Subversivos

A noite começava. Era uma sexta-feira – e de tempo calorento. Um vazio pairava no centro de Belém, na Amazônia. Mês de junho.

Uma mulher caminha, sozinha. Celeste, jovem, 23 anos, dirige-se à zona do meretrício.

Pela primeira visitaria o submundo da prostituição. Veio do interior em busca de melhores condições de vida, na capital.

Uma semana conhecera Marialda, uma morena de corpo bem traçado. Ela, Marialda, era frequentadora de uma área de prostituição, a Condor, um bairro da cidade.

A Condor teve seus momentos de fama, foi “celebridade” nos anos 1960 e 70 – e parte dos 80. Era o tempo do regime militar. A “Revolução de 64”.

À disposição dos clientes, na Praça Princesa Isabel, estavam os bares “São Jorge” e “Palácio dos Bares”, o “Pink Panther”, Patesco. Havia outros “pontos”.

Era 1971 – tempo em que o Brasil sofria forte influência dos EUA, ideologicamente. Ouvia-se, por exemplo, mais música americana e inglesa que brasileira. O Brasil parecia ser um Estado norte-americano, como a Flórida, por exemplo.

As duas – Celeste e Marialda – encontraram-se, no Palácio dos Bares, cerca das 10 da noite. Sentaram-se à mesa. --- Como vai, Celeste?

--- Está tudo bem. Apenas meio nervosa – você sabe, é a primeira vez que venho a um lugar de prostituição. Esses antros são perigosos e não poderia ser diferente – ela respondeu.

--- Amiga, temos de, dependendo da necessidade, da ocasião, fazer o que não queremos, o que vai contra os valores morais. Estou nessa vida há uns três anos, declarou Marialda .

Celeste tinha olhos esverdeados – e penetrantes. Sorria de maneira espontânea. Algumas vezes dava boas gargalhadas, sem constrangimento.

Numa mesa próxima assentaram-se dois homens. Puseram sobre a mesa uma carteira de cigarro – e pediram uma cerveja.

Marialda disse à companheira: –------- Olha lá que homens bonitos, parecem gringos. Os dois são bem atraentes. Creio que hoje iremos nos dar bem...

“Nos dar bem”, em outras palavras, seria “ter bom faturamento”, sair com alguma coisa ($) na bolsa.

--- Celeste, joga teu charme, que eu vou jogar o meu. Não podemos desperdiçar essa chance, amiga. Eles devem estar “estribados” (com dinheiro).

Não foi preciso tanto. Um deles acenou. Chamava Celeste.

---- É para ti, Celeste, o homem quer falar contigo. Aproveita!

Ela foi. Aqui, no Norte do Brasil, se diz que os gringos “arriam os pneus” por morenas, aquelas parecidas com índias. São as nossas caboclas “cor de açaí”.

Assentou-se ela à mesa. Foi fazer companhia ao “cliente”.

O homem se apresentou: --- Sou o Armando, sou argentino, de Córdoba. Como te chamas?

–----- Celeste – ela respondeu.

–---- Este aqui é o Rivera, também argentino. Somos caminhoneiros.

Celeste pediu a Rivera que fosse, o amigo de Armando, que fosse conversar com Marialda. Ele foi.

O casal (Celeste X Armando) bebeu quatro cervejas.

Ele disse à companheira ser grande admirador de Che Guevara, famoso revolucionário socialista. Guevara é até hoje grande ícone na América Latina.

---- Celeste, lá no caminhão há 70 armas. São fuzis contrabandeados da União Soviética e da China. Vamos a Marabá (sul do Pará) entregá-los aos guerrilheiros.

O argentino perguntou se ela sabia alguma coisa sobre a guerrilha do Araguaia (área fronteiriça de Goiás com o Pará, no chamado Bico do Papagaio, em Xambioá).

–-- Não, nada sei. Os meios de comunicação nada falam a respeito desse confronto. Vivemos um regime austero, duro, ninguém pode falar nada. Os milicos têm medo do comunismo. Os ricos também, as igrejas, os maçons.... É um regime totalitário, alguns dizem...

---- Não, não é assim, não – ele respondeu – e prosseguiu: –---- Irei amanhã à noite para Marabá. Irei levar as armas. Você quer ir com a gente?

O convite a deixou duvidosa. Lógico, a empreitada era perigosa – e muito perigosa.

Então ele pegou a mão de Celeste. A beijou. Rapidamente rolou clima – a química – aquele desejo de aconchegar os corpos. Celeste estava sedenta. E rolou. Ela garantiu ir a Marabá.

---- A Marialda também vai, garantiu Rivera.

Em Marabá, Armando disse às mulheres: ---- Celeste, Marialda, nós dois vamos despachar nossas mercadorias (armas). Sairemos daqui lá pelas 23 horas. Vocês sabem: são armas para os guerrilheiros. Não falem nada sobre isso pra ninguém.

Partiram, cada um num caminhão. As duas ficaram no hotel. Uns 20 minutos após os dois partirem, dois desconhecidos bateram à porta do quarto. Marialda abriu. Eles invadiram o quarto. Sacaram pistolas. ---- Onde estão seus companheiros, aqueles do caminhão? Elas ficaram caladas.

Um encostou a pistola na cabeça de Marialda. E a puxou pelos cabelos.

–-- Somos do SNI, Serviço Nacional de Informações. Sabemos quem são aqueles dois: são guerrilheiros disfarçados de caminhoneiros. São subversivos.

Puseram capuzes nelas e as levaram para o quartel. Após algumas sessões de tortura, elas falaram. Contaram sobre os fuzis. Um grupo de soldados de elite saiu à caça da dupla, num veículo blindado. Já perto de 1 da madrugada. E os encontraram na estrada, de terra batida. Os argentinos não perceberam que estavam sendo seguidos. O carro do Exército conseguiu localizá-los.

Se aproximaram dos caminhoneiros – e lhes deram voz de prisão.

--- Desçam com mãos para cima, comunistas miseráveis! Ordenou um oficial.

Desceram. Foram algemados e encapuzados. Os milicos revistaram os caminhões, encontrando os fuzis chineses e soviéticos. Desde então Rivera e Armando não mais foram localizados. Deram sumiço neles.

Celeste e Marialda ficaram presas num por quase 40 dias, no quartel. Numa tarde, um sargento foi à cela onde as duas estavam. O “nome de guerra” do sargento era Freitas.

---- Senhoritas, vocês sairão amanhã de manhã. Estão liberadas, mas serão vigiadas por agentes do SNI e pelo serviço reservado do Exército, os chamados “dedos-duros”. Vocês garantiram que não são guerrilheiras, que não têm nada a ver com o conflito. Vocês serão vigiadas!

Celeste perguntou ao sargento: ---- Onde estão Armando e Rivera, os argentinos?

O sargento não respondeu. Foi embora. O militar deu meia volta – e disse: –--- Marialda, amanhã, quando forem soltas, quero falar contigo.

No dia seguinte, perto da liberdade delas, o sargento procurou Marialda. E lhe fez uma inesperada proposta: –---- Quero casar contigo.

Ela levou um susto. Ficou pálida, paralisou. Ficou calada por uns dois minutos. Pensou. E aceitou o convite. Celeste tomou o ônibus de volta para Belém. Na viagem veio pensando em Armando e Rivera, os comunistas argentinos que desapareceram. Certamente foram executados.

Salatiel Hood
Enviado por Salatiel Hood em 13/01/2020
Código do texto: T6840838
Classificação de conteúdo: seguro