O dever nos chama

Luu Xuân aproximou-se para ouvir o pronunciamento de Hoàng Thiên, representante dos vietcongues, no centro da aldeia. O rapaz magro, uniforme preto de combatente, estava ladeado por dois soldados, fuzis AK-47 a tiracolo. Os aldeões também haviam afluído para receber as últimas orientações de Hanói, inclusive os pais de Luu Xuân, expressões preocupadas.

- Todos aqui temos nosso dever a cumprir - lembrou Hoàng Thiên. - Mesmo aqueles que não estão na frente de combate, lutando contra o inimigo estrangeiro e seus lacaios de Saigon.

- Mas agora vamos precisar de passes para visitar parentes, em aldeias distantes? - Questionou um camponês.

- Qualquer movimentação nesta área deverá ser previamente informada ao comando vietcongue - informou Hoàng Thiên. - Antes, bastava observar a aproximação do inimigo, americanos ou republicanos; agora, que estamos avançando rumo ao sul, precisamos saber se quem está circulando por nossas estradas faz parte das forças de autodefesa do Vietnã. Isso pode parecer invasivo, mas é para garantir a própria segurança de vocês.

Os aldeões entreolharam-se, mas ninguém se arriscou a contradizer o porta-voz vietcongue. Como ele mesmo dissera, mesmo quem não estava na linha de fogo, agora podia-se considerar combatente; e isso valia inclusive para as crianças e adolescentes como Luu Xuân.

- E, por favor, racionem a comida - prosseguiu o rapaz. - Os americanos estão jogando desfolhantes em áreas próximas, portanto isso pode afetar as lavouras de vocês. Desperdícios devem ser evitados e contidos.

Luu Xuân esgueirou-se por entre os adultos, para chegar mais próximo do porta-voz. O pai dela, Ta Khánh, acabara de tomar a palavra.

- Ainda bem que lembrou disso, camarada Hoàng Thiên. Há muitos aqui na vila que andavam desconfiados de que o meu físico bem nutrido devia-se ao fato de que eu andava comendo em segredo para contornar o racionamento...

Risinhos entre os aldeões.

- Sei da sua seriedade para com a causa do Vietnã, camarada Ta Khánh - redarguiu o porta-voz sem se abalar. - Mas como fez para afastar as insinuações maldosas?

- Oh... foi bastante simples. Passamos a tomar as refeições do lado de fora de casa. Assim, todos podem ver o quanto estamos comendo, e nos denunciar caso ultrapassemos o limite.

Luu Xuân havia conseguido chegar à parte interna do círculo em torno dos vietcongues, e pôde apreciar a reação de Hoàng Thiên. Por um instante, ele pareceu que ia rir, mas depois, abanou a cabeça.

- Muito sensato da sua parte, camarada Ta Khánh.

E foi então que viu Luu Xuân à frente dos adultos.

- Alguém da família resolveu se juntar ao exército de libertação? - Indagou o rapaz, encarando-a de braços cruzados.

- Eu só queria ouvir melhor, camarada... - desculpou-se ela, olhos baixos. Como filha caçula da sua família, lhe fora permitido permanecer na aldeia; mas seus irmãos e irmãs haviam se alistado nas fileiras vietcongues.

- Você faz um bom trabalho, Luu Xuân - admoestou-a Hoàng Thiên. - Cuida dos feridos, ensina as outras crianças, enterra os mortos... mas no momento, seu lugar não é aqui conosco. Quem vigia as estradas, enquanto você ouve o que eu falo? E se os americanos estiverem vindo para cá nesse momento? Quem dará o alarme?

- Perdão, camarada - replicou ela mortificada. - Vou para o meu posto.

Esgueirou-se por entre o povo, de volta à entrada da aldeia. Hoàng Thièn tinha razão, ela bem o sabia. Mesmo ali, centro do Vietnã, ainda distante da frente de batalha, a realidade da guerra impunha-se ao cotidiano.

Alguém tinha que vigiar as estradas - e os céus sobre elas.

- [14-01-2020]