1123-ÓRFÃOS DA GUERRA - 4 - O HOMEM VOADOR

O HOMEM VOADOR

Série “Órfãos da Guerra” – 4ª. parte

Ver:

1ª. parte – A Viagem

2ª. parte – Um passaporte para dois

3ª. parte – Encontro com os Parentes

Reunidos no alpendre nos fundos da casa de minha tia Egberta, conversávamos com a ajuda do professor Hermann e de Rudolf, um jovem que falava inglês muito bem, que não era da família mas estava ali por pura curiosidade e vontade de participar daquele encontro. Era loiro, loiríssimo, que seus cabelos até pareciam brancos, o rosto corado e porte altaneiro. Foi de grande ajuda naquele momento.

Notei um rebuliço dentro da casa e logo as pessoas no alpendre se afastaram, formando um corredor.

O que vi me assustou: um homem sem pernas, num carrinho de quatro rodas. O carrinho nada mais era do que uma prancha ou tábua grossa, com pequenas rodas, impulsionado pelas mãos do próprio homem, cujo tronco se apoiava num rústico encosto também de madeira.

O homem era como quase todos os que ali estavam, loiro, de olhos azuis, tristemente azuis, e feições fortes. O rosto cavado em sulcos fortes, retrato das dificuldades e dores por que havia passado. Pelo peito musculoso e braços fortes, pude imagina um homem que fora alto e de porte atlético, agora reduzido à altura de metro e meio. Avaliei.

Logo me recuperei do susto ante a tranquilidade do seu olhar e o sorriso nos seus lábios. Para falar a verdade quase chorei de compaixão ao vê-lo se aproximando. Antes que alguém fizesse apresentação, me abaixei e, quase ajoelhada, o abracei. Ele correspondeu ao meu abraço, apertando-me fortemente em seus braços.

— Bom que é receber sua visita. — Foram suas primeiras palavras, traduzidas instantaneamente por Rudolf.

Apresentei-me dizendo meu nome. Ele respondeu dizendo chamar-se Kristofer, mas que agora todos o chamavam de homem-voador.

Apareceu um banquinho de pernas curtas, no qual me sentei, ficando quase ao nível de Kristofer. Peguei em suas mãos que tinham calos criados, pensei, pelo impulsionar de seu carrinho.

— Por que o chamam de homem-voador?

Então, ele me contou sua história.

“Lutava contra os alemães. Fazia parte de um grupo de resistência de quinze companheiros decididos. Numa ação que resultou na destruição de um comboio de rês caminhões, fugimos da perseguição dos soldados e atravessamos um campo minado. As minas alemãs eram terríveis. Dilaceravam os corpos, atirando-os para o alto e para os lados. Tive o azar de pisar em uma delas. A mina explodiu bem debaixo do meu corpo, destruindo minhas pernas. Meu corpo foi atirado numa vala, onde permaneci oculto da patrulha alemã.”

“Só fui saber o que acontecera comigo na cabana do doutor Abram – médico judeu que escapara ao desterro para os campos de concentração e vivia escondido numa cabana na floresta. Então, já estava sem as pernas.”

“Fiquei muitos meses na cabana do mato, recuperando-me da grande cirurgia. Era um local seguro e meus companheiros de guerrilha me proveram, bem como ao doutor Abram, de tudo o que precisávamos.”

“Quando as cicatrizes desapareceram, alguém fez para mim um carrinho como este que uso agora”.

“Eu voltei para casa escondido e escondido fiquei. Felizmente, eu e minha família morávamos em um sitio um pouco distante, limitando com a grande mata que cobre estas montanhas pó aqui.”

“A inatividade me aborrecia. Comecei a imaginar coisas para distrair-me. Com uma corda e um gancho amarrado na ponta, balançava-me nos galhos mais baixos das árvores. Dos galhos baixos passei aos mais altos. Além da corda, movimentava-me também de galho em galho usando braços e mãos. Não demorou muito eu já impulsionava o corpo de tal forma que passava de uma árvore a outra, “pulando” de galho em galho. Fui treinando, treinando, e hoje me movimento pelas árvores como um macaco, só que usando apenas braços e mãos.”

“Eu subia pelas árvores e por elas chegava até o topo da montanha. De lá podia observar as estradas ao longe e ver o movimento de comboios militares alemães. Voltava depressa a tempo de avisar os companheiros da resistência, que podiam preparar ataques eficientes.”

“Isso foi no tempo da guerra. Agora, ajudo nas colheitas de frutas, principalmente de maçãs, pois sou ágil e leve e carrego uma sacola grande, onde colocos as frutas.”

“Por isso me chamam de homem voador”.

* * *

Fiquei admirada da capacidade de adaptação e de como uma pessoa consegue superar suas deficiências.

Abracei Kristofer, o homem-pássaro, com ternura, e meus olhos marejaram quando nos despedimos.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 28 de setembro de 2019.

Conto # 1123 da Série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/12/2019
Reeditado em 06/02/2020
Código do texto: T6815560
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