Peixes fora d'água
- Você tem parentes na RFA?
Jannick Hauffe olhou por cima dos óculos de grau para quem lhe fizera a pergunta, aparentemente inocente. Irmelin Weiskopf, a jovem de tranças louras sentada do outro lado da mesa do café, parecia a ingenuidade em pessoa, mas isso, naturalmente, poderia ser um disfarce. Ele pegou o copo com Club Cola que havia colocado sobre a mesa, e tomou dois longos goles antes de responder.
- Todos nós temos, não é mesmo? Muitas famílias foram separadas depois que o Muro foi construído - replicou, tentando aparentar indiferença.
- Mas você tem contato com alguns deles? - Insistiu Irmelin.
Jannick remexeu-se na cadeira, em desconforto. Aquela não era uma pergunta que uma pessoa bem-educada faria a outra, particularmente se não a conhecesse muito bem. Ou, talvez, nem mesmo nessa possibilidade; aliás, especialmente nesta possibilidade!
- Não... sei que tenho parentes por parte de pai e mãe em Berlim Ocidental, mas nunca tive notícias ou contato com eles - afirmou solenemente, como se estivesse dando uma declaração para a Stasi.
A expressão de desapontamento no rosto de Irmelin não lhe passou desapercebida.
- Que pena... eu gostaria de conhecer alguém que tivesse contato em primeira mão com a RFA. Saber como é realmente a vida por lá - comentou a jovem.
- Creio que temos uma boa ideia de como os ocidentais vivem - respondeu Jannick cautelosamente. - Numa sociedade consumista, atrelada aos interesses globais dos Estados Unidos.
Ela respondeu com um muxoxo.
- Você parece meu pai falando!
- Não sou tão velho - defendeu-se Jannick. Mas, certamente, era tão cuidadoso quanto o pai de Irmelin.
- Nunca pensou em ir embora daqui? - Voltou ela à carga.
- Eu quero ser bioquímico - tergiversou Jannick. - Há muito campo para bioquímicos na RDA.
Foi a vez de Irmelin ficar em silêncio, e beber o seu copo de Club Cola.
* * *
No dia seguinte, ao término da última aula do dia, o professor informou a Jannick que ele deveria comparecer ao gabinete do diretor.
- Por quê? - Indagou o rapaz, intrigado.
- Há alguém que quer falar com você - foi a resposta críptica.
Jannick não levou muito tempo para descobrir quem era o visitante. O homem, de cerca de 40 e poucos anos, usando um sobretudo sobre o terno cinza, só podia pertencer a uma organização.
- Jannick, este senhor é Antonin Möhring, da Stasi - informou o diretor.
- Sr. Möhring? - Cumprimentou-o Jannick, apertando a mão que lhe foi oferecida.
Sentou-se na cadeira vaga em frente à mesa do diretor, e Möhring tomou a palavra.
- Você estuda com Irmelin Weiskopf, não é?
Isso, obviamente, era algo que a Stasi já sabia de antemão. Restava-lhe apenas confirmar.
- Sim, senhor.
- Namorada? - Inquiriu o agente de forma incisiva.
- Não exatamente... - arguiu o rapaz, constrangido. - Temos saído, mas apenas como amigos.
- Ela parece confiar em você - afirmou Möhring.
Jannick começou a imaginar se a Stasi estaria mandando fotografá-lo à distância, e que interesse teriam nisso.
- Temos gostos semelhantes - redarguiu Jannick cautelosamente. - Natação, música, bioquímica...
- Música - repetiu o agente, braços cruzados. - Mas não aquela de Wolf Biermann, espero.
Jannick engoliu em seco.
- Não senhor... Biermann é um traidor da RDA!
- Eu lhe disse - intrometeu-se o diretor na conversa, lançando um olhar triunfante para Möhring. - O rapaz é de confiança!
- Muito bem - aprovou o agente, balançando a cabeça. - Eu tenho um pedido a lhe fazer, Jannick.
O rapaz nada respondeu. Fosse lá o que fosse que a Stasi tinha a lhe oferecer, era certo que iria interferir com seus planos futuros - e não exatamente de uma forma agradável. Diante do silêncio, Möhring prosseguiu:
- Precisamos que mantenha vigilância sobre essa sua colega, Irmelin Weiskopf. Ela possui um tio, Waldemar Weiskopf, que é físico nuclear na RFA. Acreditamos que ela pode estar querendo desertar ou passar informações para o inimigo.
Foi então que o rapaz finalmente compreendeu a estranha história do dia anterior: Irmelin não estava querendo testá-lo para descobrir se ele era um desertor em potencial; ela mesma é quem pretendia fugir do país!
- E... para quem devo me reportar, caso perceba alguma coisa estranha, senhor? - Indagou Jannick, fingindo interesse.
- Para mim - replicou o diretor, satisfeito.
- Vamos ser colegas, Jannick - declarou gravemente Möhring. - Colegas informais.
Este aliás, era exatamente o termo usado pela Stasi para seus informantes, lembrou-se Jannick: "inoffizielle Mitarbeiter", colegas informais.
* * *
E no dia seguinte, após as aulas, como se nada houvesse acontecido, Jannick e Irmelin estavam sentados às margens do rio, dividindo uma garrafa de Club Cola enquanto observavam o curso preguiçoso do Spree.
- Você está quieto hoje - comentou a garota em dado momento.
- Estou pensando sobre o futuro - respondeu Jannick, sem olhar para ela.
- O futuro como bioquímico? - Provocou ela.
- Um futuro que possa ter nós dois nele - replicou o rapaz, acariciando a mão da jovem sobre a mesa. Irmelin o encarou, surpresa.
- Nós dois? O que foi que mudou tanto, de ontem para hoje? - Indagou.
- Estou começando a pensar que a RDA é um grande aquário... e que nós somos os peixes dentro dele, nadando de um lado para o outro para diversão de quem nos observa de fora.
Um sorriso começou a brotar no rosto corado de Irmelin.
- Você quer ir embora! - Exclamou.
- Fale baixo! - Retrucou Jannick, colocando um dedo sobre os lábios dela. - Quer que sejamos presos pela Stasi?
- Mas... como vamos fazer para atravessar o Muro? - Indagou ela, testa franzida.
Jannick apertou suavemente a mão da garota.
- Precisamos voltar aos treinos de natação... aprender a prender a respiração debaixo d'água...
- Os peixes vão ter que aprender a quebrar o vidro do aquário - disse Irmelin, erguendo seu copo de refrigerante.
- Ou pular por sobre a borda - redarguiu Jannick, erguendo o dele.
Fizeram então um brinde, sem palavras.
- [25-01-2020]