mendonça. Havia um bebê ali. Será que era o filho da Ana com o Carlos? Ele tinha que ver. E Ana? Estaria ali também?

Mendonça calmamente retornou a base descendo pela escarpa em busca do abrigo do seu barco. Pela manha iria deslocar-se e entrar pelo ponto do farol. Seria visto por todos mas teria condições de ir visitar aquela estrutura sem levantar suspeitas. Afinal ele havia dito que iria para a ilha.

No dia imediato, um barco foi avistado pelo faroleiro. Todos estavam atentos a chegada da embarcação por se tratar de algo fora da programação da ilha. O Alvoroço era grande. Isso despertou a atenção da Catharina que a tudo observava do ponto onde se encontrava.

Quando o visitante pode ser identificado boa parte dos que ali se encontravam retornaram as atividades normais. Só uma pessoa permaneceu no posto de observação aguardando o ilustre visitante.

Como sempre fazia, Mendonça cumprimentou ou pessoal do farol e os demais que se encontravam nas imediações. Em seguida perguntou por Catharina e prontamente foi acompanhado pelo Pepe. O garoto era filho de família remanescente da época das minas. Foram para a ilha para cuidar do marido enfermo e após o óbito dele, resolveram ficar e ajudar os demais.

Foi recepcionado na parte baixa da ala nova.

- Pensei que não vinha mais. Disse Catharina de forma jovial.

- Tive que cuidar do barco. Mas, enfim aqui estou. E aí? como andam as coisas?

- Alguma pendência que posso atuar?

- Se fosse você, descansava e depois voltava para casa. Aqui é um tédio. Uma pessoa com seu espírito aventureiro não iria gostar de ficar preso por aqui.

- Por isso mesmo Catharina. Vim para poder dividir esse isolamento com você. Não é justo que você fique por aqui o tempo inteiro. Estive conversando com o Carlos e a melhor opção é a de reversarmos nessa tarefa. Já esta na hora de retomar as minhas funções. E olhando para cima. Vejo que você construiu uma bela de uma casa ai em cima. Não vai me convidar para entrar? Disse sorrindo.

Catharina a contragosto assentiu afirmativamente.

- Olhe vou lhe levar lá em cima, mas não vá bisbilhotando tudo por lá. É um espaço feminino e tem algumas coisas minhas espalhadas por lá que não quero que veja.

Carlos subiu atrás dela. Simulando cansaço fez de forma lenta tomando cuidado para observar cada detalhe do trajeto.

Chegou no espaço onde noite anterior estivera e olhou

Ao redor. – Como é lindo a vista daqui! Um verdadeiro espetáculo! Dá pra ver tudo...

- Sou muito prática meu caro. Gosto de ter as coisas sob controle.

- Muito bonito! É amplo aqui dentro ne? Você escavou a pedra. De fora não da pra ter ideia do tamanho que é isso aqui dentro. É bastante arejado. Se brincar é mais arejado do que lá embaixo.

- Dorme onde? que corredor é esse? Dá pra onde?

- Aí é uma área proibida para você. Disse Catharina sorrindo. É onde guardo meus segredos...

Você tem algum acesso ao hospital? Tem?

- Sim. Ali depois da sala tem um segundo cômodo que dá pra uma escada e um pátio lá no hospital. Mas fique tranquilo. Tem pelo menos dois portões até chegar aqui. Estou segura aqui.

Bem Catharina, vou dar um pulinho no hospital para ver as coisas por lá. Me acompanha?

- Claro que não. Vou arrumar a minha bagunça antes que você queira invadir minha privacidade. Vá com o Pepe. Ele sabe tudo por lá e é de confiança.

Na sequência, chamou o garoto que se encontrava nas imediações para acompanhar o Mendonça.

O resto dia foi utilizado nas observações da fortaleza pelo lado de fora. Percebeu que seria interessante o acesso pelo lado do hospital, justamente onde havia as duas grades ditas pela moça.

Ao final da tarde, já cansado, recusou o convite para dormir no farol e foi para o barco.

- Catharina que acompanhava os movimentos do rapaz, não fez força para que ele ficasse por lá.

Mendonça desceu a trilha ate o barco e de lá ficou na rede aguardando escurecer por completo. Já tinha uma ideia de como entrar na fortaleza da moça.

Vez por outra via um brilho tênue na sacada e um vulto a observar o barco. Por certo era verificando se ele estava mesmo ali.

Aguardou ate que a noite se fez por completo. Lentamente se deslocou por entre as pedras buscando o caminho anteriormente escalado. Chegou ao sopé sôfrego pelo esforço físico. Conhecia bem o hospital e na excursão feita, verificou os pontos que precisava chegar. Assim, com a máxima calma, foi se aproximando da área que separava o hospital da casa construída. Transpôs sem dificuldades os portões, chegando no ponto próximo ao acesso pela cozinha. Sem muito esforço conseguiu abrir a porta que havia por ali. Ao entrar, percebeu ruídos vindo do corredor. Lentamente foi entrando, quase que agachado, mantendo-se colado à parede. Havia uma curva acentuada nos primeiros metros. Não havia notado o recorte. Em um dado momento uma pequena luz se fez logo à frente. Parou. Seu coração se acelerou. Sua testa teimava em cair suor. A luz vinha de algum quarto que existia à frente. Ficou um bom tempo parado aguardando. De onde estava, via também a sobra de um outro ponto que se projetava. Parecia Olhou fixamente para a posição e aguardou que a luz fosse apagada. Minutos mais tarde, com a luz apagada, se deslocou buscando o ponto guardado na memória. Ia muito lentamente para não gerar ruídos. Qualquer barulho ali seria um desastre. Conseguiu chegar no ponto e descobriu um escada pequena que levava a um outro ambiente no nível mais abaixo.Não sabia onde daria mas tinha que ir ate o fim. Desceu a escada meio encurvado por conta da altura. Ao chega no nível mais baixo viu pequena penumbra a se destacar em um canto. Não dava para ver muita coisa, mas percebeu que havia uma área bastante ampla.Ventava o que significava haver uma conexão com a área de fora. Localizou pequena fissura na parede que dava a vista para o mar. Ficava do lado do paredão e era provavelmente imperceptível do lado de fora. Continuou a explorar forçando as vistas o quanto podia. Se aproximou da vela e foi ai que viu algo que fez seu coração saltar aos pulos. No canto quase que invisível havia uma grade separando um outro ambiente e dentro, uma mulher a olhar. De tão imóvel que estava parecia não ser real. Lentamente foi se aproximando ate chegar as grades. Seu rosto ficou lívido ao reconhecer a pessoa. Ana.... Era Ana... Pela primeira vez não sabia o que fazer. O silencio foi quebrado pelo choro de uma criança.

Ana voltou-se para o local de onde o ruído saia. Continuei imóvel ainda pelo choque da revelação. Ana voltou com algo nos braços. Era uma criança.

- Leve-a para casa, leve-a para casa. Dizia Ana insistentemente. Mendonça parecia estar acordando de um sonho.

- Ana vou voltar com o pessoal para tirar você daí. Aguarde menina. O tempo de sofrimento acabou.

- Não, leve a garota. agora. Leve pra longe daqui. Me prometa! Me prometa!

- Como? As grades são justas e fortes.

- Tem uma pequena janela aqui dentro que da para o lado do paredão. A abertura é pequena, mas a criança passa. Va Mendonça. Você já fez isso antes. Vou colocar algo para que você veja a posição. Quando chegar, coloco a garota e você leva . Não se preocupe comigo. Espero sua volta com o Carlos.

Ainda relutante, o Mendonça se afastou e buscou retornar pelo caminho feito anteriormente. Não demorou muito a sair da casa. Tinha que ir no barco e pegar material para escalada. Teria que ser rápido pois estava quase que no início da madrugada e teria um paredão para escalar no escuro.

A subida não foi difícil. Conhecia bem aquela área. Em épocas anteriores fizera inúmeras subidas por ali. O difícil era encontra o sinal que a Ana deixaria para que servisse de orientação. Mas isso também não foi difícil. Ela queimou alguma coisa e jogou na fresta que existia. Mendonça pode ver em dado momento a pequena luz que se formou. Chegou na posição e inseriu corda para que pudesse amarrar a criança. A preocupação era o choro que ocorreria. Como conter isso. Ela envolveu a garota em alguma coisa que fez com que deslizasse mais facilmente por entre a fenda do rochedo. Seu choro era baixinho e abafado.

Ana havia colocado uma espécie de mordaça na boca da criança. Rapidamente retirei a da fenda e amarei de encontro ao corpo. Desceu com o máximo de cuidado. Alcançou o barco já com os primeiros sinais do amanhecer. Estava exausto, mas não podia esperar por ali. A mare não estava favorável para sair. Teria que ariscar assim que amanhecesse de vez. Sabia que seria descoberto e que invariavelmente iriam atrás dele.

Mendonça buscou colocar o barco mais para dentro da enseada, aguardando só o momento de tentar a travessia por entre os canais de rochas submersas.

Não tinha como ser diferente. Era ariscar... Havia alguém lá em cima que dependia dele e não iria decepcionar. A mare só permitiria a passagem segura lá por volta do início da tarde. Ele tinha que ganhar tempo.

Assim que clareou, colocou o barco em direção ao canal. Com cautela foi entrando lentamente nos canais. De olhos atentos tentava traçar uma rota imaginaria entre as rochas. Alguns momentos percebiam o roçar do casco nas rochas pontiagudas. Os estalos eram fracos, podiam arrebentar ou abrir um buraco, mas serviam também para dar orientação de qual rumo tomar. Assim foi toda a travessia. Entre um choque aqui e outro ali, o barco foi vencendo a sua trilha. Havia pouca água no piso o que demonstrava que os estragos não tinham sido muito severos.

Ao sair do cinturão de pedras, Mendonça apontou para um ponto mais próximo da costa. Sabia que logo, logo teria companhia pois mesmo sem ter tido grandes avarias durante a travessia, o barco não tinha força para vencer os demais que viriam atrás. Seria alcançado inevitavelmente se traçasse rota para o vilarejo.

A criança já havia parado de chorar e estava dormindo. Verificou se estava seca ou com algum machucado e depois voltou a dar atenção na rota que fazia. Teria que se deslocar por umas duas horas até a costa. Sabia de um lugar que costumeiramente usada como apoio. Iria para lá.

Chegando no local desejado, retirou o barco que usava da água. Dirigiu-se para casa próxima onde havia um casal de pescadores que tomava conta do lugar e que eram grandes amigos da família. Ele explicou o que ocorrera e escreveu carta para um conhecido na capital e pediu que o casal fosse com a criança e entregasse juntamente com a carta. Nela ele contava tudo o que ocorrera e qual era a intenção dele. Dali, ele veio por terra para a nossa casa.

Nesse interim a Catharina já tinha chegado ao porto com os outros barcos e procurava localizar o Mendonça. Vi o movimento incomum e sabia que algo estranho havia ocorrido. Fique atento e alerta ao que ocorria. Reuni o pessoal de confiança e coloquei-os nos pontos de entroncamento nas estradas e nos cais que tínhamos. Pressentia algo...

A Catharina entrou por duas vezes na casa. Estava visivelmente nervosa. A todo momento perguntava sobre o paradeiro de Mendonça que, obvio, ninguém sabia a não ser que tinha ido reparar o barco.

Foi no final da tarde que Mendonça chegou e junto com ele uma guarnição da polícia. E ai as coisas ficaram tensas.

No escritório Mendonça me pegou pelo braço e trancou a porta. Lá descreveu tudo que havia ocorrido ate aquele momento. Estava estarrecido com o que me era dito. Difícil de acreditar... Passei um período ainda anestesiado pelas revelações ate ser despertado por gritos do lado de fora.

Corremos para ver o que estava acontecendo e nos deparamos com uma praça de guerra. De um lado as forças policiais e alguns funcionários da propriedade e do outro lago um grupo de pessoas lideradas pela Catharina saindo da propriedade em direção ao cais da vinícola. Após a confusão, o que ficou apurado era que ela percebeu o que estava ocorrendo e juntou o pessoal fiel a ela e debandou para os barcos atracado no cais da vinícola. Sabíamos que ela voltaria para a ilha. Teríamos que intervir, mas estávamos sendo mantidos sitiados pelo pessoal fiel a ela. De qualquer forma as condições da mare só permitiria aproximação nas primeiras horas da madrugada o que nos dava tempo para tentar alcançar ainda no mar. Isso se saíssemos em perseguição.

Aos poucos o grupo de policiais foram avançando e neutralizando as forças de Catharina. Prendemos quase todos. Uns poucos conseguiram fugir. Eram todos ex mineiros pagos para retardar a nossa saída. Não obtivemos maiores informações deles.

O que não esperávamos era que havia grupo no cais da vila que estavam encarregados de colocar fogo nas embarcações atracados por lá. Isso foi feito. Quase perdemos todos. Conseguimos salvar uns quatro de um grupo de pelo menos vinte que havia no local. Usamos esses quatro barcos para ir ao encontro da Catharina. Sabíamos que a vantagem dela era enorme. Tanto em quantidade de embarcações quanto no tempo de frente que tinha ganho com as manobras. Chegamos quase que ao amanhecer. Eles já haviam passado pelo cinturão de pedras e estavam entrincheirados nas rochas. Se nos aproximássemos correríamos o risco de ser atingidos por disparos. Passamos pelos rochedos e ficamos a distância segura da praia esperando melhor oportunidade.

Perto do meio dia, Mendonça me convenceu a ficar à frente daquela tropa enquanto ele dava a volta por trás e tentava surpreender. Foi ai que ele me revelou existir uma segunda entrada e que ficava por trás em posição que o pessoal não dava para vê-lo chegar. Levaria uns poucos soldados para o outro lado e procuraria distrair a atenção do pessoal. Eles aguardariam o momento e avançaria sobre a praia formando dois blocos encurralando os revoltosos.

Colocamos o plano em ação e já no final da tarde, ouvimos os primeiros estampidos vindo do outro lado da ilha. Nesse momento de distração, avançamos para a praia e buscamos abrigo nas pedras. Começamos a avançar lentamente. Tínhamos maior efetivo, mas estávamos em desvantagem por conta do terreno. O pessoal lá em cima atirava e jogava pedras por sobre nós. Alguns companheiros foram atingidos e tiveram que recuar, mas aos poucos fomos impondo a nossa superioridade numérica. Também já estava anoitecendo e eles não conseguiam nos vê com tanta facilidade. Um grupo conseguiu subir e tomar um dos pontos. Eles recuaram para dentro do hospital. Ficaram entrincheirados atrás dos murros. A construção feita na pedra, onde a Catharina ficava estava inacessível. O nosso avanço só foi possível graças as forças que estavam com o Mendonça. Encurralamos eles em uma das alas do hospital. Lentamente as forças policiais que nos atendiam foram dominando os revoltosos.

Sai para o pátio interno do hospital tentando acompanhar o Mendonça. O nosso destino era o andar de pedra onde a Catharina se encontrava. O pequeno pátio não tinha ponto para nos abrigar. Improvisamos barricadas feitas com as mesas e começamos a nos aproximar da subida para o andar de pedras. Sabíamos que seria apenas questão de tempo.

De repente uma explosão muito forte veio de cima. A Catharina tentou explodir o corredor e as pedras dos pilares vieram abaixo. Foi uma correria. Fui atingido na testa por um fragmento, tenho a marca ate hoje. Mendonça foi projetado para um lado do corredor. Estava ferido na barriga. Não dava para ver a gravidade. Ficamos momentaneamente separados. Ele subiu sozinho pelas escadas que ainda restavam rumo ao andar de cima. Estava zonzo e não podia ajudá-lo. Alguns minutos se passaram e uma segunda explosão de ensurdecer fez tudo parar. Havia agora, fumaça vindo do andar de cima. Na minha frente, muitas pedras e, estirada no chão, a Catharina. Fui para perto dela. Ela estava desacordada. Olhei para cima e não havia mais a entrada. Estava tudo selado por uma grande rocha. Não havia mais como entrar. Nas fissuras que ainda existiam brotavam fumaça. Faltou naquela hora coragem para ir mais perto. Alguns policiais que estavam comigo foram na tentativa de ver se havia como entrar. Mas não havia mais nada a fazer. Fiquei olhando como que esperando por um milagre. Não podia ser. Perder meu irmão de forma tão sem sentido e a única mulher que amei na vida. Voltei após alguns minutos para a Catharina. Ela se encontrava no chão sem sentidos. Estava muito machucada. Olhei com revolta como nunca tinha sentido por alguém. Definitivamente ela deveria estar louca. Não tinha outra explicação. Estava literalmente sem forças. Me aproximei apenas para ver se respirava. Havia um ferimento na minha cabeça, mas não estava ligando. Fui me arrastando até perto dela.

Nesse momento que fui tocar nela seus olhos se abriram e ao me ver disse algo que até hoje me recordo. Cada palavra que saiu da sua boca antes de selar os olhos para sempre.

Ela disse: “Meu amor, eles levaram nossa filha. Tentei protegê-la, mas não consegui. Estão lá em cima com a nossa menina. Você precisa pegá-la. Dom Diego. Você precisa pegá-la...” foram suas últimas palavras. Aquilo caiu como um balde de agua fria sobre mim. Ela havia enlouquecido. Mais tarde a mãe do garoto Pepe confirmou a história. Ela havia Raptado a Ana sua irmã e manteve-a no cárcere até o nascimento da criança. Depois passou a cuidar como se fosse sua filha mantendo a irmã prisioneira como uma espécie de ajudante. A velha senhora contava o que sabia entre lágrimas. Ela que ajudou a criança nascer e cuidou de Ana todo aquele tempo. Nunca pode revelar o que ocorria por medo de acontecer algo com o Pepe.

Aquela tarde noite foi um dia que deveria não existir no calendário. Havia perdido meu irmão, minha esposa, minha cunhada e não sabia por onde andaria a minha filha.

Daquele episodio para cá a ilha ficou fechada. Para os curiosos, foi informado que um grande incêndio havia destruído o hospital. Apenas pouquíssimas pessoas conheceram verdadeiramente o que ocorreu por lá. Todo o pessoal foi removido ficando apenas o faroleiro para cuidar do farol.

Passei anos e anos de minha vida a procura da minha filha. E agora você chega com a notícia de seu falecimento. Minha procura agora terminou e a sua promessa também. Considere cumprida a sua missão meu jovem. Volte para sua terra. Deixe enterrado essa história. Esse velho agora vai esperar o seu momento de descanso eterno. Não há mais o que procurar.

O silencio se fez ouvir no ambiente. Não havia nada mais a dizer. Em dado momento ele olhou para mim e disse solenemente.

- Filho esta na hora de ir para casa. Amanha vou mandar um marinheiro que vai lhe levar para sua cidade. Não vamos mais revolver esse lodo. Até alguns dias atrás eu tinha a esperança de encontrar minha filha. Hoje, não tenho mais. Você compreende? La fora o seu transporte esta lhe aguardando. Só peço não comentar o que conversamos aqui.

Balancei a cabeça afirmativamente. Também concordava com ele. Esta na hora de voltar para casa. Procuraria o orfanato e veria se ainda era possível trabalhar lá. Saia com uma frustração muito grande e o sentimento que baguncei as vidas das pessoas naquele lugar. O pouco tempo que estive ali, afeiçoei ao local e as pessoas com quem tive contato. Olhei mais uma vez para os quadros expostos da família como que me despedindo de todos.

Antes de sair, retirei de minha mochila uma foto com a tia Tereza, a tia Ana e alguns dos internos do orfanato. Era a única lembrança que tinha deles. Olhei para ela pela última vez e entreguei ao senhor Carlos. Era pelo menos uma recordação da filha que não teve a oportunidade de conhecer.

Ele pegou e ficou olhando em silencio enquanto eu saia pela porta lateral.

O transporte já me aguardava para levar até a pousada. Não tinha mais nada a fazer por ali.

Na pousada encontrei os meus amigos pescadores além do dono. Ao me verem ficaram em silencio como que a esperar por algo. Sentei ao lado em completo estado de desanimo. Estava cansado...

- Ele me disse para esquecer a história. Que estava na hora de voltar pra casa.

- Pediu para não ficar mais remexendo o passado. Amanhã virá uma pessoa da confiança dele para me levar de barco para casa. É, meus amigos, foi muito bom ter conhecido vocês. Gratidão por ter me permitido tantas aventuras... Se me permitirem vou para o quarto. Estou cansado. Dizendo isso subi sem esperar nenhuma resposta dos presentes que estavam calados e calados ficaram.

Acordei de madrugada, cansado e frustrado com tudo que aconteceu. Me sentia culpado por ter tirado a esperança de uma pessoa como o senhor Carlos.

Levantei e abri a pequena janela que dava para uma parte da vila. Uma lufada de ar entrou quarto adentro como a que a acariciar o ambiente. Fechei os olhos e respirei fundo. Estava tudo em silencio. Só o ruído do mar distante e uma tabuleta que insistia em bater solta ao sabor do vento... Assim fiquei contemplativo ate que fui despertado por uma pessoa que me olhava parado na rua.

- Garoto!! Desça! vim lhe levar para a cidade. Mando do senhor Carlos. Estou esperando na frente da pousada.

Voz grossa e rude. Tipo de pessoa que estava acostumado a mandar. Não conseguia ver quem falava. Acompanhei sua ida para o lado da entrada da pousada. Depois entrei e comecei a arrumar a mochila. Não tinha muita coisa. Fui rápido na arrumação. Desci e no térreo, encontrei o dono que se despediu sem nada dizer. O homem da rua já estava do lado de dentro e havia pago as despesas. Ali fiquei sabendo que se chamava velho lobo. Não quis perguntar o porquê do nome. Já não havia sentido. Acompanhei seu andar pela rua em direção as docas. Havia um silencio grande e uma neblina muito densa. Só os nossos passos a ecoar por entre os barcos.

Chegamos no local onde a embarcação do velho lobo se encontrava. Ele subiu e fez menção para que fizesse o mesmo. Atendi prontamente sem comentar.

Fiquei na proa a olhar seus movimentos que pela idade eram ágeis. Rapidamente ele se desfez das amarras e começou a manobrar o barco.

Foi quando vi o Domingos e o Jonas chegarem.

- Rapaz, vai sem se despedir de nós? Disse Jonas. Dizendo isso pularam na embarcação sem cerimonias.

- Venha aqui e nos de um abraço. Fiquei alegre com a presença deles. Fui ao encontro dos dois e nos abraçamos por longos minutos.

- Vamos logo com isso. Não tenho o dia todo. Disse o velho Lobo.

- Ora Lobo, que falta de gentileza. Viemos despedir do amigo aqui. Só um minuto. Disse Domingos.

- Garoto quando se cansar de aventuras venha para cá. Estaremos por aqui lhe aguardando. Nos de notícias onde estiver. Manda para a pousada que os recados chegarão até nós. Dizendo isso ambos saíram da embarcação que se pôs a caminho.

Em pé no barco fiquei acompanhando os dois marujos ate se tornarem imagens pequeninas junto com o cais.

Voltei-me então para o Velho Lobo que ao leme me observava calado. Tinha mais ou menos as feições de quem andava no mar. Acostumado aos rigores do tempo parecia não senti o vento que açoitava os nossos rostos.

Por um longo tempo permanecemos calados. Ele no leme e eu absorto com a paisagem que se desenrolava diante de mim.

Já haviam se passado duas horas de viagem quando o marinheiro quebrou o silencio.

- Vamos ter que fazer uma parada em um local muito especial. O Senhor Carlos recomendou que levasse você lá.

- Que lugar? Onde? Porque ele quer que va lá?

- Não me pergunte garoto. Só cumpro ordens. Se estiver com fome, aí em baixo há uns sanduiches feitos pelo pessoal da casa.

Olhei para a caixa que havia e busquei algo para comer. Estava com fome e não tinha me tocado disso. Ofereci um ao Marujo, mas ele balançou negativamente com a cabeça.

Voltei a prestar atenção no mar e ficar sob os meus pensamentos. Não sabia onde seria levado e nem que lugar especial era. Restava aguardar.

Ao cabo de uma hora e meia avistava ao longe pedaço de terra. Não se tratava de grande extensão de terra. À medida que se aproximava ficava mais nítida a imagem. Era uma ilha. Aos poucos a água foi ficando de coloração diferente. Sombras apareciam sob as aguas. Fixei bem os olhos para verificar do que se tratava.

- Cuidado garoto para não cair. São pedras. Essa ilha é cercada por pedras e elas ainda estão sob as aguas. Preciso ficar atento para entrar no canal sem colidir com elas. Se não nossa viagem termina aqui.

Olhei para o Marujo e para a ilha. Aquela era a ilha dos loucos. Por que então o velho Carlos o trouxe ali? O que esperava provar?

Experimentava uma emoção muito grande. A vista era de tirar o folego. Ao longe viam se um pequeno farol e uns restos de construções ao longo da parte alta. Do lado sul havia um paredão rochoso impressionante. Não havia como chegar a não ser por aquele caminho que eles estavam fazendo. As pedras agora se mostravam fora d’agua. Via então um canal muito estreito. Só alguns se aventurariam a passar por ali sem correr riscos de naufrágios.

Alguns minutos se passaram e finalmente chegamos a uma pequena praia. De perto a vista era mais impressionante. Um pequeno caminho se fazia morro acima até chegar próximo ao farol. Havia também uma espécie de tirolesa que ligava a praia até uma construção próxima ao farol.

Olhei para o Lobo do Mar e ele estava fazendo manobra para atracar em um pequeno cais improvisado.

- Chegamos Garoto. Vou descer uns mantimentos para o farol na praia. Você vai lá em cima e manipula o elevador de cargas. Aquela engenhoca feita por Mendonça é que leva mantimentos lá para cima. Do contrário você teria que levar nos braços.

Vamos não temos o dia todo. Temos que aproveitar a mare baixa.

Sai correndo em direção a trilha. Queria ir lá em cima e ver como era. Comecei a subir, mas percebi que era muito íngreme. Cheguei ao topo quase sem ar nos pulmões.

A vista de lá de cima era impressionante. O ar puro, o sol banhando as águas, as espumas formadas pelo balanço das ondas nas pedras. O pequeno barco ancorado. Uma maravilha.

Na parte central havia um muro grande semidestruído e por cima dava para ver o telhado do hospital. Do lado norte o farol imponente e sua casa de apoio.

Do outro lado o paredão que se formava quase que vertical terminando em cima de um emaranhado de pedras que se estendiam mar adentro. Olhei para o ponto em que o Marujo havia dito. La estava a engenhoca que servia de acionamento do elevador de carga. Percebi que ele sinalizava para que eu pudesse movimentar o equipamento. Assim fiz. Lentamente o elevador começou a se mexer elevando a carga do chão da praia em direção ao farol. O procedimento levou alguns bons minutos. Quando chegou no ponto retirei as caixas de mantimentos e de agua potável. Retirei tudo da gaiola. Esperaria o Marujo chegar para dizer onde colocar aquelas coisas. Mas o que vi me deixou em pânico.

O barco já ia longe. No trabalho de retirada das coisas não percebi a saída do barco. O Velho lobo ia já no meio do canal com o barco. Ele havia me deixado na ilha sozinho.

Sentei-me em estado de desespero sem saber o que pensar ou fazer. Será que ele voltaria? Ninguém sabia onde estava. Só se no farol tivesse algum rádio para comunicação. Lentamente andei na direção do farol.

A construção estava bem arrumada. Era solida e tinha limpeza. Um amplo salão com uma cozinha anexa.

Uma escada levava para a parte de cima do farol e na lateral uns quartos. Três amplos quartos com camas e lençóis.

Perto da cozinha uma dispensa com alguns mantimentos. Do lado de fora uma pequena área para manutenção. Uma oficina.

Não havia radio algum. Estava incomunicável. Fiquei no mirante a acompanhar a embarcação que já ia longe.

A verdade era que havia sido abandonado na ilha. Não sei por que motivo.

Retornei para onde os mantimentos estavam e comecei a levar para dentro do farol. A tarefa foi extenuante. Ao final busquei uma das camas para dormir. Estava muito cansado. Quando acordasse faria algo para comer. Vencido pelo cansaço mergulhei em um sono profundo e muito agitado. Despertei lá pelas tantas da noite. Um cheiro doce de café no ar e algo que não conseguia identificar mais sabia que era bom. Pelo menos cheirava bem. Levantei-me lentamente com esperança renovada. Provavelmente o marujo havia voltado.

- Velho Lobo? É você? Dizendo isso sai em direção a cozinha.

Ao me aproximar vi a sombra de uma pessoa na cozinha. O Candieiro a óleo queimava clareando o ambiente.

Graças a Deus! Pensei que você havia me abandonado. Me aproximei com o ânimo renovado.

Ao chegar próximo percebi se tratar de uma outra pessoa. Uma anciã que ao me vê veio sorrindo ao meu encontro.

- Boa noite filho. Você deve ser novo faroleiro. Seja bem-vindo. Sou a velha da ilha. Muito prazer. Dizendo isso estendeu a mão sem cerimônia.

Aturdido com a situação inesperada cumprimentei a velha senhora.

- Como é seu nome jovem?

- Lucas senhora.

- Pois bem Lucas, ficaremos aqui pelos próximos três meses. Ate o inverno passar. Espero que você não fique chateado de compartilhar esse paraíso com uma velha. Normalmente os faroleiros que aqui vem são mais idosos.

Essa é a primeira vez que vem um jovem para a função. Vamos ter uma semana para preparar o local para o inverno. Temos muita coisa por fazer. Vamos aproveitar e explorar a ilha. Você vai gostar muito do local. Tem muita coisa para se vê.

A tem uma correspondência para você aí na mesa. Estava no meio dos mantimentos. Va ler enquanto preparo nossa alimentação.

Sentei-me na mesa e fui abrir o envelope. Estava curioso.

“ Garoto Lucas você fez me lembrar de momentos difíceis na minha vida. Abriram-se feridas que a muito estavam fechadas. Mas também recordei momentos de muita alegria. Ontem quando você me entregou aquela fotografia não dei muita importância a ela. Só mais tarde no recesso de meu quarto foi que olhei com mais cuidado. Encontrei algo muito curioso no verso da foto. As iniciais de A.C.M. Isso fez com que uma sineta tocasse no meu inconsciente. Lembrei-me de algo que o Mendonça me disse antes de nos separarmos na ilha. Aquilo ficou na minha mente e tive que buscar respostas. Primeiro na sala onde tenho os quadros das duas familias. A nossa e a de Ana minha adorada esposa. Lá estava uma parte da chave desse mistério. Não vou lhe adiantar nada por enquanto. Fica aí na ilha por esses três meses que é o tempo que acredito ser necessário para elucidar esse mistério. Nos veremos na próxima temporada. Aproveite esses meses e conheça a ilha. Cumpra então a promessa feita para sua mãe adotiva.”

Uma carta de Dom Carlos. Algo que ele descobriu naquela foto. O que seria assim tão importante? Mais um mistério a ser desvendado.

Fiquei um bom tempo pensando e buscando na memoria a imagem da foto que tantas vezes olhei nos momentos difíceis que passei. Não conseguia imaginar o que poderia ter sido. Algo me escapou da percepção. Restava esperar.

Nesse momento a velha da ilha trazia os utensílios para a janta. Sentamo-nos melhor à mesa e começamos a nos servir.

- Lucas você não fique acanhado menino. Se sirva. Foram boas notícias?

- Não sei dizer ao certo, mas tudo indica que teremos mais um mistério a ser desvendado. Essa ilha é uma caixinha de surpresas.

- Já vi que teremos muitas histórias a contar um para o outro. Isso é bom. Vai ocupar o nosso tempo durante o período das chuvas. Olha, os pratos são seus para limpar. Fiz a janta mais a limpeza é sua.

Após o jantar a velha acompanhou sentada a limpeza dos utensílios e sem pressa perguntou.

- Essa carta que recebeu de quem é? Alguém importante?

- É do Senhor Carlos o dono da ilha.

- Sabe o que é engraçado, acho que nunca o vi. Mas o nome é muito familiar e por isso nos torna próximo. Sou moradora desse pedaço de paraíso a muitos anos. Poucos foram as pessoas que mantive contato. Basicamente so os faroleiros que ficam por aqui no período de inverno. No verão um ou outro pesquisador que vem, depois vão embora. Acompanho eles pelas trilhas que fazem no entorno da ilha e só. O resto do tempo vivo só por aqui.

- E você? de onde veio? Como chegou aqui?

- Fui criado em orfanato. Nunca conheci minha mãe verdadeira. Vivi sob a tutela de pessoas caridosas. Vim para essa região para cumprir uma promessa a uma pessoa muito especial para mim. Minha mãe adotiva.

- Não é muito diferente de mim. Não me lembro da minha infância. Alias não me lembro de muita coisa. Apenas flashes que em noites escuras me aparecem em sonhos. Tudo que sei é que parece que nasci aqui em uma época em que havia um hospital. Depois do acidente que tive, onde bati a cabeça em uma pedra, não me lembro mais nada. De lá para cá vivi por aqui quase que sozinha.

- Vamos descansar porque amanhã iremos conhecer a ilha melhor. Vou lhe levar na parte que quase ninguém conheceu chamo de minha praia. Você vai gostar do passeio. É capaz de passarmos a noite por lá. Dizendo isso se levantou, pegou um dos candieiros a óleo e foi para um dos quartos. A mim restava fazer o mesmo. Peguei o outro candieiro e fui para o quarto em que dormira horas antes. Voltei a olhar a carta que o senhor Carlos havia enviado. Que descobertas aquele homem havia feito? Teria que esperar ate o retorno para conhecer a verdade. La fiquei até o sono chegar.

No dia seguinte acordei muito cedo. Novamente com o cheiro de café forte sendo feito. Levantei-me e fui para a cozinha.

Lá estava a senhora sentada calmamente tomando café. Meio sem jeito, dei bom dia. Ela assentiu com a cabeça e me fez sentar.

- Hoje iremos olhar a ilha. Você tem que conhecer bem o local se quiser fazer bem o seu serviço. Informo que não é uma coisa fácil.

Com um sorriso meio sem graça, obedeci a velha senhora.

Após o café, ela me fez preparar uma pequena mochila com algumas coisas que ela queria levar. Pelo que percebi ficaríamos muito tempo fora.

- Lucas vamos margear o muro do hospital. Tem uma pequena trilha que seguiremos ate o outro lado. Cuidado para não escorregar. Se apoie nos pedaços de corda ao longo do caminho.

O caminho que ela me levou era muito estreito e sinuoso. A primeira parte foi tranquilo porque o terreno era plano. A segunda parte já exigiu mais esforço por conta do terreno acidentado e cheio de pedras. Fomos andando sem trocar palavras. Vez por outra parávamos para recuperar o folego.

A trilha que descia a encosta e era muito estreita. Muitas plantas auxiliavam com seus galhos e cipós. Usávamos como apoio. Acredito ter levado mais de uma hora pelo caminho ate chegarmos em uma pequena base onde paramos para descansar. Ali, pude apreciar o outro lado da ilha. Um espetáculo de luz e cores.

Havia um pequeno banco de madeira feito de alguma arvore que existiu ali. Sentei e fiquei admirando a paisagem em silencio.

- Lindo, não é? Falou a velha. Acho que não tem imagem mais linda do que essa.

Concordei com movimentando a cabeça de forma afirmativa. Aceitei um gole de água.

- O que iremos fazer? Perguntei curioso.

- La embaixo tem uma pequena praia quase que inacessível. Ela forma uma piscina natural. Vamos pegar uns frutos do mar e trazer para o farol. Tem umas armadilhas colocadas por lá para fisgá-los. Esse movimento de mare cheia e vazia cria aprisiona alguns peixes. Vamos buscá-los antes que a mare suba.

Tem uma pequena gruta que serve como abrigo em épocas de chuvas torrenciais. Tem uma pequena queda de água que sai das rochas e escorre para o mar. Água boa. Não se preocupe! Aqui ninguém morre de fome ou sede. O pessoal do farol não sabe da existência desse lugar. Vamos continuar?

Levamos mais duas horas para chegar ao nível do mar. Confesso que fiquei impressionado com a senhora. Sua vitalidade e forma física.

- Aqui nós vamos em direção ao paredão. La tem um pequeno recorte na pedra que dá para o outro lado. Durante a mare alta isso aqui fica encoberto. Só na maré baixa é que dá para ver.

Acompanhei seus passos prestando atenção às suas palavras. Chegamos no paredão e realmente havia essa rachadura. Tivemos que nos abaixar para passar por ela. Naquele ponto a agua do mar já chegava na canela.

Do outro lado havia uma pequena faixa de areia, uma grande piscina natural, cercada de pedras e uma pequena abertura de uma caverna. Ela se deslocou direto para lá.

A caverna era grande. Havia espaço bastante para várias pessoas. Ali havia alguns utensílios. Provavelmente deixados ali por ela ou quem conhecia o local.

- Lucas vá ali naquela pedra e veja se tem peixes na piscina. Vou buscar os arpões e sextas.

Atendi prontamente ao pedido. Realmente havia peixes no local. Voltei para ela e sinalizei positivamente. Ela sorriu e trouxe um arpão amarrado em uma pequena corda.

- Lance filho. Pegue os peixes e coloque nestas sextas.

Realmente tentei fazer o que ela havia pedido. Parecia fácil. Mas, na prática percebi que não seria tão fácil assim. Errei todos os lançamentos que fiz na tentativa de pegar algum peixe. Estava cansado. A velha olhava e sorria compreensiva da minha falta de habilidade.

- Não se preocupe! Vou lhe ensinar como fazer.

Levantou-se e tomou o arpão da minha mão. Com uma habilidade incrível lançou e pegou um peixe na primeira tentativa. Retirou da piscina e colocou ainda se batendo no sexto.

- Agora é sua vez. Fique contra o sol. Respire lentamente e jogue acima do ponto de vista.

Fiz o que ela me ensinou e com muita dificuldade consegui pegar uns dois exemplares. Fiquei feliz. Parecia criança.

Ela via e sorria. Fiquei meio sem jeito, mas também sorri.

- Vamos tratá-los aqui e voltar antes que a mare bloquei a nossa passagem.

- Assenti com a cabeça sem falar. Levei para perto dela os dois exemplares que havia pego e iniciei sob orientação a tratá-los. Coloquei uma espécie de especiarias que ela retirou de um pote pequeno, enrolamos os exemplares já tratados e temperados em uma espécie de sacola de pano e colocamos no sexto.

Retornamos pela mesma trilha anterior. Demoramos mais um pouco a chegar ao farol pela questão de estarmos subindo. Paramos para descansar no mesmo ponto anterior. Lá comemos algo enquanto observávamos a paisagem.

A velha da ilha não falava muito. Guardava energia para a caminhada. Eu, ao contrário estava acabado. Levava os peixes tratados que era peso extra. Seguramente havia ali uns 8 quilos de peixe. Retornamos a subir no mesmo passo. Chegamos ao topo. Estava extenuado. Não fazia atividade física a muito tempo e ainda por cima com peso extra. Estava querendo sim, cair embaixo de alguma arvore daquelas e tirar um cochilo merecido. Ela parecia estar adivinhando que se virou para mim com um sorriso e disse.

- Você coloca os peixes na mesa do lado do mirante e vá descansar na rede que tem entre as arvores. Vou preparar um caldo para nós e assar uns pedaços para o almoço.

Era tudo que queria. Fiz rigorosamente como havia pedido. Não demorou muito e comecei a sentir o cheiro agradável do peixe sendo assado. Minha barriga respondeu logo com um longo ruído. Levantei e fui verificar se a velha precisava de ajuda.

- Já esta quase pronto. Já que você quer ajudar, pegue algumas frutas e use o espremedor para retirar o suco delas. Vamos ter um banquete hoje em sua homenagem.

Suco feito, comida pronta, sentamo-nos na mesa do lado de fora do farol e começamos a fazer a refeição.

- Filho você conheceu hoje uma das tarefas que precisa fazer ate as chuvas chegarem. Essa semana você vai lá sozinho e realiza esse serviço que fizemos juntos. Não tenho mais idade para fazer essa empreitada todo dia. Precisamos do peixe para os dias em que não teremos como sair daqui do farol.

- A senhora vive aqui a quanto tempo? Não tem curiosidade de ir à cidade?

- Já vivi na cidade e garanto que aqui me sinto melhor.

- E como se chama? Qual o nome que devo tratá-la?

- Pergunta difícil no momento. Está vendo essa cicatriz aqui na testa do lado esquerdo? Tomei uma pancada forte na cabeça e de lá para cá não me recordo

Muito das coisas. Às vezes tenho sonhos mais nada que possa me dizer quem sou. Passei um bom tempo fazendo essa mesma pergunta. Até que me dei conta que não era relevante ter essa informação.

- O que você sabe da ilha?

- Sei o que me disseram. Havia aqui um grande hospital que atendia a muitas pessoas doentes. Um belo dia houve uma confusão e o hospital pegou fogo. Os que sobreviveram foram embora. Vivo aqui porque meus parentes viviam aqui. Não sei se morreram nesse incêndio ou se já estavam mortos e eu viviam com alguém. Não procuro pensar muito nisso. Quando tento, minha cabeça doi.

- E o que tem dentro dos muros do hospital?

- Nada. Só coisas deixadas para trás. Utensílios da época em que funcionava. Não gosto de ir lá. Não me sinto bem indo lá. Procuro evitar isso. Se você quiser ir, vá sozinho. Não conte com a minha ajuda.

- Você precisa aprender como é a manutenção do farol. Manter a luz acesa nesse inverno é fundamental para salvar a vida de muitos que se arriscarem por essas bandas. Amanhã quando você voltar, vou lhe mostrar. Vou descansar um pouco. Tire o resto do dia de folga. Va explorar a região.

Levantou-se e saiu para dentro do farol. Fiquei ainda por alguns momentos a contemplar a paisagem e a refletir sobre o que havia ouvido.

Comecei a exploração justamente indo em direção a grande pedra. Onde outrora era a casa da Catharina esculpida na pedra. Apesar do tempo e do desmoronamento de pedras provocados pelas explosões. Ainda deixava ver as marcas do que antes fora uma varanda. Uma espécie de mirante. Para acessá-la havia um resto de escadas também esculpida na pedra. Estava bloqueada e para subir teria que ser escalando as reentrâncias das pedras ou o paredão que ficava imediatamente após essa grande pedra.

Busquei subir por ali mesmo. Não queria fazê-lo pelo paredão.

Apesar da pouca altura, uns cinco metros talvez, a subida foi difícil. Mas a vista foi reconfortante. La de cima se via grande parte da enseada, o farol, as ruínas do hospital, ou seja, uma visão muito privilegiada dos pontos de acesso a ilha.

Sentei-me para recompor o folego perdido durante a subida. Olhava e relembrava da história contada pelo Dom Carlos.

Não tinha como você se aproximar sem ser visto. Ate a prainha, o pequeno cais se via sem maiores problemas.

Do outro lado o hospital. Também a aproximação ficava difícil de ser feita sem que fosse visto. Portanto lugar estratégico e de fácil defesa.

O único ponto vulnerável era o paredão. Justamente por onde o Mendonça naquela época fez as incursões.

Levantei e procurei um jeito de subir para a parte mais alta. A que servia de teto para aquela construção. Também bastante complicado a subida em função da projeção que a pedra fazia por sobre a construção. Mesmo assim consegui chegar no alto.

De lá pude apreciar melhor a paisagem. Havia no chão, próximo a beirada, duas pequenas cruzes bastante desgastadas pelo tempo. Uma pedra na base das cruzes e alguma coisa rabiscada, quase que apagada pelo tempo. Aproximei-me para tentar ler o que estava escrito. Fiquei gelado ao decifrar a escrita:

“Em memória de meu grande amigo Mendonça e à minha irmã sempre querida. Que Deus os proteja e ampare suas almas.”

Ali estava mais um mistério a ser desvendado...Quem colocou aquela inscrição?

Sentei-me ao lado meditando sobre o assunto que nem reparei que a velha da ilha estava ao longe acenando para mim insistentemente.

Decididamente algo ocorreu e ela queria a minha presença por lá. Desci o mais rápido que pude. A descida também não era fácil.

- O que houve? Disse ofegante ainda pelo esforço desprendido.

- Quero que você me prometa uma coisa, filho. Não vá mais ali em cima. Entendido?

- Mas por quê? Pode me dar um motivo razoável?

- Garoto! Ali ocorreram coisas muito ruins. Não vá mais lá. Prometa!

- Você pode em algum momento me contar o que sabe?

Ela olhou longamente para o que disse, como que medisse o que iria falar.

- Talvez um dia lhe conto o que sei. Mas a partir de hoje é uma área proibida. Se quiser minha ajuda aqui. Dizendo isso, deu meia volta e foi-se para dentro do farol.

Fiquei com cara de tolo, em pé, sem saber o que fazer. Alguns minutos depois resolvi entrar e verificar como era o procedimento para manter o farol acesso.

La em cima existia em uma sala, engrenagens e uma grande manivela. Olhei com atenção e li algumas instruções que haviam por ali. Basicamente era um grande relógio. Teria que periodicamente dar corda para manter o dispositivo girando. Manter lubrificada as engrenagens retirando poeira ou algo que pudesse impedir seu deslocamento e alimentar uma espécie de lamparina com óleo, mantendo assim a chama acessa. O grupo de lentes deveriam ser limpas também. Tudo estava muito bem explicado nos documentos.

A parte externa deveria periodicamente serem limpas retirando o excesso de salitre que se aglomeravam nas paredes pelo lado de fora.

Desci e fui verificar se a velha da ilha precisava de ajuda.

- Ela havia acabado de passar um café fresquinho e me aguardava na mesa sentada.

- Sentei-me sem dizer nada. Ensaiei desculpas pela situação anterior, mas ela com um sorriso entregou-me uma xicara de café. Passamos a conversar sobre trivialidades. Contei um pouco das minhas travessuras no orfanato. Alguns momentos engraçados que demos risadas juntos.

Mais tarde, ela virou para mim e pediu que fizesse um trabalho especial para ela.

Que fosse dentro da construção e começasse a arrumar as coisas por lá. Estava anunciando as primeiras chuvas e precisaríamos de um espaço maior para algumas atividades que seriam feitas no decorrer do período.

- As chuvas quando chegam, vem com muito vento. Não dá para ficarmos ao relento. É perigoso. La no hospital velho, tem muito espaço que precisa ser melhor aproveitado. Você é jovem pode dar conta. Existem ferramentas na pequena oficina aí fora.

Concordei com ela em silencio. De onde estávamos entrava uma brisa forte vinda do mar. Levantei-me e fui lavar os utensílios usados no café. Era a minha tarefa da noite. Ela ficava sentada a observar como que aprovando tudo. Depois de lavar as coisas, fomos para fora do farol, ficar no mirante a observar a noite que caia rápido. No céu, as primeiras estrelas apareciam anunciando mais uma noite. Era um momento mágico aquele. Sem palavras para descrever. Havia um silencio quase que santificante que trazia paz a alma do ser. Ficávamos ali muito tempo em estado de contemplação. Percebi, desde o primeiro dia que a anciã gostava daquele momento. Respeitava aquele silencio e só falava quando ela quebrava o silencio. Algumas vezes ela me dizia o nome das estrelas e notava seu rosto úmido por lagrimas que teimavam em sair. Era como se recordasse do passado longínquo de sua vida.

Depois pronunciava aquele velho boa noite que lhe era peculiar e se recolhia para o quarto de dormir.

Não foi diferente aquela noite. Acompanhei sua saída e fiquei a observar a noite com seu manto de estrelas. Um espetáculo da natureza.

As nuvens já estavam chegando como foi dito. Talvez naquela noite mesmo as primeiras gotas de água caíssem. Já estava fazendo frio. Resolvi entrar e dormir também.

A chuva chegou pela madrugada. Vento forte e chuvas que açoitavam as paredes do farol que mais pareciam pedras sendo jogadas. Nunca tinha ouvido nada parecido até então. Fiquei um tempo acordado ate pegar no sono outra vez.

Pela manha levantei e estranhei não sentir o cheiro forte de café. A velha da ilha normalmente levantava muito cedo e já fazia o café.

Fui à cozinha e não havia nada no velho fogão. Fiquei tentado a ir verificar se avia ocorrido algo com ela. Cheguei até ir próximo ao quarto onde dormia. Mas no meio do caminho, resolvi voltar. Iria fazer o café e aguardar mais um pouco para ver.

Preparei o café com umas bolachas que haviam na dispensa. Deixei tudo pronto. Ficaria aguardando pela senhora.

Enquanto isso, fui verificar os estragos que a chuva da madrugada poderia ter causado. Olhei ao redor do farol e não havia nada de errado ou fora do lugar. Parecia estar tudo em ordem.

Fui para as bandas do hospital sem detectar nada errado. Já ia voltando quando notei próximo a trilha de acesso à praia uma pessoa imóvel a observar o mar absorto em pensamentos. Era a velha da ilha. Fiquei curioso para entender o motivo daquele comportamento.

Me aproximei e me sentei ao seu lado em silencio. Ela não se mexeu no primeiro momento. Depois inclinou levemente a cabeça sobre o meu ombro e pôs-se a chorar. Aquilo me desconsertou. Não sabia o que fazer ou dizer. Nunca havia passado por situação similar.

Após alguns minutos ela falou com voz cansada.

- Ontem tive sonhos ruins. A muito tempo que não tinha esses sonhos, mas ontem não sei por que voltaram.

- Você quer falar um pouco deles comigo? Perguntei sem muita convicção de que seria atendido.

- Esses sonhos me acompanham há muito tempo. Neles apareço sempre em um ambiente escuro, quase sem ventilação. Acredito estar prisioneira. Outras pessoas aparecem. Uma mulher cujo rosto não consigo enxergar e uma criança muito nova em suas mãos que me é dada para os cuidados de alimentação e higiene. Isso se repete constantemente. Quando essa mulher toma a criança de minhas mãos, vem logo uma dor de cabeça insuportável e aí acordo e não consigo dormir mais.

Nesses momentos busco ao ar livre para refazer a má impressão que eles me causam. Só nesses ambientes de luz e com a vista voltada para o mar é que consigo me acalmar e retornar ao normal acredite.

Aquela revelação me fez refletir... Quem seria aquela mulher? qual a relação com a família do Dom Carlos? Fiquei um bom tempo sobressaltado com os pensamentos que me vinham à mente...Ficamos ali, cada qual imerso no seu mundo por um bom tempo. Ate a chegada de uma nova chuva que nos fez buscar abrigo no velho hospital.

Lá se encontrava uma grande sala com três corredores que levavam a parte mais interna do hospital. Um dos corredores dava para uma área externa como se fosse em outros tempos, área de convivência. Dava para perceber que ali existira um grande jardim. O outro corredor abria-se para uma ala cheias de quartos. Muito provavelmente era o dormitório dos internos e da equipe que trabalhava por lá. O último dava acesso a uma antiga cozinha, e a outros compartimentos menores que não consegui identificar o que poderia ter sido. No final de tudo um corredor que se abria para uma área externa e tinha ou teve ligação com uma construção feita na pedra que por conta de um desmoronamento estava bloqueado por grandes pedras.

Depois de olhar com muita calma o ambiente retornei para onde havia deixado a Velha da ilha. Ela estava quieta na área de convivência tentando limpar um canteiro das ervas daninhas que teimavam em crescer ali. Ao me ver ela exclamou:

- Plantei muitas mudas de flores nesses canteiros. Você precisava ter visto. Era a sensação do local. Todos disputavam um espaço por aqui só para contemplar as flores com suas cores variadas. Essas flores vinham no barco e quando chegavam eu mesma fazia questão de plantar. Fazia exatamente como minha mãe me ensinou.

- A senhora não se lembra quem deixava as flores aqui? Poderia contar mais alguma coisa de que se lembre?

Ela continuava a falar sem se interessar pelas minhas perguntas. Continuava com as suas colocações fruto de um passado distante e que só na sua mente se desenrolava. Falava sem parar o que me fez desistir de continuar a perguntar. Passei a ouvir...

- Alguns fragmentos vividos nesse lugar que ainda guardo na memória faz com que me encha de alegria. Até o perfume que as flores exalavam naquela ocasião, parece estar guardado na mente. Coisas soltas...

Depois de um momento de silencio ela se voltou para mim e disse:

- Vamos voltar para o farol antes que outra chuva chegue. Não esqueça de começar a organizar esse lugar. É uma de suas atribuições.

Levantei-me calmamente do lugar em que encontrava. Olhei para o céu e vi muitas nuvens negras se aproximando. Estava mesmo na hora de voltar.

Assim que chegamos no farol a chuva desabou. Não nos restava mais nada a fazer se não se sentar e conversar. Ouvi os relatos e histórias sobre o hospital na época em que funcionava. Contei também a minha história no orfanato e como fui adotado por uma das pessoas que trabalhavam por lá.

Omiti todo o restante da história e os motivos que me levaram a estar ali. Ficamos conversando por muito tempo. A noite chegou e não nos demos conta.

A chuva continuava a cair e o vento se fazia mais forte naquele momento. Ela olhando para cima me pediu para verificar o farol. Se ele estava rodando e se a chama estava sendo alimentada pelo óleo.

Subi lentamente os degraus da torre e fui verificar cada elemento daquele imenso dispositivo. Dei corda, coloquei o combustível, limpei a lente e fiquei por um tempo a observar seu funcionamento. Depois fiquei olhando para a noite escura e o mar à distância. Às vezes pequenos pontos brancos apareciam nas cristas das ondas, fruto das pedras que formavam o labirinto em volta da ilha. Para quem não conhecia era uma armadilha mortal. As embarcações que se aventuraram por aquelas águas no passado pagaram alto preço.

Desci as escadas com intenção de ir para o quarto. Muitas inquietações passavam pela mente. Não encontrei mais a velha sentada na mesa. Por certo havia se recolhido.

Tomei a direção do quarto. As coisas que ocorreram naquele dia reforçavam ainda mais o mistério em torno do desaparecimento da esposa do Dom Carlos. Aquela senhora revelava coisas que colocavam muitas dúvidas sobre a morte da esposa de Dom Carlos. Aquela placa entre as cruzes lá na parte alta da pedra, também sinalizava algo estranho. Ali havia ainda um mistério a ser descoberto. E antes de retornar para o continente haveria de descobrir.

Adormeci sem me dar conta. Sonhei com o hospital, suas rotinas, com os momentos de lutas que ocorreram por lá, com a explosão provocada pela Catharina que sepultou as irmãs e o Mendonça. No sonho uma mão me pegava por sobre os escombros puxando com força. Tentava soltar me, mas não conseguia. Gritava por ajuda e ninguém ouvia.

Acordei completamente suado e com o olhar curioso da velha senhora bem próximo de mim.

- Filho! Você teve um baita de um pesadelo. Ficou ai gritando como se algo roubasse sua alma. Tentei lhe acordar e não consegui. O que houve?

Ainda confuso pela situação, buscava restabelecer o emocional e entender o que havia ocorrido.

Sentei-me na cama e contei o sonho que tive. A velha ouvia atentamente o que falava. Com um pequeno sorriso de compreensão buscava transmitir segurança.

- Você teve um pesadelo. As coisas que você viu por lá, no hospital velho, lhe impressionaram. Junta isso a sua mente fértil e olha a história. Não se preocupe, você se acostuma.

- Agora levanta e aproveita o dia para buscar suprimentos lá na ponta da ilha. O dia esta de sol e precisamos reforçar o estoque de alimentos. Aproveita que esses dias daqui para frente vão ser raros. Toma cuidado com as trilhas que estarão escorregadias por conta das chuvas. Qualquer coisa, faz a fogueira de aviso que vou ajudar.

Os dias se passaram numa rapidez incrível. Alternavam-se dias de muita chuva com céu nublado e sem sol. Fazia um frio intenso, em pleno meio dia. Quando molhava então, ai que a sensação térmica caia mesmo. Revezava entre as tarefas do farol, e a do hospital. Quando o tempo permitia ia buscar alimentos na ponta da ilha ou na prainha escondida como havia batizado. O caminho estava cada vez mais perigoso e escorregadio com conta do lamaçal que se formou com as chuvas constantes. O restante do tempo passávamos contando histórias um para o outro. Vez por outra acontecia víamos baleias passeando ao longe e em alguns momentos fragmentos de madeiras chegavam à praia. Toda vez que ocorria era necessário investigar para certificar não se tratar de embarcação à deriva. Assim os dias se passaram, viraram semanas. Era uma rotina quase que sacerdotal. Até que veio a semana com um ingrediente a mais. A formação de um furacão na região. Sua passagem foi terrível. O pequeno cais lá embaixo foi totalmente destruído, arvores, galhos, parte do telhado do farol, das ruinas do hospital, tudo sofreu com a passagem da tormenta. Ficamos praticamente isolados dentro da construção de pedra que nos serviu de abrigo. Foram horas de muita apreensão.

Havia anos que tormenta semelhante havia ocorrido na região. Segundo a velha da ilha o estrago naquela época foi terrível. Houve inclusive algumas mortes por conta disso. Ela se lembrava de fragmentos de situações vivenciadas na época.

Sabíamos que após a passagem da tormenta teríamos muito trabalho pela frente. Não seria nada fácil. Aguardamos, pois, resignados o momento em que podíamos avaliar melhor os estragos. Dois dias depois o tempo deu uma trégua e aí pudemos avaliar a extensão dos nossos problemas. A primeira situação a ser resolvida foi a do dispositivo do farol que havia parado de girar. Houve a necessidade de se trocar peça responsável pelo giro que apresentou defeito. Por sorte havia peça reserva que sob orientação da velha foi trocada restabelecendo a funcionalidade do farol.

No segundo momento fomos atuar no telhado da construção anexa ao farol que ficou parcialmente destelhada. Foram dias de serviço duro sob, muitas vezes, chuvas torrenciais. Após o terceiro dia, nos demos folga para descansar. Estávamos exaustos. Foram dois dias de descanso efetuando apenas as tarefas de limpeza da casa e manipulação de alimentos.

Após o descanso fomos verificar os estragos do lado de fora. Era muita coisa fora do lugar. Havia o cais completamente destruído, plantas arrancadas pela força dos ventos. Novas mudas seriam colocadas no lugar. Muitos galhos nas trilhas e parte do muro do hospital rachado por conta de uma arvore que caiu sobre ele. Ali, teria que cortar os galhos e depois verificar a extensão dos danos.

Mas a surpresa maior estava no lado de dentro da construção. A área interna estava muito suja e muita coisa fora do lugar. No fim do corredor, o que dava para a construção de pedra, havia uma fissura e uma pequena entrada dava para ser vista por entre as pedras. Aquela visão provocou mau estar na velha que precisou ser amparada para não desfalecer. A todo instante pedia para retirá-la dali e levá-la para o farol. Quase que a carreguei devido a sua fraqueza momentânea. Estava curioso para entender melhor o que havia causado tamanho mal-estar. Chegando lá coloquei- a na mesa sentada e fui preparar um chá. Ela estava ainda com o olhar distante, como se estivesse em choque.

Alguns minutos depois, o chá estava servido. Sentado à sua frente aguardava que reagisse e me contasse algo.

Não sei em que momento ela começou a falar.

- Já estive ali. La é um lugar ruim.

-Ali onde? Perguntei...

- La dentro daquele buraco. Já fui la dentro. Não sei o que fui fazer lá, mas já estive lá. É escuro e frio. Não quero voltar para lá. Você vai fechar aquilo para mim. Prometa!

- Mas o que houve? Você se lembra qual o motivo lhe levou a entrar ali?

- Não sei... Não me recordo... Só sinto que já estive lá dentro e não foi uma experiencia boa. Estou com medo...

- Não se preocupe! Estou com você. Nada vai lhe fazer mal comigo por aqui.

- E se ela vier me pegar?

- Ela quem? De quem você está falando?

- Não sei.... Só falei... Estou com dor de cabeça. Minha cabeça está doendo. Esta tudo rodando....

Só tive tempo de amparar para não cair no chão. A velha havia desmaiado. O que é que tenha passado foi muito traumático. Levantei-me- a e fui colocar no quarto. Busquei algumas ervas medicinais e fiz algumas compressas durante a noite toda aguardando restabelecimento da senhora. A todo instante ela murmurava palavras como se estivesse fazendo uma súplica. Não dava para entender direito só palavras soltas. Em dado momento ela falou claramente a palavra “Catharina”, Mendonça. Nesse instante compreendi tudo. Ali, na minha frente estava a esposa de Dom Carlos, Ana. Ela de alguma forma sobrevivera a explosão provocada pela sua irmã, e conseguira sair do cativeiro. Restava entender o que ocorrera para não se lembrar de quem era e nem porque continuava na ilha sem o conhecimento do pessoal que normalmente visitava.

Esse quadro da anciã permaneceu quase a noite toda. Pequenos gemidos, gritos e frases soltas sem sentido era dito a toda hora. Mas percebia que não estava mais agitada como antes. Isso de certa forma deixava-me mais tranquilo.

Lutava agora contra o sono que teimava em cobrar repouso do corpo. Tentava em vão manter-me alerta, mas definitivamente estava cansado. Sem dormir direito e vindo de uma jornada de trabalho duro o organismo reclamava por repouso e no final das contas terminei por dormir ali mesmo na cadeira. O que me rendeu mais tarde uma dor insuportável na lombar.

Acordei no dia seguinte com dores no corpo todo, coberto com um lençol e sem sinal da anciã. Fiquei a recordar os momentos vividos na noite anterior tentando organizar as ideias como que anestesiado.

Sabia agora que estava diante da senhora Ana, esposa de Dom Carlos. Estava claro que ela estava com uma espécie de amnésia. Provavelmente pelos traumas que foi obrigada a passar. E por falar nisso, onde poderia ter ido? La fora o tempo não estava muito bom. Ventava muito e pelo som no telhado, estava chovendo bem fraquinho.

Sair lentamente do quarto ainda sentindo dores pelo corpo todo para localizar onde poderia ter ido. Para minha surpresa, lá estava ela sentada tomando café.

Ao me vê sorriu e foi logo dizendo...

- Bom dia dorminhoco. O que foi que houve com você? Acordei e me deparei com você dormindo na cadeira. Me conte o que ocorreu. Não me lembro de nada.

Meio sem jeito, pela forma como fui abordado, sentei-me em sua frente e disse que ela havia desmaiado após os serviços no hospital. Que a havia colocado na cama fazendo vigília para o caso de alguma necessidade.

Ela olhava entre curiosa e preocupada.

- Jovem, eu realmente não me lembro. Sei que fomos ao hospital efetuar a limpeza. Me lembro de uma dor forte na cabeça e depois não me recordo de nada. Recobrei os sentidos agora pela manhã aqui no quarto. Imaginei que você havia me colocado aqui. Esses apagões já ocorreram comigo em outras épocas. Mas faz muito tempo. Resta agora você me contar o que não me lembro.

Dizendo isso ficou olhando para mim a espera de uma resposta. De minha parte estava sem saber como contar exatamente o que ocorrera e o que sabia da situação. Estava indeciso se seria salutar contar tudo ou só a parte que provocou o desmaio. Para ganhar um pouco de tempo, pedi para tomar um pouco de café antes de contar o que presenciara.

Ela aquiesceu e ficou aguardando o relato. Via-se em seu semblante vivo interesse no que seria contado.

Me servir de café, me sentei em frente e resolvi contar tudo que sabia e por que estava ali.

- Vou lhe contar tudo. A história é longa. Peço que não me interrompa. Caso queira que pare, sinalize por favor. Vou começar dizendo que sei quem você é e como chegou a ilha...

Foram longas as horas em que passei narrando detalhadamente tudo que havia descoberto ate aquele instante. Inclusive o evento do dia anterior em que ela havia desmaiado. Ela ouvia com o olhar perdido, como se buscasse recordar situações vividas. Estava tranquila. Busquei no seu olhar algo que revelasse entendimento da situação. Fiquei em silencio após todo o relato. Havia naquele momento uma atmosfera leve que contrastava com as chuvas e ventos que teimavam em continuar. Mas era um som que trazia harmonia ao ambiente. Permaneci em silencio, respeitando o momento do ser que se encontrava à minha frente.

Ela em dado momento olhou para mim e esboçou um pequeno sorriso.

- Quer dizer que meu nome é Ana. Que sou casada e que tive uma filha.

Confirmei lentamente com a cabeça.

- O que você me contou, respondem a alguns questionamentos que me angustiam. Dão sentido também a sonhos que tive e tenho em alguns momentos em minha vida. Más, por maior que seja os esforços não consigo me lembrar das coisas. Agora mais do que nunca preciso recuperar essas lembranças, recuperar a minha vida.

- Quer dizer que tenho um esposo ainda? E que minha filha viveu ate a pouco tempo? Acolhendo crianças em um orfanato? Não esperaria menos do que isso de uma filha. O que que houve comigo meu Deus?

Lagrimas escorriam de seu rosto copiosamente. Não me sentia confortável para me mexer ou sair dali naquele momento. Simplesmente fique parado, inerte.

Não sei quanto tempo passamos assim. Mas ela quebrou o silencio ao me pegar nas mãos e dizer claro e em bom tom.

- Você vai me ajudar a recuperar minhas lembranças. Está na hora de voltar a viver. Promete?

Olhei para ela com alívio e alegria. Acenei positivamente com a cabeça. Algumas lagrimas vieram ao rosto. Não pude conter. Estava ali uma pessoa digna de ser ajudada. A despeito das situações duras por que passou, estava demonstrando uma força e vontade de viver sem igual. Ajudaria sim, até quando me for permitido. Elevei suas mãos aos lábios e as beijei carinhosamente.

- Estarei com você se me permitir. Fui acolhido por sua filha quando não via perspectivas em minha vida. Ela cuidou de mim, me deu carinho e sentido à vida.

Devo isso em sua memória.

Ficamos assim, um bom tempo juntos. Até que numa tirada bem-humorada a velha ou melhor dizendo Ana, disse: - Vai dar corda no farol antes que ele pare. Já está anoitecendo. Amanhã vamos começar a reconstruir o cais se as chuvas deixarem.

Dizendo isso se levantou e foi cuidar de algumas coisas na cozinha.

Fui atender prontamente a sua solicitação sorrindo e feliz pelo desfecho momentâneo da nossa conversa o restante do dia ocorreu sem mais emoções fortes. Cumprimos as nossas tarefas e nos reunimos como de costume ao pé da mesa, ouvindo as chuvas e contando histórias.

Naquela noite ouvi a historia de um salvamento de um filhote de baleia que havia entrado na prainha e com a mare baixa não conseguiu sair.

Ana contou como os marinheiros existentes ali se arriscaram para devolver o filhote são e salvo, conduzindo a baleia semi aprisionada por entre o labirinto de pedras. Das quatro embarcações, duas voltaram em estado lastimável, devido às batidas dadas nos recifes do labirinto. Aquele dia foi um marco para os então moradores da ilha.

Na sequência ficamos conversando sobre o que iriamos realizar no dia seguinte caso as chuvas deixassem. Ficamos assim ate que o sono e cansaço se abateram nos convidando ao sono dos justos.

Cada um no seu momento se deslocou para o dormitório. Fui o último a sair da cozinha. Cai na cama sem maiores preparações. Diria até que do jeito que cheguei emborquei na cama e o sono veio quase que instantâneo. O cansaço do dia, as revelações e o barulho das chuvas foi a orquestra sinfônica a embalar o sono de todos nós naquele farol.

No dia seguinte muito frio e uma neblina quase muito espessa não permitia visibilidade. A Ana como ela mesma pediu para ser chamada, já estava de pé com o fogão aceso. Buscava assar um pedaço de carne seca com fubá para o café da manhã. Ajudei nas tarefas sob sua orientação e após o café, fomos buscar os materiais de seriam necessários para a reconstituição do pequeno cais destruído pelas chuvas. No pequeno deposito pegamos muitas tabuas e estacas para fixação de novos pontos de reforço no cais. Colocamos ferramentas e todo material recolhido do pequeno deposito, no teleférico que fazia o transporte de mantimentos da praia para o ponto de descarga próximo do farol. O seu acionamento era todo manual. Havia engrenagens que auxiliavam no deslocamento do carrinho preso em um cabo. Era algo extremamente simples, mas funcional.

Uma vez arrumado o carrinho, a Ana subiu a bordo e com um sorriso comandou a operação de descida do pequeno veículo.

O vento não dava trégua e logo nos primeiros movimentos o carrinho começou a balançar muito forte. Isso causou apreensão. Temi pela integridade daquela senhora que se encontrava por sobre os materiais sem temer o perigo que corria.

Lentamente procurei soltar a manivela das engrenagens buscando uma descida suave para o veículo. Essa operação levou uns cinco minutos, mas, parecia ter levado uma eternidade.

Quando o carro chegou no seu ponto de apoio na praia. Busquei travar as engrenagens e desci a pequena trilha existente, em direção ao caís. Essa sim, foi difícil. Muita chuva, solo escorregadio, vento e uma descida íngreme tornou a descida uma verdadeira aventura. Demorei muito para chegar na parte da praia.

Cheguei ofegante e todo sujo da lama do caminho. A Ana me olhava do carrinho sorrindo como que se divertindo da situação. Ensaiei uma cara de zangado, mas logo, logo cai na risada também.

Ajudei a sair do veículo e comecei a descarregar as coisas que seriam usadas na reconstituição do cais. Havia no paredão pequena reentrância na pedra que servia como abrigo. Lá montamos nosso posto de serviço. Caso houvesse chuvas ou ventos poderíamos nos recolher naquele lugar em perfeita segurança.

Na verdade, ali seria a nossa casa pelos próximos dias. Situação que veio a se confirmar posteriormente. O Cais levou exatamente, oito dias para ser reestruturado de novo.

Retornamos para o farol no fim do oitavo dia. Estava feliz por ter concluído a tarefa e o que mais gostaria de fazer naquele momento era tomar um bom banho e cair numa cama quente e com lençóis secos. Naquele momento era tudo que precisava: Banho, café e uma boa noite de sono...

No dia seguinte o sol havia voltado. Algumas nuvens teimavam em permanecer no ar, mas o sol dominava quase toda a paisagem. Agora o frio não era brincadeira. Ao longe o mar agitado não deixava dúvidas do risco que seria entrar naquelas águas. Sai da contemplação da paisagem e busquei localizar Ana. Havia acordado e saído para contemplar o dia e não havia dado conta da ausência da anciã. No farol não se encontrava definitivamente. Fui ao hospital e também não consegui localizá-la. Fui encontrar lá próximo a trilha de descida em um pequeno mirante construído para visualizar a pequena enseada. Estava muito contemplativa olhando o mar. Busquei sentar-se ao seu lado para não interromper seja lá o que for que ela estivesse pensando.

La pelas tantas ela falou: - Me lembrei de como cheguei aqui na ilha!

Fui trazida de barco para cá dentro de um saco. Já era noite. Estava amarrada e com um lenço na boca impedindo que falasse. As pessoas que me trouxeram falavam pouco mas percebia que estavam a mando de alguém que eles temiam muito, não sei por que motivo. Subiram a trilha já noite dentro e me colocaram em um ambiente muito escuro, acho que uma caverna. La tinha uma cama e uma pequena janela feita de pedra natural que dava para o lado do paredão. Pequena luz da lua chegava a entrar por essa janela. Eles me trouxeram com cuidado obedecendo as instruções de alguém. Lembro estar aterrorizada. Não conseguia pensar direito e as coisas pioraram quando percebi estar gravida. Fiquei a noite toda acordada naquele lugar escuro com sede e com fome. Não havia comido ou bebido nada durante o dia. Estava me sentindo fraca o que me fez ficar deitada na cama onde me puseram. Só vinha na lembrança uma música que minha mãe cantava para mim quando era criança e tinha sonhos ruins. Fiquei a noite toda cantando a música e ouvindo o silencio da noite...

Dizendo isso voltou a ficar calada contemplando o mar à nossa frente e cantando uma melodia que a muito tempo não ouvia. O som da melodia me fez recordar um período de minha vida no orfanato. Quando fui acolhido pelas duas senhoras que trabalhavam lá e que culminou com a minha adoção por uma delas. Não sei por quanto tempo ficamos assim, mas a Ana voltou-se para mim e disse entre sorrisos:

- Só me lembrei disso até o momento. O que você acha? Estou recobrando minhas memorias?

- É possível que sim. Falei um pouco hesitante! E mudando de assunto disse a ela que iria me concentrar na limpeza do hospital. Havia muitos estragos feitos pela tempestade que precisava de reparos. Levantei-me e fui em direção ao portão de acesso ao velho hospital.

Ela por sua vez, ficou me olhando afastar.

Lá pelo meio do dia fui surpreendido com um delicioso almoço que a Ana havia feito.

- Garoto! Vai lavar as mãos e o rosto ali na bica e venha comer enquanto esta quente. Não quero que pegue uma doença por conta de não se alimentar.

Assenti sem reclamar e rapidamente segui suas instruções. Comi com tanta avidez que parecia não ter visto comida a muitos dias.

Nos dias subsequentes aproveitando a estiagem das chuvas voltei a ponta da ilha para buscar mais peixes. O frio continuava intenso e a trilha cada vez mais escorregadia por conta da umidade do ar alta. Mesmo assim fazia o caminho sem mais sentir o cansaço das primeiras vezes. Entregava os alimentos para a Ana que tratava e temperava. Alguns pedaços ficavam no defumador para serem guardados e consumidos nos dias seguintes.

Entre os intervalos de nossas tarefas, nos sentávamos para comer e era quando conversávamos sobre as nossas vidas. Algumas vezes a Ana contava pequenas situações que se recordava atribuindo ser alguma experiencia vivida por ela antes de perder a memória. Desde o episódio do deslizamento de pedra que reabriu a fenda na antiga construção de pedra no fundo do hospital, Ana não voltou mais àquela parte do hospital. Ia até a área do jardim onde, segundo ela, plantava flores. Hábito que vinha de sua mãe.

A minha curiosidade crescia a cada dia. Havia já organizado quase que tudo por ali. Faltava justamente aquela área. Sentia uma vontade quase que irresistível de entrar pela aquela fenda que se abriu e ver o que havia por lá.

Não sabia como dizer a anciã que faria isso. Temia causar algum mal-estar ou coisa pior. Mas tinha que ir. Algo me impelia. Estava pensando como fazer sem magoar aquela senhora ou se ia sem dizer nada a ela.

A oportunidade não tardou a aparecer. Certa manhã, Ana informou que iria na ponta da ilha e que provavelmente só voltaria no dia seguinte. Tinha que remendar uns pedaços de rede e a tarefa levaria o dia todo. Dormiria por lá e voltaria no dia seguinte. Que eu olhasse pelas coisas no farol e não descuidasse das tarefas por lá. Assenti feliz da vida com a oportunidade. Aguardei ela se organizar e descer pela trilha sinuosa ao lado do muro do hospital. Ia devagar devido ao estado precário da trilha. Assim que ela sumiu de vista, corri para o farol na tentativa de pegar óleo, candieiro, tochas pequenas, algumas ferramentas que poderiam ser usadas durante a exploração do local. Feita a verificação, desci em direção a fenda aberta no fundo do hospital.

O espaço entre as rochas era apertado, mas dava para entrar com relativa facilidade. Acendi uma das tochas e comecei a entrar. No início, com dificuldade. Depois abriu-se um vão que dava para uma escada íngreme. No ponto mais alto havia uma pequena passagem. Subi lentamente e com cuidado. Não sabia e o que encontraria do outro lado. Assim que transpus deparei me com amplo espaço. Acendi mais uma tocha e fixei em uma das laterais do ambiente em que me encontrava. Comecei a explorar a área. Havia restos de moveis quebrados, mas também inteiros. Mesa, cadeiras inteiras, um balcão, alguns utensílios pelo chão, tudo intacto. Mais adiante um pequeno batente indicava o início de um outro ambiente. Novamente precisei acender uma nova tocha para melhor reconhecer o ambiente. Esse batente dava para uma possível varanda. Parte bloqueada por pedra e uma outra parte ainda inteira que dava para um corredor longo. Esse corredor apresentava uma bifurcação. A da direita era um quarto muito bem montado e ainda intacto. Uma grande cama, com armários uma pequena mesa, cadeiras. Roupas de mulher e outros utensílios. Documentos ou papeis escritos se encontravam por todo o chão. Alguns recolhi para melhor analisar do lado de fora. Um pequeno espelho em uma cômoda ao canto esquerdo e dois grandes quadros. Um deles mostrava um casal e duas garotas pequenas e um outro mostrava Dom Carlos sozinho.

Se tinha dúvidas, com a visão daqueles quadros elas foram dissipadas. Estava no quarto da irmã da Ana a Catharina. Ali com certeza deveria haver muitos indícios que poderiam explicar mais alguma coisa dessa intrigante história.

Passei a me movimentar com mais cuidado. Na penteadeira, encontrei vários utensílios. Abri um pequeno saco que trouxera e coletei alguns daqueles utensílios. Guardei-os cuidadosamente na mochila de couro que levava. Sai daquele cômodo e me preparei para o próximo. Pequeno corredor se apresentava e uma espécie de escada que descia de nível como se fosse para um andar de baixo.

Ali estava tudo revirado. O ambiente era amplo. Havia um grane portão que separava a entrada do restante do ambiente. Esse portão estava semidestruído.

Após o portão uma mesa de um dos lados, uma pequena abertura na pedra permitia a passagem de luz de um lado e do outro lado, outra abertura um pouco maior deixava o ar e sol do dia penetrar com plenitude. Fui observar a vista pelas fendas. A menor dava para o céu por conta da inclinação da abertura, mas o outro dava para ver o mar ao longe. Levei alguns minutos reconhecendo a vista. Era a mesma que vi quando estava no topo da pedra onde achei as cruzes. Aquele lado era a do paredão. Um rochedo íngreme que ia ate a parte baixa da ilha terminando sobre uma imensidão de pedras banhadas pelo mar. Aquela visão acelerou o meu coração. Havia ainda preso na reentrância da fenda restos de cordas improvisadas que desciam e iam até uma área mais escondida e que não dava para ver direito. Segui a corda até uma estrutura de ferro parecendo uma cama. Lá, por sobre a cama, havia um esqueleto. Parei momentaneamente aturdido. Será ali o local que Ana ficou cativa? Será que aquele esqueleto era o irmão de Dom Carlos? O Mendonça? Tudo levava a essa conclusão...

Busquei um banco para sentar e refletir o que estava descobrindo. Havia tantas coisas lá, utensílios, pequenos moveis, velhas toalhas. Pequenas roupas...

Aquelas roupas eram de bebês. Decidi pegar algumas peças e levar comigo para melhor analisar sob a luz do sol.

Prendi uma tocha no ambiente e deixei o vasilhame de óleo próximo para ser usado quando voltasse um outro momento.

Voltei lentamente pela mesma trilha feita anteriormente ate a fenda que dava para o hospital. Ao sair, o sol ofuscou minha vista. Precisei de um tempo para readaptar com a claridade.

Busquei no próprio hospital uma grande mesa que permitisse espalhar o material recolhido no interior. Estava tremendo como um adolescente temendo ser pego em alguma coisa proibida.

O simples espaço visitado já revelava grandes descobertas. Agora, aqueles objetos ali expostos após longos anos, poderiam elucidar de vez situações que não puderam ser reveladas.

Como um verdadeiro paleontólogo procurei no primeiro momento dividir a mesa em zonas ou ambientes. Criei a zona da ambiente sala/cozinha, a zona quarto de Catharina e a última que denominei quarta prisão de Ana. Em cada zona separei o que eram utensílios e roupas dos livros e papeis. Por último os pequenos objetos. Usei o mesmo critério nas outras duas zonas. Após conclusão, fiquei olhando a arrumação e disposição por sobre a mesa de todo material recolhido.

Olhei para o tempo nublado do lado de fora. Uma pequena chuva fria caia. Sabia que a Ana não retornaria mais naquele dia da ponta da ilha. Tentava imaginar de que forma levaria a notícia daquele acervo para ela. Temia que algum daqueles materiais pudesse despertar sua memória adormecida e ela viesse a passar mal. Por outro lado, era a chance de obter mais alguma informação sobre o seu rapto. Fiquei o resto dia meditando como faria a apresentação do material.

A noite chegou e a chuva não cessava. Junto com ela, o vento alternando de intensidade. Estava apreensivo por ter deixado a anciã ir sozinha lá para a ponta da ilha. Sabia da vitalidade dela porem o terreno estava muito encharcado e poderia oferecer riscos a quem se aventurasse pela trilha estreita. Fui dormir no sentido de ir para lá assim que clareasse o novo dia.

O sono foi agitado. Hora pensava na segurança da Ana, sozinha lá na ponta da ilha e hora pensava nos eventos ocorridos dentro daquela casa na pedra. Acordei com o peso da noite mal dormida. Chovia muito e o bom senso pedia que não saísse de casa, mas tinha que descer pela trilha não poderia deixar a velha senhora sozinha entregue à própria sorte. Sabia que ela tinha experiência nas trilhas no entorno da ilha, mas a idade já não era a mesma e o inverno estava de certa forma rigoroso aquele ano.

Busquei na dispensa os materiais que poderia utilizar. Roupas secas, toalhas, capas de proteção, tudo que naquele momento poderia ser útil em alguma emergência. Tomei um rápido café e me dispus pela trilha.

Como havia imaginado. O caminho estava encharcado. Muita lama e em alguns trechos a agua concorria com o caminho arenoso formando pequenas corredeiras que se mostravam verdadeiras armadilhas. No caso de queda, poderia ser arrastado e cair por algum precipício existente pelo trajeto.

Mantive o passo cauteloso e busquei descer lentamente. Torcia para que houvesse diminuição das chuvas. Definitivamente não foi uma boa ideia a Ana descer lá sozinha. Estava chateado comigo mesmo por não a tê-la persuadido. Continuei a descer até alcançar o mirante. Parei alguns minutos para descansar.

Avaliei o estado da trilha. Caso não houvesse diminuição das chuvas, seria muito perigoso retornar por ela. Alguns pontos mostravam claramente que houve deslizamentos de terra. O cenário deixava cada vez mais preocupado com a integridade da anciã. Torcia que fosse só imaginação e preocupação excessiva...

Depois do descanso, continuei a descer. Esse segundo trecho estava mais preservado e o risco se dava só pela terra molhada que estava escorregadia. Havia algumas arvores derrubadas pelo caminho. Tinha algumas vezes que cortar os galhos para poder avançar. Em um determinado momento da descida visualizei imagem que fez o coração gelar. Parei e esfreguei os olhos para ver se não era miragem. À minha frente cerca de três metros um arbusto havia caído sobre a trilha e, embaixo de seus galhos, uma figura frágil estava presa. Corri apressadamente. Coração acelerado, alcancei o ponto e chamei pelo nome.

- Ana!!! Ana, Você está bem? Alcancei a arvore caída e verifiquei cuidadosamente a situação. Ela se encontrava com parte do corpo sobre o tronco da arvore caída. Havia uma pedra ao lado que absorveu parte do impacto evitando que o peso da arvore ficasse sobre a anciã. Ela mexeu a cabeça lentamente e deu um sorriso fraco, sinalizando estar bem dentro do possível.

Olhei cuidadosamente em busca de alguma fratura ou coisa parecida, mas não havia no primeiro momento fraturas. Ela olhou para mim com um leve sorriso. Busquei agasalhá-la. Seu corpo estava frio. Acomodei sua cabeça da melhor forma possível e na sequência fui verificar de que forma retiraria a arvore sobre ela. Apesar de não falar nada, acompanhava tudo com o olhar. Podei lentamente alguns dos galhos e busquei fazer uma alavanca para deslocar o tronco. A operação foi demorada, mas no final, consegui retirar a arvore de cima da Anciã.

Novamente busquei verificar se havia alguma fratura ou algo que indicasse gravidade. Ao tocar na região da barriga Ana deu um gemido de dor. Mas por sorte só foi o ponto de impacto no momento da queda da arvore.

Desloquei a para um lugar mais seguro, embaixo de uma outra arvore. Improvisei uma pequena tenda e busquei agasalhá-la o melhor que pude.

Apesar do semblante preocupado estava feliz por tê-la encontrado. Agora tinha que ser rápido. Sabia que não poderíamos ficar ali pois esfriaria e como estávamos molhados não seria nada bom. Procurei com os galhos quebrados da arvore improvisar uma maca para poder colocar Ana e transportar para o farol.

Nunca pensei que as aulas que fiz no orfanato de primeiros socorros seriam uteis um dia.

Após fazer a maca testei para ver a segurança. Estava na hora de voltar. Entrei na tenda improvisada. Ela continuava com os olhos semicerrados, mas estava melhor. Sua cor estava mais viva e não tremia mais de frio. Falei com ela.

- Ana vou colocar você na maca e depois vamos para casa. Tudo bem? Você consegue?

Ela olhou para mim e esboçou um pequeno sorriso de entendimento.

Coloquei-a lentamente sobre a maca, amarrei-a e cobri da melhor forma possível seu corpo, mantendo-a aquecida. A chuva havia dado uma pequena trégua. Sabia que a subida seria dura. Começamos a nossa peregrinação rumo ao farol.

Terreno molhado, escorregadio às vezes escorregava e caia de joelhos. De tantas quedas havia duas grandes feridas abertas neles. Às mãos não tinham lugar que não fosse de bolhas. Estava sem camisa e em determinado momento da subida retirei as botas. Não estavam ajudando muito. Fiz o restante da subida com os pés descalços.

Chegamos ao farol já de noite. Tremia de frio e o corpo todo parecia estar anestesiado. Não sentia direito os pés, nem as pontas dos dedos. Acendi o fogo e retirei toda a roupa molhada que estavam sobre a Ana. Coloquei toalhas e lençóis secos, estendi uma grande pele de animal nas proximidades da fogueira e cuidadosamente coloquei a anciã.

Fui ao fogão fazer um chá para aquecer. Enquanto a água do chá aquecia fui do lado de fora tomar um banho e colocar roupas secas. Os ferimentos nos joelhos, pés e mãos estavam incomodando muito. Mas a água fria serviu como anestésico. Após o banho, coloquei uma bermuda e camisa seca. Encontrei um velho casaco e também vesti.

Fui pegar uma xicara e coloquei um pouco de chá. Levei para próximo do fogo onde havia deixado Ana. Naquele momento ela estava dormindo um sono. Sentei-me ao lado e comecei a chorar como criança. Em dado momento ela se virou e disse: - Você é um bom menino! Dizendo isso, fechou os olhos e voltou a dormir. Fiquei ali, olhando para aquela mulher, ate que o cansaço fez com que adormecesse.

Acordei com o corpo todo dolorido. Não conseguia me mexer direito. Doía os pés, a cabeça, os braços, os joelhos.... Estava difícil dizer o que não doía.

Tentei virar lentamente para ver como a Ana se encontrava, mas ela não estava no leito improvisado. Tentei levantar, mas os pés não atendiam. Estavam enfaixados. Então. Parei por um momento para tentar entender o que havia ocorrido. Senti um cheiro agradável de café.

Olhei para o lado da cozinha e, sentada na mesa, lá estava Ana a me olhar de longe.

- Olha quem acordou? Estava preocupada com você garoto. Já passam do meio dia. Está se sentindo melhor?

Olhando para ela não pude conter lagrimas de felicidade por vê-la ali, disposta depois de tudo que havia passado.

Ela se aproximou de onde me encontrava e sentou-se na cadeira próxima. Olhou para mim longamente.

- Sabe, se não fosse você ontem, não estaria viva... Como rezei para você ir me buscar... Aquela arvore caiu sobre mim e não tive tempo de me esquivar. Já estava achando que seria o fim dos meus dias. Sinto muito o que fiz você passar.

Sorri para ela. Soltei um gemido involuntário por conta dos pés e dos joelhos.

- Ana, queria lhe pedir desculpas por ter deixado você ir lá sozinha. Principalmente num tempo desse. Era meu dever lhe proteger. Estou envergonhado.

- Ora menino! Você acha que iria me impedir de fazer o que eu queria fazer? Nem por sonho! Eu fui porque queria ir e ponto final. Quer um café?

- Aceito! Estou precisando. Obrigado por cuidar de mim...Como estão as suas costas?

- Ainda sinto dores. Mas passei umas pomadinhas milagrosas que me deram e que fazem milagres nesses casos. Vai doer por algum tempo, mas não tem nada quebrado. Isso é o mais importante. Agora você, vai ficar um bom tempo sem poder fazer muita coisa. Suas mãos e pés estão em carne viva e seus joelhos

precisando de muito descanso. Ate lá, eu e você, ficaremos aqui jogando conversa fora.

- Ana, eu queria lhe contar um segredo. Não sei se devo... Algo que fiz enquanto você estava fora...Se você ficar chateada comigo, tem todo o direito. Não sei por onde começar...

- Vocês jovens sempre traquinando. O que foi que você aprontou na minha ausência?

- Fui lá na casa de pedra. Havia um buraco entre as pedras e eu consegui entrar lá... Vi as coisas que tinha por lá... Trouxe alguns objetos e deixei nas mesas dentro do hospital... Quando você quiser ver é só ir lá. Talvez ajude a recobrar sua memória.

- Olha Lucas, não sei se estou preparada para recuperar minha memória... Na verdade nem sei se quero... Agradeço sua boa intenção de querer me ajudar, mas não sei se tenho interesse de descobrir quem fui ou quem sou... Vivi uma parte de minha vida nessa ilha despreocupada dessas coisas. Não sei se seria benéfico na altura de minha vida essa revelação...Por hora vamos cuidar de você para que suas feridas não infeccionem. Essa deve ser a nossa preocupação atual. O resto o tempo vai nos dizer que direção tomar...

Dizendo isso, deixou o café ao meu lado e foi para o quarto.

Fiquei do meu lado sem saber o que dizer. Optei por aceitar sua argumentação e respeitar sua vontade.

Quando me recuperasse, iria lá no hospital e esconderia tudo de novo dentro da casa da pedra. Era o mínimo que podia fazer para respeitar a vontade daquela mulher.

Os dias se passaram e graças aos cuidados de Ana pude me recuperar sem sequelas. Ainda não podia fazer esforço físico com as mãos ou de andar normalmente. Andava mancando por conta do joelho esquerdo. Mas, era uma questão de tempo. Desenvolvia pequenas tarefas e mantinha as rotinas de manutenção do farol. As atividades externas haviam sido interrompidas principalmente por conta das chuvas torrenciais que caiam na região.

Mas o frio estava indo embora. Não fazia tanto assim. Sinal de que a estação mais fria, estava terminando. Logo, logo teríamos condições de receber visitas vindas do vilarejo. E já estava na hora. Alguns víveres estavam acabando.

Não tocamos mais no assunto da casa da pedra e nem fui lá no hospital ver o material que havia retirado de dentro da casa da pedra.

O sol finalmente anunciou o fim da estação, em uma determinada manhã. Estava um dia claro e límpido. Sem nuvens no céu e com alguns bandos de pássaros a se estabelecerem na ilha. Tudo isso formava uma atmosfera de alegria e de paz.

Ana havia convidado para irmos passar o dia na praia, lá embaixo junto ao pequeno cais. Prontamente aceitei. Era o primeiro dia de sol e a mare estava calma. Passamos um dia inteiro na beira do mar. Pescamos, nadamos e descansamos simplesmente jogados na areia. Foi um dia de muita alegria e felicidade. Voltamos ao final da tarde leves e felizes. À noite não foi diferente. Ficamos olhando as estrelas e contando histórias dos nossos antepassados.

Sentados no mirante, olhando o mar ao longe, a Ana em dado momento me indagou sobre o que havia encontrado na casa de pedra. Manifestou o desejo de ir ver o material que havia recolhido e deixado sobre a mesa no hospital.

- Lucas, amanha vou dar uma olhada no material que você trouce da casa de pedra. Gostaria que você ficasse por perto. Pode ser?

- Estarei sempre ao seu lado. Mas, você tem certeza de que quer fazer isso?

- Andei pensando muito sobre isso desde aquela noite em que conversamos sobre o assunto. Vou ver o que tem lá.

- Amanhã vou lá. Tenho o desejo de afastar de vez esse fantasma do passado que me atormenta vez em quando. Será uma aventura mergulhar nas memorias escondidas. Vamos ver o quanto de descobertas aqueles objetos me trarão.

O resto da noite continuamos a falar sobre projetos futuros, desejos. Contei que quando saísse da ilha retornaria e procuraria o pessoal do orfanato. Se aceitassem ele, continuaria com as atividades que sua mãe adotiva desenvolveu. Ficaria provavelmente com a tia Tereza que por certo ainda estaria por lá. Fomos dormir no compromisso de no dia seguinte ficar pelo velho hospital.

Pensei comigo mesmo. Enquanto a Ana iria olhar o material que havia sido recolhido da casa de pedra, iria dar um jeito no jardim no lado do pátio. Dali poderia dar apoio a qualquer situação que houvesse. Acordei com essa intenção viva e com uma esperança de que a ida dela lá, o contato com objetos de família pudesse auxiliar na sua recuperação.

Tomamos o tradicional café da manha e nos pomos em direção às nossas atividades. Cada um imerso em seus pensamentos.

Entramos pelo portão e nos dirigirmos para o seu interior. No saguão, apontei o local que havia colocado os materiais.

- Estarei no pátio organizando o jardim. Qualquer coisa que precisar, virei imediatamente. Não se preocupe!

- Eu sei Lucas. Você é um bom menino... E, olhando para o local, partiu decidida.

Aguardei que sumisse de minha vista e me pus a ir para o pátio. Lá fiquei algum tempo tentando ouvir o silencio... Na sequência, comecei a trabalhar no projeto que havia pensado de um jardim. Algumas mudas de flores seriam colocadas e outras remanejadas de posição. Galhos de pequenas arvores seriam podados e parte da estrutura de pedra sofreria limpeza. O trabalho não era muito, mas exigia cuidado e atenção. Fazia cada etapa bem devagar observando depois se estava a contento com o que imaginara. Se não, retornava e refazia até ficar próximo da ideia concebida. E assim as horas se passaram que quase não senti. Só percebi o adiantado da hora quando o sol passou a projetar sombra em boa parte da área em que me encontrava. Seguramente já estávamos pela metade da tarde ou coisa parecida. Organizei os materiais de trabalho, as ferramentas e fiquei observando a parte interna do hospital na tentativa de ver ou ouvir movimento. Na verdade, a vontade era de ir ate o local e ver se estava tudo bem com a anciã. Sabia que muitas descobertas deveriam ter ocorrido e que provavelmente despertado muitas emoções.

Lentamente, quase sem perceber comecei a andar em direção a ala onde a Ana se encontrava. Não queria fazer barulho ou assustá-la. Só queria ter a certeza de que tudo estava bem com ela.

Ao chegar perto da porta de acesso eis a minha surpresa. A Ana estava em frente a um antigo espelho, sentada em uma pequena poltrona lendo um dos livros que havia sido encontrado no quarto da Catharina lá na casa de pedra.

Ela me viu chegar e com o dedo apontou para outro banco existente ao seu lado, convidando para sentar-se. Desloquei-me timidamente como uma criança apanhada em alguma traquinagem. Procurei andar sem fazer barulho. Fiquei sentado em silencio, observando o ambiente. A mesa estava toda revirada. Havia peças espalhadas ate pelo chão. Muitas aos seus pés. Alguns objetos foram limpos e se encontravam dispostos ao alcance das suas mãos. Olhando para seu semblante, percebia que chorara. Mas no momento parecia visivelmente interessada no conteúdo de um livro que lia sofregamente. Estava curioso, mas feliz por vê-la bem. Recostei no banco e semicerrei os olhos. Ficaria ali ao seu lado ate quando fosse possível. Logo, logo haveria sombras no local por conta do adiantado da hora. Teria que acender um candieiro para ter luz no ambiente. Aguardaria a solicitação de Ana. Não quebraria por nada aquele momento entre ela e suas recordações. Quantas coisas não estavam passando pela sua cabeça naquele momento? Seria indigno de minha parte interrompê-lo.

Já havia se passado bom tempo desde a minha chegada ali. Observava aquela senhora que lia sofregamente aquele livro. Procurei olhá-lo melhor. Parecia ser um diário. A letra de quem escreveu era muito bonita. Não dava para identificar o que estava escrito. Por vezes a Ana parava de ler e ficava com o olhar perdido como a imaginar algo ou buscar nas lembranças a confirmação do que foi lido. Depois mergulhava de novo na leitura. Esse ciclo se repetia e repetia sem alterações.

Num dado momento, ela parou de ler e colocou uma pequena flor para marcar a posição e fechou o livro. Ficou algum tempo parada com o olhar fixo no vazio. Olhou para mim e para o meu espanto disse:

- Sou Ana esposa de Carlos e mãe de Ana Carla Mendonça. Quero retomar o meu lugar de direito na família.

- Lucas! Nós vamos para casa na primeira embarcação que vier aqui. Se prepare!!!

Dizendo isso levantou-se e, pegando uns objetos sobre a mesa continuou.

- Vamos garoto. Temos muito a fazer!!! É hora de viver e deixar o passado de lado.

Acompanhei aquela senhora sem saber o que dizer. Ela saiu altiva em direção ao farol, parecia outra pessoa.

Do meu lado, estava feliz! Dona Ana havia despertado finalmente....

Andamos a paços firmes, mas sem pressa para o farol. Colocamos os objetos trazidos do hospital sobre a mesa da cozinha.

Ana por sua vez, pegou alguns deles e todos os manuscritos encontrados e partiu para o quarto. Fiquei a observar por um tempo.

A noite chegou e anunciava ser de lua clara. Uma brisa quente começava a vir do oceano. Prenuncio do fim da estação chuvosa e fria. Agora era contar os dias para começar a chegar as embarcações de apoio que normalmente fazia aquela rota. Levantei e fui fazer um café. Não estava com sono. Iria ficar no mirante observando as estrelas e o reflexo da lua no mar. Estava feliz com o desfecho do dia. Pensava com meus botões de que forma o Dom Carlos iria receber a notícia do “aparecimento da esposa”. E os pescadores, meus amigos, esses aí ficariam com o queijo nos joelhos...Tanto o Domingos quanto Jonas por certo teriam uma história para contar para resto de seus dias.

Estava já a algumas horas observando o vazio da noite tendo como companheira apenas o som do mar quebrando nas rochas lá embaixo e o vento a assoviar nos ouvidos. Ajeitei melhor a manta que me protegia do frio que ainda teimava em ficar. Estava tão envolvido em pensamentos que tomei um susto quando ouvi a voz de Ana ao meu lado. Não tinha percebido a sua presença.

- Te assustei? Disse ela ao meu lado esboçando um pequeno sorriso.

- Um pouco. Estava distraído... Preparei meio sem jeito um café e passei para ela que aceitou com um sorriso...

- Posso lhe fazer companhia? Também não estou com sono. Nas últimas horas tenho revivido muita coisa que me ocorreram. Minha mente esta inquieta.

- Desde o dia em que fui raptada que passei a não ter vida própria. Tanto tempo se passou... Eu acordei feliz naquele dia, iria ver Carlos na vila. Ele chegaria de viagem. Me aprontei cedo. Visitaria antes alguns amigos e depois ficaria no seu aguardo. A própria Catharina me ajudou a escolher as roupas com que iria descer. Descemos e tomamos café juntas. Conversamos animadamente sobre tantas coisas. Ainda ajudei a escolher algumas roupas minhas que ela insistiu. Dizendo-me que era para a doação. Ela iria para a vinícola. Antes disso me acompanhou ate a charrete fazendo mil recomendações. Nosso cocheiro não estava lá naquele dia. Era uma outra pessoa que não conhecia. Mas, o fato não me deixou preocupada. Antes de sair a Catharina me ofereceu um pouco de chá. Disse que era para conter os enjoos caso sentisse na pequena viagem. No primeiro momento recusei, mas de tanto insistir, resolvi tomar. Logo depois, saímos em direção à vila. Já tínhamos pelo menos uns 20minutos de estrada quando comecei a sentir uma sonolência que me dominou totalmente. Acabei por dormir.

Acordei ainda na charrete dentro de um antigo galpão na antiga casa dos meus pais. Do lado de fora algumas pessoas conversavam. Ainda confusa com a situação, ingenuamente perguntei o que havia ocorrido. Eles ao me verem correram em minha direção tentando me imobilizar. Tentei reagir, mas não consegui me mexer muito. Tentei gritar, mas colocaram um pano na minha boca e um cheiro forte me fez apagar novamente. Depois só me lembro do ambiente escuro em que fiquei aqui nessa ilha. Em cárcere privado. Mantido pela minha própria irmã. Chorei tanto sem compreender o que estava acontecendo. Pensei no início se tratar de sequestro no intuito de obter resgate. Acho que fiquei um ou dois dias lá sem ninguém aparecer. Sabia que era a ilha por conta de uma pequena janela existente na rocha naturalmente que dava visão para o mar. Ali tomava um pouco de sol que entrava no período da tarde e me fazia companhia.

No segundo ou terceiro dia foi que tive visita. Uma senhora e um garoto vieram para ajudar na limpeza do ambiente. Me trouxeram roupas limpas. Tomei um banho pela primeira vez. Não respondiam nada do que eu perguntava. Só a senhora dizia que no momento certo seria esclarecida a situação. Que eles foram contratados para cuidar de mim. O mais interessante que alguns objetos pessoais meus estavam por ali. Inclusive roupas minhas.

Fiquei estarrecida mesmo foi quando depois de vários dias ali, ouvi a voz familiar de Catharina. No primeiro momento, fiquei feliz, chamei por ela insistentemente. Ela por outro lado, ficava em silencio cada vez que a chamava. Pensei até estar equivocada. Mas com o desenrolar da situação percebi o que ocorrera. Ela havia me prendido ali. Não sabia quais os motivos. Chorei noites a fio tentando entender a situação. Ate que uma determinada noite veio me visitar. Do outro lado do portão vi sua silhueta. Não tive dúvidas era a Catharina. Perguntei a ela o porquê de tudo aquilo. Ela ouvia e não me respondia. Ficava ali parada só olhando. Um olhar que não era da minha irmã. E assim perdi a noção do tempo em que fiquei ali. Direcionei meus esforços para a criança que nasceria logo, logo. Enquanto isso, procurei entender a rotina daquelas pessoas que me assistiam inclusive da de Catharina. Horários, dias enfim buscava algo e uma forma de conseguir ajuda. Escrevia de forma precária, alguma coisa para manter a mente ocupada e fazia pequenos bordados nas roupinhas do bebê que me eram entregues pela senhora que cuidava de mim.

Nas vésperas de ter a criança foi que tive pela primeira vez contato mais efetivo com a Catharina. Ela desceu ao meu quarto e ficou me olhando. Passou a mão pela minha barriga o que me fez ficar gelada. Depois olhou para mim diretamente. Sabia que ela estava olhando para mim. Naquela escuridão estava mais acostumada do que ela e pude perceber que olhava para mim. Em seguida baixou até a barriga e pronunciou baixinho umas palavras que nunca vou esquecer enquanto estiver viva. Ela disse;” venha minha criança. Vamos juntos reconquistar o que essa usurpadora fez. Roubou de mim o meu amor Dom Diego. E você vai me ajudar a reconquistá-lo.”

Aquelas palavras me deixaram estarrecida. Ela estava se referindo ao pai de Carlos. Dom Diego... em minha mente veio a realidade nua e crua. Minha irmã havia enlouquecido. Os sinais ali na minha frente e não havia reconhecido. Os mesmos sintomas do pessoal das minas. Veio também na lembrança os momentos em que andávamos juntas pela casa ela sempre me chamava a atenção da semelhança de Carlos meu esposo com o pai dele Dom Diego. Me lembrava de quão abalada ficou com a morte de Dom Diego. Brinquei ate com ela na época, perguntando se não havia se apaixonado por ele. O que me respondia de forma ríspida e grosseira. Fato que não dei importância na ocasião.

Ainda com os olhos semicerrados deixei que ela ficasse por ali, sempre a observando, aproveitando um pouco da luz do candieiro, olhava para o seu rosto envelhecido precocemente. Pensava comigo mesma: Quantas dores não carregou, quantos sentimentos reprimidos, quantos sonhos não realizados. Não, ali na minha frente não estava meu algoz e sim uma vítima inocente que precisava de ajuda. Senti vontade de tocar-lhe, mas fiquei com medo da reação.

Aguardei pacientemente com lagrimas nos olhos pelo momento em que se retirasse. Assim que o fez, chorei copiosamente pela trágica descoberta.

Dois dias depois a menina nasceu. Tive ajuda da senhora que já me conhecia e de uma outra pessoa a qual nunca havia visto.

O parto ocorreu normal. A menina era linda e antes de vir para os meus braços foi para os braços de Catharina que se encontrava presente observando a tudo em um canto. Ela olhava com os olhos em lagrimas para a criança. A segurava com uma delicadeza nunca visto antes. Aquela visão me emocionou. E pela primeira vez, depois de muitos meses, pronunciei seu nome. Ela olhou-me com os olhos meigos de quando éramos jovens. Vi ali minha irmã querida por uns breves minutos. Nos olhamos intensamente sem dizer nada uma a outra. Parecia que o tempo havia parado. Em seguida ela voltou a olhar para o bebê e o entregou a uma das mulheres se retirando do local sem dizer uma palavra. Pude então acolher a minha filha pela primeira vez no colo.

Nas semanas seguintes foi estabelecida uma rotina no quarto. Entre as idas da senhora que nunca pude saber o nome e a Catharina que vinha ver a criança à noite. A senhora ajudava na higiene da criança e me auxiliava com a minha. Depois que dava de mamar levava a criança para o lado de fora para que a Catharina pudesse pegá-la e tomar sol. Só a via pela noite quando o sol já se punha.

A nossa rotina mudou quando o Mendonça me encontrou. Não sei como ele conseguiu me achar. Mas fiquei feliz por ter ocorrido. Foram as respostas às preces que fazia diariamente. Como fiquei feliz. Chorei de felicidade. Nos abraçamos, conversamos e resolvemos tirar o bebê dali. Sabia que seria uma separação temporária. Preparei um pouco de leita e dei com uma erva que fez com que a criança adormecesse. Enrolamos ela cuidadosamente numa espécie de bolsa e atamos ao corpo do Mendonça. Sabia que ele não tinha muito tempo.

A mare logo, logo não o deixaria partir. Ele perguntou o nome da menina. No primeiro momento disse se chamar Carla em homenagem ao pai. Depois olhando para ele disse: Ela se chama Ana Carla Mendonça e você é o padrinho dela. Cuide bem de sua afilhada. Abracei-o novamente e dei um beijo de despedida. Escrevi umas cartas para ela e para o pai. Fiquei então apreensiva ate poder ver, no dia seguinte, o seu barco deslizando nas aguas bravias da região.

Aquele ambiente virou um inferno quando a Catharina deu por falta da criança. Fui até espancada por ela. Mas estava feliz com o desfecho. Sabia que logo, logo o pessoal viria me tirar daquela situação.

Os momentos seguintes até o retorno de Mendonça foram tensos e de muita agitação no local. Pareciam estar se preparando para uma guerra.

Ouvia a tudo serenamente. Confiava em Mendonça e sabia que ninguém conseguiria pegá-lo e nem a minha filha. E assim ocorreu. Os gritos, os estampidos de tiros me deram a certeza de que tudo havia ocorrido sem problemas na fuga de Mendonça e da menina. As horas seguintes foram de apreensão por conta da agitação lá fora.

Eu, do meu lado, so poderia torcer para que as coisas fossem resolvidas com o mínimo de violência e baixa possível.

Sabia que pelo ruído de desespero que me chegava, a turma de Mendonça e Carlos estavam avançando. Da ponta do portão via os gritos e a agitação da Catharina. Em um dado momento, ouvi a voz do Mendonça bem de longe e na sequência uma explosão. Tudo ficou escuro e em silencio.

A explosão havia me lançado para o outro lado do Comodo. Um pequeno corte na cabeça. Sabia que estava bem, mas tudo doía. Não sabia quanto tempo havia ficado desacordada. Levantei lentamente pois a cabeça ainda doía e tentei me localizar. Apesar da escuridão, sabia onde as coisas estavam. Algumas pedras rolaram para dentro. Provavelmente depois da explosão. O portão estava arrebentado. Busquei material para acender pelo menos uma vela. Foi ai que ouvi um gemido fraquinho vindo do lado onde ficava a cama. Lentamente me desloquei ate o ponto. La estava o Mendonça. Toquei no corpo dele o que fez gemer. Ele olhou para mim e desmaiou. Procurei material para auxiliá-lo. Não sabia o que tinha, mas deveria ser grave. Demorei um bom tempo ate achar o candieiro e acendê-lo. Pude então avaliar melhor a situação.

Estava com galo enorme e um talho bem acima dele. O Mendonça por sua vez estava provavelmente com algumas costelas quebradas. Procurei um pouco d’água para limpar a poeira em seu rosto e assim fiquei até ele acordar.

O contato da água fria reanimou. Ele abriu os olhos e me viu. Deu um belo sorriso. Ficamos ali nos olhando por um bom tempo.

Ele me informou a situação. Disse que a Catharina havia acionado uns explosivos que provocou o desmoronamento. Ele havia conseguido entrar, mas umas pedras que caíram atingiram suas costas. Pelas dores não deveria ser coisa simples. Nos momentos seguintes me pôs a par do que acontecera ate ali e do abrigo seguro que enviou minha pequena Ana. Falou do desespero do Carlos em vir atrás de mim. Até antes da explosão tanto o Carlos quanto a Catharina estavam vivos. Ouvia tudo em silencio com lagrimas nos olhos. Após esses relatos ficamos em silencio por um bom tempo. Depois fui ver se havia como sair pela via do portão. Caminhei passei do portão com dificuldade, mas no final do corredor tudo havia desmoronado. Não havia como passar. Retornei e contei ao Mendonça. Vamos ter que confiar na providência. Não se ouvia nenhum movimento do lado de fora. Na verdade, não tinha como. Somente uma pequena fissura na pedra que deixava os raios entrarem uma determinada parte da tarde. E ficava do lado do paredão. Ficamos buscando alternativas por uns dois ou três dias. Ate que o Mendonça pediu para que buscasse um pedaço do portão e alargássemos a fenda para que eu pudesse passar e buscar ajuda.

Levamos pelo menos mais dois dias esculpindo a fenda, alargando-a. Aos poucos fomos alargando. Ele com as costas enfaixadas de pano para diminuir as dores das costelas quebradas e eu com as mãos cheias de bolhas pelo uso do metal. Conseguimos depois de uns dias alargar a fenda. Ainda bem pois a comida que existia no local e a agua já haviam acabado na noite anterior e o Mendonça já estava com febre. Não saberia quanto tempo ele ainda resistiria.

Mesmo larga ainda assim era muito apertada para passar. Iriamos tentar assim mesmo. Fizemos uma corda com os restos de lençóis que havia no lugar e amarramos na cama de ferro. Ela seria nossa ancora. Mas no final do dia o estado de saúde do Mendonça piorou sensivelmente a febre estava alta e asa dores também. Não havia nada que pudesse fazer para ajudá-lo. Busquei por várias vezes tentar passar pelas pedras no corredor e não conseguia. Ele insistia que eu fosse e eu não queria deixá-lo. Assim fiquei ate o seu último suspiro. Fiquei ali imóvel vendo-o agradecer por ter dado sentido a vida dele e do irmão. Que era meu dever voltar para cuidar de Carlos e de minha filha. Seu último momento foi um camafeu que me deu para entregar ao Carlos. Presente da mãe deles. Após a morte de Mendonça, peguei uma pequena placa e fiz uma dedicatória a ele e a minha irmã. Apesar do ocorrido ela estava fora de si e não teve culpa do que provocou.

Sozinha, iniciei a tentativa de sair pela fenda feita. No primeiro momento não consegui. A roupa prendia nas reentrâncias das pedras. Ainda usei a peça metálica para quebrar mais um pouco. Depois encontrei um pouco de sabão e esfreguei no corpo nu e aí iniciei mais uma tentativa de sair. Consegui, mas fiquei cheia de hematomas. Quando sai já era noite. A corda improvisada estava presa em um dos meus pés. Puxei cuidadosamente ate estender ela de forma a me equilibrar. Estava fazendo frio lá fora. Minhas mãos estavam dormentes e com bolhas. Mas consegui subir o paredão e chegar ao topo. Ali, desmaiei de cansaço. Acordei com o tempo nublado. Estava gelada. Usei parte da corda para descer pelo lado que desmoronou. Consegui, mas não encontrei ninguém mais na ilha. Haviam abandonado. Entrei em desespero no primeiro momento. Depois de me acalmar busquei roupas secas no farol e um pouco de alimento. Sabia onde guardavam. Terminei por dormir novamente. Quando acordei estava chovendo. Resolvi voltar para a área do desmoronamento para ver como entrar.

Fui e subi ate o ponto alto onde noite anterior cheguei. La estava o pano que serviu de corda para a minha saída do cativeiro. Aproveitei o terreno molhado e coloquei a placa em homenagem aos dois. Fiquei ali um bom tempo ainda olhando o horizonte na tentativa de ver algum barco vindo em direção a ilha.

Quando comecei a retornar pelo lado desmoronado escorreguei e bati com a cabeça nas pedras em baixo. Aí veio o apagão. Perdi a memória e só recuperei agora depois de ver o camafeu que Mendonça me entregou para dar ao Carlos. Um que você trouxe junto com as coisas que tirou de lá.

Agora só nos resta esperar que venha algum barco para voltarmos à vida. Me conte ai? Como esta o Carlos? Quero saber de tudo... E a vila, mudou muito?

Os dias se passaram sem maiores entraves. A rotina que fazíamos antes do inverno, foram retomadas. Fomos ainda por duas vezes dentro da casa de pedra onde pegamos outros objetos da família.

Ate que em uma manha de sol visualizamos vários barcos vindo em direção à prainha. Corremos para o mirante para identificá-los. Havia quatro barcos. Um pelo menos pude reconhecer. Foi o barco que me trouxe à ilha. O barco do Velho Lobo do mar. Os outros não reconheci. Levariam algum tempo para passar pelo labirinto de rochas. Provavelmente lá pelo meio dia estariam atracando.

A Ana olhou para mim e sorrindo disse: - Finalmente vamos para casa Lucas!!!

- Garoto prepara almoço para os nossos hospedes que eu vou me arrumar com o melhor vestido que tenho. Hoje é dia de festa. Dizendo isso saiu em disparada para dentro do farol.

Olhei mais uma vez pelo monóculo que existia e pareceu identificar o Jonas em uma das embarcações. Retornei para o farol para fazer não o almoço, mas um banquete par os hospedes. Era dia festa como disse a velha da ilha.

O primeiro barco a aportar foi o gigante do velho lobo, seguido do barco de Domingo, o de Jonas e um terceiro que não deu para precisar de quem seria. Lá de baixo o velho lobo acenou para mim. Retribui e fiz o sinal que iria baixar a gondola. O pessoal começou a descer dos barcos e a descer materiais.

O pessoal do barco de Jonas e Domingos estavam subindo a encosta e a do velho lobo aguardava a gondola chegar. O último barco o pessoal não havia descido ainda.

Fui em direção à borda da encosta para recepcionar os velhos marinheiros amigos que me propiciaram essa aventura. O Jonas foi o primeiro a aparecer e daquele jeito despojado veio e me abraçou firme. Quase quebrando as minhas costelas. Na sequência não menos brutal o Domingos. Via-se claramente nos rostos deles a alegria em me vê. Também estava feliz por ver rostos amigos.

- Quanto tempo rapaz!! Disse o Domingos. Você sempre aprontando hein?

- Olha como esta corado! Esse tempo aqui na ilha lhe fez bem. Desde o dia em que partiu não deixou de ser notícias lá na vila. Você realmente sabe fazer uma festa garoto!!!

- Olha! Temos muita coisa para subir. Disse o Jonas. Vai lá para dentro preparar algo descente para comermos enquanto a gente ajuda aquele preguiçoso lá embaixo a subir as coisas. Se não chega à noite e não vamos terminar os serviços.

Aceitei com muito bom grado a sugestão. Deixei os comandos das gondolas e fui em direção ao farol. Estava pensando em Ana que desde cedo não via.

Ao entrar no farol grande surpresa me aguardava. Ali, em frente, estava uma senhora bem vestida, cabelos arrumados, broche e tudo mais de direito. Estava realmente encantadora. Fiquei um tempo parado simplesmente admirando a beleza daquela senhora que apesar dos anos não escondia a formosura natural.

Ela percebendo a minha confusão deu um belo sorriso e perguntou: - Como estou?

- Acha que estou à altura dos nossos convidados?

Só consegui balançar a cabeça afirmativamente. Continuei a olhá-la paralisado. Não me lembrava nem o motivo da minha ida ali.

- Lucas, vamos por a mesa. Por certo os nossos convidados estão com fome. Sei o que é viajar da vila para cá. Vamos eu lhe ajudo. Temos pratos e talheres para momentos especiais como este.

Sai momentaneamente da paralisia em que estava e me pus a obedecer a velha senhora.

Aos poucos o ruído das conversas era ouvido. Dava para distinguir claramente a voz de Jonas e Domingos e de outras pessoas que não conseguia decifrar. Eram conversas alegres e brincalhonas.

Finalmente terminamos de ajeitar a mesa. Então nos pusemos a sair para recepcionar os nossos hospedes.

Que surpresa nos aguardava. Na frente da comitiva vinham o Jonas e o Domingos. Um pouco atrás, estavam mais pessoas. O velho Lobo do Mar e Dom Carlos em pessoa, auxiliado por uma senhora que no primeiro momento não consegui distinguir.

Olhava par o Dom Carlos e para a Ana. O semblante dela estava modificado, havia expectativa, a respiração estava mais curta. Com certeza ela havia reconhecido o velho fidalgo. Restava saber se de onde ele estava também a tinha reconhecido.

Não tirava o olho das reações dela e dele que nem percebi a senhora que o acompanhava. Só pude perceber quando já estava a três metros de mim. Fiquei surpreso e confuso quando reconheci a pessoa. Não era possível!!! Como? As coisas pareciam se enrolar de novo.

Houve um silencio bastante significativo entre todos. O primeiro a quebrar foi o próprio Dom Carlos que olhou para Ana e com lagrimas nos olhos a abraçou demoradamente. A mesma reação de Ana. Foi um abraço onde muitas coisas foram ditas em silencio. Não sabia se sorria de alegria ou se chorava pela emoção que ali se manifestava. Todos os demais, respeitando o momento se afastaram com exceção da senhora que o acompanhava e que eu conhecia muito bem. Olhava para mim e sorria.

Finalmente me aproximei dela. – Dona Ana. A senhora por aqui. Que alegria revê-la. Abracei-a com fervor de um adolescente querendo colo. Fiquei um bom tempo assim, também sem dizer mais nada. Lagrimas brotavam dos olhos e não conseguia conter. A emoção era grande.

Em um dado momento, ouvi a voz de Dom Carlos dizer a Ana.

- Querida! Eis a nossa filha desaparecida Ana Carla Mendonça. Somos uma família de novo .E, voltando-se para mim.

- Graças a teimosia desse jovem em querer satisfazer um último desejo de uma velha senhora, que estamos aqui juntos.

Ana então se desencilhou de Carlos e abraçou sua filha com emoção redobrada. Ambas choravam copiosamente. Não havia como conter as lagrimas. Era emoção de mais para todos ali.

Foi o velho Jonas que deu um direcionamento a situação: - Sei que vocês não se veem a muito tempo, mas a gente poderia pelo menos conversar um pouco enquanto comemos. Estou morrendo de fome.

Foi uma explosão de risos. Todos concordaram que o momento pedia uma celebração. Entramos então para o almoço que nos aguardava. Sabíamos que tínhamos muito a conversar. Seria uma tarde noite longa...

A conversa durante o almoço foi diversificada. Todos ali buscavam informações. Eu, queria entender a historia do orfanato. Afinal a filha de dom Carlos era a Tereza ou a dona Ana? Como ele descobriu a verdade? Como localizou a velha senhora? Tantos questionamentos ...

Fomo então para a área do mirante que fazia sombra naquele momento, e lá foi onde as explicações começaram a serem desenroladas.

Dom Carlos ouviu o relato da sua esposa. De como ela chegou por ali e de tudo que havia passado então. Foi um relato comovente e de superação. Principalmente a parte final com o Mendonça ferido. Todos calados, prestavam a atenção de cada detalhe ali dito.

Na sequência o Dom Carlos contou como encontrou a filha lá no orfanato.

- Lucas, antes de você sair me entregou uma velha foto sua com a duas senhoras ao seu lado. Naquele momento não prestei a atenção na fotos, só fui ver mais tarde. Quando você saiu fiquei um tempo na sala de quadros da família. Foi aí que vi a semelhança da mãe de minha esposa com uma das senhoras na foto. Me lembro que você havia mostrado em outro momento o rosto de dona Tereza como sendo a minha filha. Só que na verdade a outra senhora era copia fiel de minha sogra e ela segundo você, estava viva. Aquilo foi um choque e um mistério que precisava ser investigado. Por isso mandei o mestre Lobo lhe buscar e trazer aqui para ilha ate que eu pudesse esclarecer a dúvida. Não podia correr o risco de você sumir no mundo. Na verdade, a Tereza assumiu a identidade de minha filha como uma forma de protegê-la de alguma situação que lhe causasse problemas. O antigo administrador do orfanato foi a pessoa de confiança do meu irmão Mendonça. Foi quem recebeu a criança durante a fuga de Mendonça da ilha. Ele tratou de cuidar da garota e escondê-la até então.

Não foi difícil localizar o orfanato. Tinha a certeza de que encontraria minha filha.

E agora, minha esposa. Essa sim, foi a grande surpresa...Todo esse tempo aqui na ilha... Depois das explosões ficamos pelo menos três dias por aqui na esperança de localizar sobreviventes nos escombros. Estava muito triste e ferido. Meu ferimento começou no segundo dia a infeccionar e me levaram para ser tratado na vila. Deixei algumas pessoas encarregadas das buscas, mas quatro dias depois apareceram pela vila dizendo não haver sobreviventes. Desde então não pus os pés mais aqui. Esse foi o meu grande erro...

As outras explicações ocorreram de forma descontraída e alegre do grupo. Fazíamos planos de ficar uns dias na ilha e depois voltar à vila.

Eu, por outro lado, me sentia um peixe fora d’água. Não sabia qual destino tomar. Com tudo resolvido voltava a velha preocupação de buscar um canto pra ficar.

Foi aí que o velho Dom Carlos, parecendo que lia meus pensamentos, anunciou que iria transformar a ilha em um ambiente de acolhimento a crianças órfãs e que estaríamos ali, todos, para ajudá-lo a administrar.

Passamos então a discutir como seriam as reformas para adequar o ambiente do velho hospital em instalações para acolher essas crianças.

Dois anos mais tarde a ilha funcionava a pleno vapor como orfanato e a família De Dom Carlos, a esposa Ana Maria, a filha Ana Carla Mendonça, eu na logística de manutenção da ilha e os pescadores Jonas e Domingos nos transportes, nos desdobrávamos para administrar o local que passou a ser conhecida como ilha esperança.

A casa de pedra foi reconstruída e servia agora de sede do orfanato e morada dessa grande família a qual faço parte... Resta agora escrever essa grande aventura vivida e registrar nas páginas da história local...